O que a invasão ucraniana na Rússia representa para os civis
Russos na área da invasão da Ucrânia descreveram ter visto sinais de encontros violentos, bem como o tratamento respeitoso por parte das tropas ucranianas
Internacional|Anatoly Kurmanaev, Haley Willis, Ekaterina Bodyagina, Oleg Matsnev e Dmitriy Khavin, do The New York Times
O drone que sobrevoava o vilarejo de Korenevo, na região russa de Kursk invadida pela Ucrânia em agosto, gravou uma cena macabra: pelo menos sete cadáveres espalhados na estrada, a maioria em roupas civis. Havia carros destruídos largados pelo acostamento, alguns com mortos dentro. Um homem caído enroscado em uma bicicleta vermelha. Corpos em estado tão adiantado de decomposição devido ao calor do verão que tiveram de ser identificados pela arcada dentária, segundo uma voluntária que ajudou na recuperação dos restos mortais.
O vídeo e as fotos que registraram a cena foram feitos no início da ofensiva ucraniana, a primeira invasão em território russo desde a Segunda Guerra Mundial. A disputa entre as tropas inimigas foi encarniçada, com ataques armados de ambos os lados, o que significa que é impossível determinar a responsabilidade pelas mortes com as informações disponíveis.
De qualquer maneira, as vítimas de Korenevo são o exemplo mais claro dos efeitos da captura do território na população de Kursk – e também destacam a posição inesperada em que se encontra a Ucrânia, como força invasora pela primeira vez em dois anos e meio de conflito.
Desde que suas forças fizeram a incursão surpresa no oeste da Rússia, há mais de dois meses, é difícil avaliar como tem sido a experiência do russo comum. Várias torres de telefonia móvel foram destruídas, dificultando a comunicação dos moradores. A região é praticamente fechada ao jornalismo independente e o proselitismo oficial domina os noticiários, mas a verdade é que tanto um lado como o outro têm motivos para minimizar o número de vítimas.
Graças a vídeos verificados, imagens de satélite, fotografias e os depoimentos de quase 20 pessoas que vivem na área, o “The New York Times” compôs um quadro detalhado das consequências da investida inimiga para a população local. Alguns dos entrevistados se dispuseram abertamente a descrever a situação e a se identificar; outros, preocupados com a questão da segurança, preferiram dar apenas o primeiro nome.
Os civis que foram ao local depois que as tropas nacionais expulsaram as forças vizinhas descreveram o que restou dos confrontos caóticos e violentos. “Todo carro que se aproximava era alvejado. Todos estavam tentando fugir, mas, como se vê, não conseguiram”, comentou Maria Skrob, que ajudou a levar os corpos para o necrotério da capital da província.
Nas imagens e fotos feitas pelo drone podem-se ver oito mortos. Segundo a descrição de Skrob, alguns tinham ficado irreconhecíveis por causa do calor; ela disse também que, no total, 15 foram retirados, número que não pôde ser confirmado independentemente. Em entrevista, afirmou que os soldados ucranianos atiraram nos civis em fuga em Korenevo, mas não mencionou nenhuma prova. Os moradores do vilarejo vizinho, Kurilovka, repetiram a acusação. A Ucrânia nega, mas nenhuma das alegações pôde ser verificada de forma independente.
Os residentes disseram que os ataques periódicos nos meses anteriores e a ausência de avisos por parte das autoridades locais levaram muita gente a ignorar os sinais da batalha que se aproximava, permanecendo em casa até que fosse tarde demais. Uma delas, Olga, contou que ia se sentar para comer com a família quando ouviu as explosões. “Korenevo mergulhou no inferno. Ninguém nos avisou para ir embora, ninguém veio nos ajudar a sair”, afirmou por telefone.
Na verdade, os membros do governo local fugiram, deixando a cargo dos próprios residentes a evacuação dos mais necessitados. Em 10 de agosto, porém, os soldados que ainda estavam em Korenevo disseram ao voluntário Ivan Naumov que era muito perigoso ficar. “Meter o nariz ali é inútil, é virar alvo fácil. É morte na certa”, falou o bombeiro para os colegas em mensagem de voz verificada pelo “The Times”. Ele pediu também que evitassem atravessar a ponte sobre o Rio Krepna, rumo ao subúrbio oriental de Korenevo – onde, por sinal, foram descobertos os corpos mais tarde.
O governo russo não forneceu informações detalhadas sobre esses óbitos; já o Exército ucraniano, em declaração, alegou que as descrições e os relatos das mortes não passavam de proselitismo.
Segundo sociólogos e analistas militares, a invasão cria um peso moral para Kiev. Em Kursk, soldados ucranianos se viram tendo de avaliar as ameaças de espiões e sabotadores reais e imaginários, ao mesmo tempo que passaram a controlar milhares de cidadãos de uma nação que destruíra uma boa parte de sua terra natal. E agora estão sob escrutínio para seguirem as mesmas regras que os russos desrespeitaram milhares de vezes na Ucrânia – com execuções sumárias, estupros e a remoção forçada de crianças, como foi documentado por promotores locais e internacionais.
Dmytro Lubinets, comissário dos direitos humanos da Ucrânia, insiste em dizer que seu país obedece às leis humanitárias. “Somos diferentes, e esse é o principal motivo por que nossos parceiros internacionais nos oferecem assistência”, afirmou em entrevista pouco depois da incursão. Já o Exército declarou não ter cometido “nenhum caso registrado de violação” da Convenção de Genebra em Kursk – e, para embasar as afirmações, soldados e autoridades divulgaram vídeos em que as forças apareciam distribuindo comida e água à população das cidadezinhas ocupadas.
A Ucrânia montou uma administração militar em Kursk em agosto para oferecer assistência humanitária, manutenção da ordem e serviços básicos. Seu porta-voz, Oleksiy Dmytrashkivsky, declarou à Agence France-Presse, em 18 de setembro, que “milhares” de civis permaneciam na área controlada. Kiev, entretanto, ofereceu poucos detalhes adicionais sobre o trabalho da autoridade de ocupação, e Dmytrashkivsky não atendeu aos nossos pedidos de entrevista.
Já os relatos oferecidos pelos civis pintam um retrato controverso do desempenho ucraniano em Kursk. Há quem diga que cruzou com soldados enquanto fugiam, em 6 de agosto, primeiro dia da invasão, sem que nada acontecesse. “Quase dei de cara com eles no meio da estrada. Por algum motivo, não atiraram em mim”, disse Sergei, de Korenevo, descrevendo o encontro com as colunas armadas.
O “The Times” falou com três pessoas que fugiram para áreas mais seguras, mas conseguiram contato com os familiares que ficaram para trás, e todas descreveram um tratamento relativamente benevolente – como o senhor que contou que os soldados lhe levaram pão fresco e carne enlatada. Platon Mamatov, soldado e blogueiro russo, disse ter visto sinais de tarefas diárias durante suas expedições com o drone sobre o território ocupado, incluindo imagens de uma mulher trabalhando no jardim e um homem tirando água de um poço.
Houve também sinais de um tratamento mais duro. Em um vídeo verificado pelo jornal, dois soldados provocavam um idoso em uma estrada na periferia da cidadezinha ocupada de Sudzha. “Você é um porco russo”, um deles disse imitando alemão. No vídeo, outro militar está usando um capacete no estilo dos da Segunda Guerra Mundial, com insígnias da SS. Algumas unidades militares ucranianas exibiam símbolos nazistas, em alguns casos ironicamente, porque a Rússia acusou a Ucrânia de ser um Estado neonazista para justificar a invasão.
Vídeos postados pelo Exército ucraniano e verificados pelo “The Times” mostram ataques executados em áreas residenciais que destruíram ou danificaram casas e parte da infraestrutura. Em alguns, dá para ver os soldados russos entrando nos prédios antes de serem atingidos. Na maioria dos casos, não é possível determinar se há civis presentes.
Outros registros também conferidos pelo jornal mostram as forças russas atacando zonas habitacionais como parte de sua contraofensiva. Em Kurilovka, os moradores alegaram que soldados ucranianos mataram civis em fuga a tiros. Esses relatos são os mais difíceis de ser comprovados, uma vez que a luta no local continua – e embora às vezes apareçam provas visuais de civis sendo mortos, não dá para identificar o Exército agressor.
Em Kurilovka, pelo menos quatro carros civis foram alvo de armas automáticas nas primeiras horas da invasão, de acordo com entrevistas por telefone com os sobreviventes e seus familiares. Nina Kuznetsova, grávida de 28 anos, morreu alvejada no banco do carona, segundo relatos de sua irmã e seu cunhado, que estavam em outro carro, que também foi atingido. Aleksei Trubitsyn, de 28 anos, morreu minutos antes, na mesma estrada, em uma explosão que lhe destruiu o carro, segundo depoimento da irmã, Kristina. “Um grupo de soldados ucranianos se aproximou de nossa mãe enquanto ela tentava tirar o corpo dele das ferragens”, descreveu ela. Já os militares disseram que o automóvel atingiu uma mina antitanque, sem especificar que Exército a plantara ali.
Em Korenevo, do outro lado do território controlado pelos ucranianos, a análise de imagens de satélite confirma que a maioria dos carros e das vítimas aparece ao longo da rua de 10 a 14 de agosto. Não se sabe se todas as mortes foram resultado do mesmo episódio, embora Skrob tenha dito que as pessoas morreram em uma emboscada em 11 de agosto. No dia 17, Mamatov gravou as imagens do drone, que mais tarde postou nas redes sociais, fornecendo assim o primeiro registro visual das mortes.
Segundo os soldados envolvidos na operação Kursk, os comandantes os orientaram a tratar os civis de forma humana. “Os membros da 61ª Brigada Mecanizada foram instruídos a evitar conflitos com os civis e a prestar socorro como faria qualquer médico”, afirmou o tenente-coronel Artem Kholodkevych, subcomandante da brigada. Segundo os analistas militares, conforme a Rússia intensifica os esforços para recuperar o território, aumentam os riscos para os civis.
Enquanto isso, um grupo de cerca de 250 moradores de Kursk vem pressionando os governos russo e ucraniano, sem sucesso, para proporcionarem passagem livre para locais mais seguros a quase 500 parentes a quem faltam os serviços básicos com o inverno que se aproxima. “A que preço vamos recuperar nossa cidade? A impressão é de que ninguém se importa com o pessoal que ficou por aqui”, lamentou Tatiana Mozgovaya, cujo marido ficou em Sudzha.
(Contribuíram para a reportagem Constant Méheut, Yurii Shyvala e Nataliia Novosolova, de Kiev; Alina Lobzina, de Londres; e Thomas Gibbons-Neff, de Providence, Rhode Island.)
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