Migração brasileira para 'país mais rico do mundo' triplica em 2 anos
Com maior PIB per capita do planeta e reservas de gás liquefeito de petróleo, Qatar tem maioria da população composta por estrangeiros
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
Maior PIB (Produto Interno Bruto) per capita do planeta, expectativa de vida de 78 anos e salário médio mensal superior a US$ 3 mil (cerca de R$ 12 mil): é essa a realidade do Qatar, nação considerada a mais rica do mundo pelo Banco Mundial, que abriga hoje quase 2.000 brasileiros.
De acordo com dados obtidos pelo R7 por meio da Embaixada do Brasil em Doha, o número de migrantes brasileiros no país — uma península de modestos 11 mil km² no Oriente Médio — subiu de 560 em 2016 para 1.800 até o final de 2018. O aumento é de 221%.
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“É uma migração sistematicamente ligada ao trabalho. Há muitas oportunidades de emprego e o Oriente Médio está em constante desenvolvimento”, pondera Leonardo Freitas, sócio-fundador do escritório Hayman-Woodward, que oferece consultoria em migração de profissionais e tem sede em cidades como Rio de Janeiro e Dubai.
“Questões como qualidade de vida e segurança pesam para os brasileiros. E o aumento neste período específico também tem a ver com a situação instável da política e da economia no Brasil”, acrescenta.
Freitas diz que, entre os clientes da companhia que buscam se mudar para o Oriente Médio, a maioria (28%) procura o Qatar: “A legislação migratória catariana condiciona a permissão de residência no país à assinatura de um contrato de trabalho. As pessoas têm que ir para trabalhar ou empreender”.
Depois do Qatar, há os que preferem Emirados Árabes Unidos (21%) e Turquia (18%), além de Omã (12%) e Kuwait (12%). Cerca de 74% dos interessados são homens. Quase metade (49%) tem entre 30 e 44 anos e a maior parte (29%) são profissionais da aviação em geral. Logo atrás aparecem engenheiros (23%) e médicos (17%).
Em busca de estabilidade
A paranaense Claudia Kamiya, de 41 anos, é uma das que se mudaram recentemente para Doha: ela foi para acompanhar o marido, piloto de avião, há três anos e meio. À época, o casal já tinha a primeira filha — o segundo, atualmente com dois anos, nasceu lá.
“Não havia perspectiva de crescimento profissional para meu marido no Brasil. Ele era copiloto nacional em uma companhia aérea. A fila de pessoas que estavam à frente dele para uma promoção era muito longa. Ele fez o processo seletivo para trabalhar em uma empresa do Qatar e passou. Viemos em busca de estabilidade, segurança e educação”, afirma, em entrevista ao R7.
Apesar dos predicados cheios de ostentação da nova casa, Claudia assegura que seu dia a dia passa longe dos luxos: “Tenho uma rotina normal — levo e busco as crianças na escola, cuido da casa... Meu filho, inclusive, nasceu em um hospital público, não pagamos nada. Fui muito bem tratada”, aponta.
Para a brasileira, a maior dificuldade em morar fora é ficar longe da família e dos amigos de longa data: “Sinto falta da convivência. Mas no geral, me adaptei muito bem, gosto de morar aqui e fui bem recebida”, diz.
A perspectiva de retorno parece cada vez mais remota: “É claro que eu espero que o Brasil melhore, até porque muitas pessoas que amo estão sobrevivendo a essa crise. E não se pode dizer nunca, mas o fato é que hoje não voltaríamos”, avalia.
Migração para o Golfo
Nas nações banhadas pelo Golfo Pérsico — braço de mar situado em meio ao Oriente Médio que concentra mais de metade das reservas mundiais conhecidas de petróleo —, a migração de profissionais não é um fenômeno exclusivo do Qatar, embora o país lidere as estatísticas.
Um levantamento do Gulf Research Center (empresa de análise de dados regional) aponta que 89,9% da população catariana é composta por estrangeiros. Nos Emirados Árabes Unidos, a taxa é de 88,5%; no Kuwait, de 69,4%. O que mais esses lugares têm em comum? Tornaram-se independentes na segunda metade do século 20, há menos de 60 anos.
“Os países do Golfo Pérsico são países em desenvolvimento. O Qatar, por exemplo, ganhou independência em 1971 e se descobriu rico em reservas de gás liquefeito de petróleo em 1976. Desde então, é completamente dependente da força de trabalho dos migrantes para sua construção e modernização”, explica Paulino Cozzi, pesquisador no Centro de Estudos do Golfo na Universidade do Qatar.
Costumes flexíveis
A dependência da força de trabalho dos migrantes e a diversidade da população, aliás, fazem do Qatar um lugar mais flexível em relação aos costumes muçulmanos — assim como na maioria esmagadora dos vizinhos árabes, a religião oficial no país é o islamismo.
A paulista Patricia Keller, que se mudou há nove anos também para acompanhar o marido piloto, garante que não teve grandes dificuldades para se adaptar à cultura local. “Por mais que algumas práticas sejam diferentes, eu encarei tudo como uma oportunidade de aprender”, aponta.
Em Doha, Patricia — que hoje tem 39 anos — já trabalhou como modelo comercial e hoje atua como professora de equitação. “É tudo muito diferente do que eu fazia no Brasil — onde era analista de sistemas”, conta.
“O que falam em relação à cultura rígida no Qatar, sinceramente, acredito que seja um pouco de mito. Não é recomendado usar roupas curtas ou decotadas, por exemplo, mas para mim não faz muita diferença. Também não há bebida alcoólica à vontade, mas no meu caso isso também não faz falta”, afirma.
Na opinião da brasileira, as vantagens da vida no país — como salários competitivos e baixos índices de violência — compensam as pequenas disparidades culturais.
Dificuldades estruturais
Ainda que as perspectivas pareçam alvissareiras para a maioria dos migrantes, o pesquisador Paulino Cozzi ressalta que o Qatar enfrenta dificuldades estruturais significativas. “A mobilidade urbana é um problema e os transportes públicos são limitados a pouquíssimas linhas de ônibus — geralmente utilizadas por trabalhadores estrangeiros com salários baixos”, avalia.
Mesmo os arranha-céus, letreiros eletrônicos e avenidas iluminadas que figuram nas fotografias de Doha não são um retrato 100% fiel à realidade, destaca Cozzi: “O tráfego também precisa ser resolvido, já que há obras em todos os lugares e faltam novas vias. Há poucos espaços públicos e quase nenhuma facilidade para pedestres”.
O objetivo do país é superar a maior parte dos obstáculos até 2022, quando sediará a Copa do Mundo FIFA. Leonardo Freitas, do escritório Hayman-Woodward, considera que, até lá, a tendência é que a migração aumente. “Esses eventos devem gerar uma vitrine muito grande do quão interessante é a vida no Oriente Médio”, finaliza.