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No luxo e ostentação de Ibiza, os trabalhadores essenciais não têm onde morar

Por causa de turismo e home office, o preço do metro quadrado na ilha é o triplo da média nacional e o dobro de Madri

Internacional|Benjamin Cunningham, do The New York Times


Ibiza enfrenta crise de moradia por causa de alta no preço dos aluguéis, e moradores pedem intervenção estatal Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

Ibiza, Espanha – Mil e novecentos euros por mês. Não era um aluguel barato, mas mesmo assim Alicia Bocuñano se considerou sortuda por encontrar um apartamento em Ibiza por esse preço. Taxista puxando 16 horas de trabalho por dia, a mãe solo que cresceu na ilha espanhola achava que o faturamento excedente dos meses de verão daria para cobrir a despesa.

Acontece que seu futuro senhorio queria receber adiantado o valor equivalente a seis meses, mais a caução – o que dava quase 14 mil euros (cerca de US$ 15.300) de uma tacada só. Embora não sejam exatamente legais no rígido setor espanhol de aluguéis, tais exigências são comuns ali, onde os turistas ricos lotam os hotéis de frente para o mar e as casas noturnas badaladas, mas os funcionários desses lugares – sem falar nos professores, emergencistas e outros trabalhadores essenciais – não conseguem lugar para morar.

Por isso, em vez de se acomodar na casa nova, Bocuñano, de 38 anos, passou duas semanas dormindo no próprio carro, morrendo de medo, e depois três meses em uma barraca com o filho de dez anos, Raúl, antes de comprar um trailer usado, em junho. Em maio, estacionou seu Caravelair no Can Rova, núcleo improvisado de barracas, barracos e trailers na periferia da capital, também chamada Ibiza, situado atrás de uma concessionária de lanchas caríssimas. “Quando chegamos aqui, fazia um frio de rachar. Tipo, gelado mesmo”, lembrou ela.

Os acampamentos começaram a pipocar em 2023, mas este ano cresceram em tamanho e número. O Can Rova, maior dos três principais polos espalhados pela cidade e ao redor dela, já abrigava 280 pessoas há menos de dois meses. Em uma noite de julho, havia um grupo de seis e um cachorro dormindo no chão do trailer de Bocuñano.


Muita gente disse que estava ali por não ter para onde ir e, por isso, torcia para poder ficar indefinidamente. Entretanto, em 31 de julho, a polícia se aproveitou de uma ordem judicial para desativar o acampamento, já que estava em um terreno particular. (O dono está envolvido em uma série de disputas judiciais e de zoneamento.) Vários afirmam ter planos de ir para um dos outros acampamentos, mesmo não tendo energia, água e cerca no entorno, detalhes que tornavam o Can Rova acolhedor. Bocuñano foi detida durante o despejo em massa e talvez tenha de pagar multa.

A população permanente de Ibiza hoje é de 160 mil habitantes, o dobro do que era há 20 anos, e não para de crescer Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

Em boa parte do mundo, a situação de rua normalmente está relacionada ao desemprego – mas não em Ibiza, onde as vagas são abundantes e o setor do turismo, em crescimento, depende de mão de obra itinerante (em situação legal de imigração – ou não). Embora o trabalho sazonal sempre tenha prejudicado a oferta de moradia durante alguns meses do ano, agora parece que o problema é mais estrutural. “Gente que trabalha sete dias por semana para poder criar os filhos está sem lugar para morar”, disse Bocuñano.


Crise agravada

A popularização do home office e o aumento da oferta de imóveis para temporada tiraram muitos apartamentos do mercado, agravando a escassez já existente, causada por restrições de uso do terreno em uma ilha valorizada pelas belezas naturais e pelas políticas públicas deficientes resultantes do estouro da bolha imobiliária espanhola em 2008. “É uma necessidade fundamental. Por definição, eles têm de morar lá, e enfrentam problemas não só de preço, mas de disponibilidade”, afirmou Carme Trilla, economista e ex-diretora de políticas de moradia da Catalunha, região espanhola “da península”, como os ilhéus têm o costume de dizer.

O agravamento da crise de moradia em Ibiza a princípio foi lento, mas de repente explodiu. Sua marca registrada – “sol, praia, balada”, como um corretor definiu – surgiu nos anos 60 e 70, quando os boêmios começaram a se reunir na ilha que faz parte das Baleares. A geração paz e amor deu lugar à moda disco, e a calça boca de sino foi expulsa das pistas de dança nos anos 80 e 90 pela cultura rave. Nos anos 2000, já tinha garantido a fama de ser a meca da música eletrônica e do escapismo luxuoso. “É o único lugar do mundo onde você vê os melhores DJs do mundo nas melhores casas noturnas do mundo toda noite”, contou Yann Pissenem, CEO e dono da Night League, empresa a que pertencem o Ushuaia e o Hi, duas das boates locais mais badaladas.


Em boa parte do mundo, a situação de rua normalmente está relacionada ao desemprego – mas não em Ibiza, onde as vagas são abundantes Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

A população permanente de Ibiza hoje é de 160 mil habitantes, o dobro do que era há 20 anos, e não para de crescer. Durante a alta estação de verão, chega a conter pelo menos um milhão de pessoas, com o turismo de luxo pressionando ainda mais o mercado imobiliário.

A ilha é um exemplo extremo de um fenômeno mais amplo que afeta a Espanha, país onde 12 por cento do PIB são gerados pelo turismo. Um relatório recente descobriu que, em 306 cidades e vilarejos considerados atrações turísticas, o aluguel é, em média, 75 por cento mais alto que a média nacional – a maior diferença já registrada na história. No verão deste ano, milhares de manifestantes se reuniram em locais de férias famosos, incluindo Málaga, Maiorca e as Ilhas Canárias, para protestar contra o turismo excessivo.

Segundo Trilla, atualmente presidente da Habitat 3, fundação que trabalha para facilitar a moradia subsidiada, em Ibiza a crise foi agravada pela criação de uma série de voos de conexão mais baratos para as capitais europeias e por um número maior de plataformas on-line que alugam apartamentos para estrangeiros. O preço médio do metro quadrado na ilha hoje é superior a seis mil euros – o triplo da média nacional e mais que o dobro do praticado em Madri e Barcelona.

Paloma Pérez Bravo, CEO da Sotheby’s International Realty da Espanha, explicou que 75 por cento dos compradores em potencial em Ibiza estão à procura de uma casa de veraneio; só 15 pensam em comprar para investir. Assim, em uma ilha com oferta inadequada de moradia e áreas edificáveis limitadas, muitas casas permanecem fechadas durante a maior parte do ano. “Desde a pandemia cresceu a demanda de compradores que pretendem morar ali em tempo integral. Ibiza é um bom investimento porque os preços nunca param de subir.”

Apartamentos lotados

Em uma tarde recente, pouco antes da desativação do Can Rova, os moradores contaram histórias dos apartamentos lotados por que passaram, onde as pessoas faziam rodízio para dormir nas chamadas “hot beds” por 300 euros por mês.

preço médio do metro quadrado na ilha hoje é superior a seis mil euros – o triplo da média nacional Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

Maria Fernanda Chica, colombiana de 34 anos que está esperando o visto de trabalho, chegou a morar em um desses enquanto fazia faxina em casas luxuosas para sobreviver. “Eu não podia nem preparar minhas refeições; na melhor das hipóteses, usava a cozinha uma vez por dia, e olhe lá”, disse, descrevendo as condições do lugar. Há alguns meses, passou a viver em uma estrutura improvisada no Can Rova com o companheiro e o filho adolescente. A maioria dos que estavam ali alugava terrenos por algo entre 350 e 450 euros por mês, pagando mais 50 euros de água e outro tanto de energia. Cada um ficava responsável pela instalação da própria fossa. Muitos ergueram barracos com pedaços de madeira, restos de pallets, grama sintética, lona e outros materiais.

Jonathan Sanchez, de 33 anos, e a namorada, Sandra Velasquez, de 41, dormem em uma das inúmeras barracas de outro acampamento improvisado. Ele, natural da ilha, trabalha na construção de dia; ela, imigrante colombiana sem permissão de trabalho, faz faxina à noite por sete euros a hora. “Nem me lembro da última vez que fui à praia”, comentou o ibicenco, que usava uma camiseta em que aparecia a palavra “Ants” – nome da festa que Pissenem promove aos sábados.

O casal carrega os celulares em pontos de ônibus e pega água da torneira instalada em um cemitério próximo. Boa parte dos “vizinhos” é de trabalhadores sazonais marroquinos que voltam para casa no fim da alta estação. Sanchez está nessa situação há um ano e dois meses; nenhum de seus colegas sabe onde ele mora. “Não é que eu tenha vergonha; não quero é que sintam pena.”

Até médicos e enfermeiros enfrentam os efeitos da crise dos alugueis na região Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

Toda vez que “campistas” como Sanchez são obrigados a se mudar, são grandes as chances de a Guardia Civil, uma das duas forças policiais nacionais espanholas, estar envolvida na operação (como foi no caso do despejo do Can Rova), mas muitos dos próprios oficiais também sofrem com a crise de moradia. No auge da temporada de verão, havia 17 vagas não ocupadas na corporação em Ibiza. “Tem muito recruta novo que evita trabalhar aqui, preferindo fazer rodízio quando abre posições em outras cidades da Espanha. O salário inicial é só 1.800 euros por mês, e a ajuda de custo, de 94,63, não faz muita diferença. Isso está levando a uma debandada nos serviços públicos. Nós temos direito de poder morar aqui”, desabafou Tomas Quesada, oficial da guarda e representante sindicalista.

Médicos e enfermeiros enfrentam realidade semelhante, como também os professores. De fato, para economizar, alguns têm de morar nas ilhas vizinhas e sair de avião para trabalhar. “Não temos a mesma qualidade de serviços públicos aqui em Ibiza”, constatou Joana Tur Planells, representante sindicalista dos docentes.

O espaço sempre será limitado nessa ilha de 570 quilômetros quadrados, mas há um consenso cada vez mais forte de que é preciso uma intervenção governamental. A Prefeitura da cidadezinha de Santa Eulària des Riu, onde ficava o Can Rova, pretende dispor de uma área de cinco mil metros quadrados para a construção de casas nos próximos anos. Estudos estratégicos pedem uma ênfase cada vez maior na construção de habitações multifamiliares e maior controle sobre os aluguéis para temporada irregulares.

Carmen Ferrer Torres, prefeita conservadora de Santa Eulària des Riu, falou dos planos para o início das obras de construção de 60 apartamentos menores para aluguel – ou seja, uma fração do número necessário de unidades para aliviar a crise. “São problemas graves e urgentes, cuja solução exige mais tempo do que temos”, comentou. Enquanto isso, seu partido também defende a liberação do mercado de aluguéis, apostando que as operações de despejo dos invasores liberem áreas de fundos habitacionais que se encontram estagnados. Ela, aliás, esteve presente à desativação do Can Rova, em 31 de julho.

O agravamento da crise de moradia em Ibiza a princípio foi lento, mas de repente explodiu Edu Bayer/The New York Times - 12.07.2024

Para Trilla, porém, a solução em nível mais amplo é clara. “É preciso dar prioridade à moradia pública para os trabalhadores essenciais, mas o problema não é só esse; tem a ver também com o preço dos terrenos. Basicamente, estamos precisando investir dinheiro público na compra de imóveis particulares a preço de mercado. Uma série de medidas estão sendo postas em prática em Barcelona, capital da Catalunha, que talvez aliviem um pouco a demanda no curto prazo, inclusive o afrouxamento temporário das leis de zoneamento, de modo a permitir que as autoridades transformem as casas maiores de uma família só em vários apartamentos. Além disso, lá estão eliminando aos poucos os aluguéis de temporada oferecidos em plataformas como o Airbnb; até 2028, serão praticamente proibidos.”

No setor privado, empresários bem-sucedidos como Pissenem também estão tentando encontrar alívio para a crise: para tanto, sua empresa começou a ajudar os funcionários sazonais a encontrar lugar para morar. “Todos nós temos de achar meios de ajudar aqueles que são responsáveis pelo funcionamento da ilha.”

Por enquanto, ibicencos como Bocuñano ainda não sabem onde vão conseguir se estabelecer. Nas primeiras noites depois do desmonte do Can Rova, ela dormiu no sofá da casa de um amigo e deixou o filho com a mãe, do outro lado da ilha. Pôde voltar rapidamente ao acampamento apenas para buscar suas coisas, incluindo o trailer, mas precisou pegar um carro emprestado para rebocá-lo. “Por enquanto vou tentar me recuperar e juntar os cacos”, concluiu.

c. 2024 The New York Times Company

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