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'Não queiram ser os EUA', diz autor de livro sobre tiroteio de Columbine

Vencedor de 5 prêmios de literatura com o livro 'Columbine', Dave Cullen fala sobre o impacto cultural do massacre de 1999 e acesso às armas em seu país

Internacional|Fábio Fleury, do R7

Pai mostra a escola secundária Columbine, no Colorado, para os filhos
Pai mostra a escola secundária Columbine, no Colorado, para os filhos

Em 2009, Dave Cullen conquistou cinco dos principais prêmios de literatura dos EUA com seu livro "Columbine", em que fala sobre as causas e consequências do tiroteio escolar que se tornou o mais marcante da história de seu país. Nesta semana, ele veio ao Brasil para o lançamento da versão em português de sua obra.

Em entrevista ao R7, o norte-americano falou sobre os motivos que levaram a tragédia que matou 15 pessoas em Littleton, no Colorado, em abril de 1999 a ter um impacto cultural tão profundo em todo o planeta e deixou um apelo para os brasileiros, no que diz respeito ao acesso às armas: "não queiram ser como os EUA".

Por que Columbine foi tão marcante na história dos EUA?

O fato de não ter sido o primeiro tiroteio em escola foi parte do motivo de ter se tornado algo tão grande. Em comparação, o atentado de Oklahoma City, em 1995, matou mais gente (168 pessoas), mas não teve o mesmo efeito duradouro. Nunca tínhamos tido um atentado terrorista, então parecia exceção. Foi uma coisa horrível, mas não deu a sensação de ‘nossa, isso vai continuar acontecendo’. 


Antes de Columbine, como houve uma série de outros tiroteios menores, com uma ou duas pessoas sendo mortas, sempre pareceu que havia um padrão, algo que vinha fervilhando, que deixava as pessoas apreensivas, se questionando se era uma tendência, então veio Columbine e superou tudo. Em vez de poucas pessoas, eles mataram 15, mas tentaram matar centenas, com bombas e tudo mais. Isso deu errado, mas de repente virou um show de horror completo, sem limites.

Como o massacre de Columbine se relaciona com tiroteios que aconteceram depois?


Fiz uma planilha com mais de 30 tiroteios em escolas nos EUA ao longo dos últimos 20 anos. Alguns atiradores citam autores de tiroteios anteriores em seus diários e manifestos, e todos se referem a Columbine diretamente.

Cullen: 5 prêmios por 'Columbine'
Cullen: 5 prêmios por 'Columbine'

Todos os caminhos levam a Columbine. Essas pessoas aprenderam vendo os tiroteios anteriores. Eric Harris e Dylan Klebold são os patronos deste movimento. E o mais triste é que não é apenas nos EUA, acontece fora, no Brasil também já aconteceu, até na Rússia, em uma vila na Sibéria. E eles acreditam numa história errada, em um mito de Columbine, mas tentam imitar os assassinos assim mesmo.


Por que tiroteios como o de Columbine e o de Parkland são diferentes de outros e causaram tanto trauma?

Uma coisa importante é que, depois de Columbine, os policiais passaram a seguir um protocolo diferente, os atiradores têm de 10 a 15 minutos para agir e sabem disso. Por isso, em outros tiroteios, quando essas coisas chegam à televisão elas já estão no passado, os verbos estão no pretérito.

Falei com psiquiatras sobre a química cerebral e tudo gira em torno da neropinefrina que sua amígdala cerebral solta no organismo, que é basicamente adrenalina. Ela causa a maior parte dos traumas, incluindo em quem está assistindo pela TV.

É diferente quando você aprende uma coisa que aconteceu no passado. Quer dizer, você liga a TV e aconteceu um tiroteio, ou um bombardeio ou algo horrível assim, mas já acabou. Você sente uma tristeza, talvez horror, mas não sente medo ou ansiedade. Quando algo está acontecendo, como um sequestro com refém, uma cidade está cercada ou algo assim.

O 11 de Setembro foi parecido. Um avião atinge um prédio, depois outro avião atinge o outro, depois o Pentágono... Você fica se perguntando se tem mais aviões no meio disso, no país inteiro. Será que vão atingir o Kansas, ou Chicago? Há um tipo diferente de terror nisso.

Tiroteio de Parkland trouxe traumas como Columbine
Tiroteio de Parkland trouxe traumas como Columbine

Parkland foi a primeira vez, depois de 19 anos, que demorou horas para acabar, porque a pessoa que atacou a escola saiu sem ser vista e o cerco da polícia demorou horas. Isso tem um efeito diferente no público, você fica querendo saber como e quando tudo vai terminar, você não sabe quantas pessoas ainda vão morrer, tudo está no presente e incerto.

Em Columbine, pensamos que tudo levou umas 4, porque os assassinos estavam mortos, mas ninguém sabia. A escola tremia, todo mundo pensava que eram bombas dos atiradores, mas era a SWAT, detonando as portas. E o país vendo tudo isso em rede nacional, tudo isso causou um trauma tão forte. Foi a primeira vez que muitos pais pensaram ‘será que posso mandar meu filho à escola amanhã?’.

Como você vê a cultura de proteção que muitos norte-americanos adotaram?

Isso é ridículo. Na escola Marjorie Stoneman Douglas em Parkland, depois do tiroteio, deram mochilas transparentes para os alunos e eles trataram como uma piada, colocaram absorventes, camisinhas, coisas ridículas. Isso vai resolver alguma coisa? Agora tem mochilas à prova de balas, alguns pais falam em fazer paredes à prova de balas, mas você não pode fazer a vida de alguém ser à prova de balas.

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Tem um grupo de pais que querem medidas que endureçam a escola, colocar detectores de metais, aí levanta outras questões, como por exemplo, e quando eles estiverem chegando na escola, descendo dos ônibus? Ou nas sextas-feiras à noite, quando tem os jogos de futebol, como vai proteger todos em um estádio?

Vamos todos ser os meninos na bolha? Eventualmente você precisa sair da bolha, e se um atirador resolver te atingir nesse momento? Não dá para fazer as coisas assim.

O que você sugere?

Em vez de fazer tudo à prova de balas, por que não limitar as balas? Banir rifles de assalto, por exemplo. Ou não vender mais cartuchos para 100 balas. O momento de maior vulnerabilidade de um atirador é quando ele recarrega a arma. É quando ele pode ser atacado. Se ele tiver um cartucho menor, tem que recarregar mais vezes.

Nós vendemos cartuchos de 100 balas, isso é ridículo. Você pode matar muita gente com 100 balas. Especialmente se você estiver com outra arma no ombro. Você troca e tem automaticamente 200 balas para atirar sem precisar trocar. Ninguém precisa de um cartucho de 100 balas, a menos que você esteja numa guerra.

Eu servi no Exército, fui da infantaria por dois anos e nós tínhamos cartuchos para 30 balas. Nunca estive em combate, foi antes da Guerra do Golfo, nosso adversário era apenas imaginário, nunca enfrentamos os russos de fato, mas ainda assim: 30 balas. Nem soldados usam 100 balas de uma vez.

Alguém precisa de uma arma semiautomática?

Não! E eu costumo dizer isso, porque usam o argumento dos caçadores como justificativa, digo "se você precisa de 30 balas para caçar um cervo, você precisa é de um novo hobby, vá pescar, vá fazer outra coisa". Então ninguém usa essas coisas para caçar. É uma coisa de homem, de machão, ter uma coleção disso.

Caçar já é um argumento fraco para ter armas liberadas, mas colecionar? Crianças podem morrer para você ter uma arma na sua coleção em casa? É a coisa mais estúpida do mundo. As pessoas pensam nos direitos delas como colecionadoras, mas e o direito das crianças de viver?

E o pior, estatisticamente, a pessoa mais propensa a morrer se você tem uma arma em casa é você mesmo. E sua família. As pessoas dizem "preciso de uma arma para proteger minha família", mas os números mostram que as chances de sua mulher e seus filhos morrerem quadruplicam se você tem uma arma em casa.

Ou você não guarda direito e seu filho pequeno encontra e atira em alguém ou nele mesmo. Ou se um assaltante entrar e exigir seu dinheiro, você tenta apontar a arma para ele e é baleado antes. E, o pior de tudo, é o aumento no número de suicídios. É a maior causa de mortes por armas nos EUA.

E quando o argumento é "armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas"?

Ninguém deveria ter armas, elas só servem para matar. Essa frase "armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas", eu acho que já ficou velha nos EUA. Donald Trump falou isso algumas semanas atrás e ninguém se importou, eu percebi que foi a primeira vez que ouvi isso em muito tempo.

Durante muitos anos, esse foi o grito de guerra da NRA (Associação Nacional dos Proprietários de Rifle, na sigla em inglês) e agora nem eles usam mais isso. Acho que depois de tantos assassinatos em massa, as pessoas não querem mais ouvir essa frase.

Até apoiadores de Trump estão falando isso em pesquisas de grupo, que algo precisa ser feito. Não necessariamente proibir as armas, segundo eles, mas alguma coisa. A cúpula da NRA e os políticos perderam o contato com eles, estão com ideias ultrapassadas.

Você acha que a checagem de antecedentes que está sendo proposta funcionaria?

Acho que funciona em algum grau, mas é só um primeiro passo, é a coisa mais óbvia e a menor. Temos que ir muito além disso, a checagem seria só o começo mesmo. Banir armas semiautomáticas ajudaria muito mais, claro.

As leis que criaram alertas para as forças policiais ajudam muito, já evitaram alguns problemas sérios. E tem mais, os grupos pró-controle de armas estão crescendo, o movimento "Todos Pelo Controle de Armas" hoje tem mais voluntários do que o número de sócios da NRA. As coisas estão mudando.

O democrata Beto O'Rourke falou que iria retirar os fuzis de circulação...

E isso é um passo gigantesco. Nenhum político ousou falar algo parecido em anos. Não acho que ele iria tão longe, mas isso mostra que a discussão já avançou demais nos últimos anos. Um ano atrás isso não seria nem discutido. Hoje as pessoas em pesquisas acham isso necessário.

Acho que se os democratas vencerem, as armas automáticas serão banidas. Da última vez eles foram ingênuos, listaram os modelos proibidos e os fabricantes contornaram isso. Desta vez, penso que eles vão ser mais espertos e listar as características dos produtos e bani-los.

A campanha deles é baseada nisso, acho que eles meio que serão obrigados a fazer isso. Quase todos os democratas são a favor disso e muitos republicanos também. 

Vocês (Brasil) estão nadando contra a corrente nesse sentido, em relação ao resto do mundo e a nós também. Tenho esperança que vocês aprendam com os nossos erros. Não sejam os próximos EUA. Não queiram ser os EUA. Tivemos mais tiroteios em massa que dias em 2019. Essa é a minha mensagem para os brasileiros. Nós somos o problema, a doença.

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