‘Não me encaixo no mundo de hoje’: uma entrevista com o ex-presidente uruguaio José Mujica
Aos 89 anos, Pepe conta como é ‘lutar contra a morte’, viver sem celular e lidar com a tirania do mercado
Internacional|Jack Nicas, do The New York Times
Montevidéu, Uruguai – Há dez anos, o mundo se encantou brevemente com José Mujica, o presidente uruguaio simples que desprezou a residência oficial para viver em uma casa minúscula com a mulher e o cachorro de três pernas.
Em discursos aos líderes mundiais, entrevistas concedidas a jornalistas estrangeiros e um documentário, Pepe Mujica, como é conhecido, contou inúmeras histórias de sua vida que dariam um filme: guerrilheiro esquerdista urbano, chegou a roubar bancos; sobreviveu a 15 anos de cadeia, onde fez amizade com um sapo no período em que foi mantido em um buraco no chão; ajudou a liderar a transformação de sua pequenina nação sul-americana, hoje uma das democracias mais robustas e mais liberais do mundo no aspecto social.
Veja também
Mas seu legado vai além dessas histórias arrebatadoras e do compromisso com a austeridade, pois se tornou uma das figuras mais importantes e influentes da América Latina, em parte pela filosofia simples que prega para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz.
Agora está lutando contra a morte, como ele mesmo diz. Em abril, anunciou que faria radioterapia para tratar um câncer de esôfago; aos 89 anos, e já tendo de lidar com uma doença autoimune, admite que o caminho para a recuperação será difícil.
Na semana passada, fui até a periferia de Montevidéu, capital uruguaia, para visitá-lo em sua casa de três cômodos, cheia de livros e vidros de conserva, na chácara em que cultiva crisântemos há décadas. Ao pôr do sol de um dia de inverno, ele se pôs em frente ao fogão a lenha, bem encapotado e com um gorro de lã. O tratamento o deixou fraco e sem apetite. “Você está falando com um velho esquisito. Eu não me encaixo no mundo de hoje”, disse, curvando-se para me olhar com atenção, os olhos brilhando.
Foi assim que começamos.
Esta entrevista foi editada e resumida por questão de clareza.
Como anda a saúde?
Fizeram tratamento com radiação em mim. Os médicos dizem que foi bem, mas estou um trapo. (Espontaneamente.) Acho que a humanidade, do jeito que vai, está fadada ao pior.
Por que diz isso?
Desperdiçamos tempo com coisas inúteis. Podemos viver mais pacificamente. Veja o Uruguai, por exemplo: com três milhões e meio de habitantes, importa 27 milhões de pares de sapatos. Produzimos lixo e trabalhamos em desconforto. Para quê?
Você pode se considerar livre se conseguir fugir da lei da necessidade – ou seja, quando pode passar o tempo com o que gosta. Se multiplica suas necessidades, tem de passar a vida suprindo-as.
E o ser humano tem a capacidade de criar necessidades infinitas. O mercado nos domina e nos rouba a vida. A humanidade precisa trabalhar menos, ter mais tempo livre, ser mais pé no chão. Para que tanto lixo? Por que trocar de carro todo ano? A geladeira? A vida é uma só e acaba. É preciso lhe dar sentido. Brigar pela felicidade, e não só por dinheiro.
Acredita que a humanidade pode mudar?
Pode, sim, mas o mercado é muito forte. A ponto de gerar uma cultura subliminar que domina nossos instintos. É subjetiva, inconsciente. E nos transformou em compradores vorazes. Trabalhamos para comprar. Vivemos para comprar e pagar. O crédito é quase uma religião, ou seja, estamos meio ferrados.
Parece que você não está muito otimista.
No nível biológico, tenho esperança porque acredito no homem, mas, quando começo a pensar, bate o pessimismo.
Mas a mensagem de seus discursos geralmente é positiva.
Porque a vida é bela. Com todos os altos e baixos, amo a vida. E eu a estou perdendo porque está chegando a hora de partir. Qual o significado que podemos lhe dar? Em comparação aos outros animais, o homem tem a capacidade de descobrir objetivos – ou não. Se for assim, o mercado vai fazer com que fique pagando boletos para o resto da vida; mas, se encontrá-los, terá algo por que viver. Tem os que investigam, estudam, pesquisam, quem toca música, quem ama esportes, vale tudo, contanto que lhe preencha a vida.
P: Por que optou por viver na sua casa, mesmo ocupando a presidência?
Os resquícios culturais do feudalismo continuam aí: o tapete vermelho, as cornetas anunciando sua presença. Os presidentes gostam de ser paparicados. Uma vez fui à Alemanha e me puseram em uma Mercedes-Benz. Só a porta do carro pesava umas três toneladas. Colocaram umas 40 motocicletas na frente e outro tanto atrás. Fiquei constrangido. Temos uma residência oficial para o presidente, sim; tem quatro andares. Se você quiser tomar um chá, tem de caminhar o equivalente a três quarteirões. Totalmente inútil. Deveriam transformar em escola.
Como gostaria de ser lembrado?
Ah, exatamente como sou: um velho maluco.
Só isso? Mas você fez tanta coisa.
Tenho uma coisa só: a mágica da palavra. O livro é a maior invenção do homem. É uma pena que as pessoas leiam tão pouco. Elas não têm tempo.
Hoje em dia o pessoal lê praticamente tudo no celular.
Há quatro anos, joguei o meu fora. Estava me deixando doido, o dia inteiro falando besteira. Temos de aprender a falar com a pessoa que há dentro de nós. Foi ela que salvou minha vida. Como fiquei sozinho muitos anos, isso permaneceu em mim.
Quando estou no campo, trabalhando com o trator, às vezes paro para observar um passarinho construindo o ninho. Ele nasceu programado; já é um arquiteto. Ninguém lhe ensinou nada. Conhece o joão-de-barro? É o construtor perfeito.
Admiro a natureza. Quase acredito em um tipo de panteísmo, mas é preciso ter olhos de ver. As formigas, por exemplo, são as verdadeiras comunistas que andam por aí. São muito mais antigas do que nós e vão continuar existindo muito depois de desaparecermos. Todos os seres que vivem em colônia são muito fortes.
Voltando ao telefone: você está dizendo que a tecnologia é boa demais para nós?
Não é culpa do telefone. Nós é que não estamos preparados. Nós o usamos de uma maneira desastrosa. As crianças andam por aí com uma universidade inteira no bolso, e isso é maravilhoso; o problema é que progredimos mais em tecnologia do que em valores.
No entanto, é no mundo digital que boa parte da vida é vivida hoje.
Nada substitui isto aqui. (Faz um gesto para mostrar nossa conversa.) É intransferível. Não estamos nos comunicando só por meio das palavras; tem os gestos, a pele. A comunicação direta é inigualável. Não somos tão robóticos; aprendemos a pensar, mas, antes de tudo, somos seres emocionais. Achamos que decidimos tudo com a cabeça, mas muitas vezes ela só entra com os argumentos para justificar as decisões tomadas pela intuição. Não somos tão cônscios quanto parecemos – e tudo bem. Esse mecanismo é o que nos mantém vivos. É como a vaca que segue tudo o que é verde; se for verde, é comida. Vai ser difícil desistir do que somos.
Você já disse antes que não acredita em Deus. Qual sua opinião a respeito neste momento da sua vida?
Sessenta por cento da humanidade acreditam em alguma coisa, e isso tem de ser respeitado. Há perguntas sem resposta. Qual o significado da vida? De onde viemos? Para onde vamos? Não é fácil aceitar o fato de que somos formiguinhas na infinidade do universo. Precisamos da esperança em um Deus porque queremos viver.
Você tem algum tipo de Deus?
Não, mas tenho um respeito imenso por quem crê porque é um tipo de consolo quando confrontamos a ideia da morte. Porque o paradoxo da vida é que é um programa biológico designado a lutar para existir, mas, a partir do momento em que é posto em funcionamento, você está condenado a morrer.
Parece que a biologia é uma parte importante de sua visão de mundo.
Somos todos interdependentes. Não podemos viver sem as células procariontes que habitam nosso intestino, por exemplo; dependemos de uma série de criaturas tão minúsculas que não podemos nem ver. A vida é uma cadeia e continua cheia de mistérios.
Espero que a vida humana possa ser prolongada, mas também me preocupo. Tem muito doido por aí com armas nucleares, muito fanatismo. Deveríamos estar construindo moinhos de vento, mas gastamos com armamento. O homem é um animal complicado – inteligente e burro ao mesmo tempo.
c. 2024 The New York Times Company