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Pizza é a comida de rua favorita da segunda maior cidade da França

Italianos levaram a pizza para Marselha no fim do século 19 e, desde então, ondas de imigrantes abraçaram o prato e deram a ele seu toque

Internacional|Lily Radziemski, do The New York Times

A clássica pizza marselhesa meio a meio da La Bella Pizza sempre leva aliche de um lado France Keyser/The New York Times

Em uma noite de temperatura amena em Marselha, a segunda maior cidade da França, multidões circulam pelas ruas com tons de grafite do bairro central de Cours Julien. Os prédios são salpicados de cores, como se o Mediterrâneo tão próximo tivesse vazado e deixado para trás pigmentos de um arco-íris despedaçado.

É quase meia-noite. A praça ainda está agitada com pessoas contando piadas e tomando goles de pastis (bebida alcoólica aromatizada com anis). Os restaurantes já estão quase todos fechados, mas um cheiro atraente vem dos balcões abertos, onde o odor de molho de tomate, queijo e massa cozida flutua no ar. “Aqui, a comida da madrugada não é o kebab ou o crepe. É a pizza”, me disse meu amigo Simon, natural de Marselha, quando me mudei para a cidade há pouco mais de um ano.

A pizza de Marselha tem uma crosta mais dura do que a napolitana, que é macia. Normalmente, é feita com queijo Emmental em vez de muçarela. Alguns dizem que isso se deve ao fato de o Emmental ser mais facilmente disponível na região; outros juram que é por ser mais salgado e gostoso. Os fabricantes de pizza frequentemente trocam o manjericão provençal por orégano e, às vezes, jogam alho cru por cima.

A fatia clássica de Marselha é a moitié-moitié (meio-meio), torta coberta de tomate, com anchovas de um lado e queijo do outro. A do tipo armênia tem carne moída, cebola e pimentão. A fatia do tipo corsa leva salsicha doce figatelli e queijo brousse, que é semelhante à ricota. E a pizza halal está disponível em Noailles, bairro perto do porto.


Essa variedade de tipos de pizza reflete a própria cidade. Os italianos trouxeram a pizza para Marselha pela primeira vez no fim do século 19 e, desde então, ondas de imigrantes, de lugares como a Armênia, a Córsega e a Argélia, abraçaram o prato e deram a ele seu toque.

“Não é muito diferente de outras grandes cidades portuárias industriais. O que torna Marselha especial, talvez um pouco como Nova York, é que há uma espécie de cosmopolitismo: a cidade pensa em si mesma como um caldeirão cultural”, afirmou Céline Regnard, historiadora local.


Marselha é um mosaico de pessoas, cultura e história. E a pizza é uma maneira de explorar esse mosaico.

‘Pizza que tem um passado’

Imigrantes italianos chegaram em grandes quantidades a Marselha no fim do século XIX e no início do século 20. Muitos desembarcaram em Le Panier, o distrito mais antigo da cidade, e lá abriram restaurantes como La Bella Pizza, a primeira pizzaria registrada da cidade.


Joséphine Roccaro e seu marido administravam uma fazenda na Sicília antes de se mudarem para Marselha em algum momento da década de 1920 – sua família não tem certeza do ano exato. Inicialmente, Roccaro vendia pizza na rua em uma caixa de madeira. Foi só em 1924 que ela abriu a La Bella Pizza.

O restaurante original não existe mais. Mas, perto do Cours Julien, uma discreta porta preta se abre para o burburinho constante de uma sala mal iluminada e lotada de pessoas. Taças de vinho tilintam como sinos ao vento. O pizzaiolo torce e gira a massa, tendo ao fundo um forno quente com chamas. O espaço é estreito, mas quando o tempo está bom – o que acontece a maior parte do ano em Marselha – os clientes vão para o terraço. A La Bella Pizza atual é administrada por Romain Sapienza, de 34 anos, tataraneto dos fundadores.

Clientes da Pizza Charly, uma das três pizzarias de propriedade familiar em Marselha France Keyser/The New York Times

Durante nossa visita recente, Sapienza saiu de trás do balcão exibindo um sorriso hospitaleiro. Informou que abriu o restaurante em 2021 depois de passar anos trabalhando em um escritório. Estava ansioso para usar as mãos, e disse isso fazendo o movimento de sovar a massa de pizza.

Ele cresceu em uma cidade próxima. A casa de seus pais e a de seus avós – que ficavam a menos de 800 metros de distância uma da outra – eram equipadas com fornos de pizza no quintal, contou, enquanto mostrava fotos antigas que guarda em seu celular.

Em uma das fotos, a família está reunida em volta de uma mesa de plástico branca coberta com uma toalha pintada com motivos florais, e sua avó aparece cortando uma pizza. Sapienza disse que, na década de 1960, os avós eram donos de um restaurante em Marselha, mas o nome era outro. Era um local muito particular onde traficantes de drogas e cafetões jantavam ao lado do chefe de polícia e dos turistas.

A pizza da La Bella Pizza é feita no estilo de Marselha, coberta com alho fresco; a fatia deve ser crocante o suficiente para ser segurada com três dedos – polegar, indicador e médio. Deve ser dura na parte inferior e macia por dentro, explicou Sapienza. “A pizza de Marselha tem um passado. Podemos sentir a história, a humanidade e a cultura por meio da comida e de como ela é degustada.”

Onde ‘o caminhão’ manda

A pizza para viagem é um grande negócio em Marselha; mais de 50 caminhões circulam pela cidade, estacionando em locais diferentes, dependendo do dia. As pessoas levam pizza para a praia e para os bares, às vezes oferecendo pedaços para quem estiver por perto. Quando o time de futebol da casa, o Olympique de Marseille, joga uma partida, parece que todos na cidade têm uma fatia na mão. Muitos até comem enquanto se movimentam, o que é uma raridade na França, onde se sentar para as refeições é um gesto quase religioso.

Às quintas-feiras, geralmente a partir das 16h, o caminhão branco de Bruno Lafaurie, de 48 anos, tesoureiro do sindicato local de caminhoneiros de pizza, estaciona em frente à igreja Notre-Dame du Mont, a poucos passos da La Bella Pizza.

Naquela tarde, o atendente de Lafaurie estava em um momento especial atrás do balcão do caminhão que se abre para a rua. Ele se movimentava em um ritmo intenso, fazendo com que as várias tarefas que executava parecessem uma dança inconsciente e sem esforço. Pegou um pedido, girou e deslizou uma torta para fora do forno, girou de volta para o balcão e alcançou os guardanapos. Serviu os clientes, voltou para a geladeira, pegou um monte de massa e jogou sobre o balcão, amassando, esticando, passando molho, espalhando queijo e, finalmente, deslizando a rodela para dentro do forno.

Faz 15 anos que Lafaurie comanda essa operação deliciosa, mas difícil de definir. “Não tem nome. ‘O Caminhão’, o nome é esse”, ele comentou enquanto tomávamos um café.

É mais provável que, nesses caminhões na rua, você encontre as pizzas do tipo Córsega e Armênia. De qualquer forma, os menus da rua são mais variados do que os dos restaurantes com mesas. “Cada onda de imigração adiciona sua pedra ao edifício. Toda pizza tem influências de sua época”, disse Lafaurie.

A Place Sébastopol é repleta de cafés e mercearias especializadas, e há um mercado que funciona nas manhãs de sábado. É lá que um caminhão estacionado, o Pizza Bianca, oferece um menu com mais de 50 tipos de pizzas, inteiras ou fatiadas. A crosta da pizza corsa é fina e firme, mas não é tão crocante. O queijo adiciona uma cremosidade leve e salgada ao molho, e a salsicha é como mel.

Normalmente, a pizza napolitana em Marselha é feita com queijo Emmental France Keyser/The New York Times

Mais ou menos no meio do caminho entre a Pizza Bianca e a Cours Julien, fica o caminhão amarelo do Pizza JD que tem uma variedade similar de ofertas. Foi aqui que Anthony Bourdain e o chef Eric Ripert fizeram pizza no episódio “Lugares Desconhecidos: Marselha”. A crosta é grossa e macia, e as fatias são grandes. A pizza armênia, cujos pimentões verdes e vermelhos complementam a carne moída e as cebolas, está listada na categoria “tradicional” do menu.

Uma história de amor com anchova e muçarela

Marselha tem inúmeros lugares despretensiosos que podem ter mais pizzas em exposição do que mesas. Um deles, a Pizza Charly – loja fundada há mais de 60 anos pela mesma família, que agora tem três filiais na cidade –, se tornou uma instituição local.

A Pizza Charly original fica perto do Marché de Noailles – o mercado central a que se chega descendo a colina do Cours Julien. A canção “Can’t Get You Out of My Head” de Kylie Minogue estava tocando em um bar próximo. Eram dez e meia da manhã quando fomos lá para uma visita. Os vendedores gritavam o preço da batata e o da abobrinha. “Dê um beijo em seus filhos por mim!”, gritou uma mulher de um café para alguém que passava. É uma área onde o msemen, pão achatado oriundo do norte da África, é mais comum do que a baguete.

Nabya Alioui, de 67 anos, trabalha na pizzaria. Nesse dia, estava em uma mesa do lado de fora da fachada vermelha, embrulhando doces para o Ramadã. Todas as pizzas de Charly são halal (tipo árabe); há fatias com presunto de peru e salsicha merguez, além de queijo e anchova. A crosta é fina como papel, mas firme, não racha quando dobrada, e o molho é feito com ervas. Quase 40 anos atrás, Alioui se mudou da Argélia para Marselha, para o prédio do outro lado da rua, e logo começou a sair com um rapaz do andar de baixo, Charly Rodossio, o filho do fundador, que era o dono na época. “Nossa história de amor começou quando eu vinha trabalhar aqui à noite”, contou Alioui, enquanto servia os clientes. “Foi realmente lindo”, sorriu timidamente.

Agora, seu filho de 37 anos, Charly Rodossio Jr., é dono do negócio.

Quando não estavam na pizzaria, o velho Rodossio e Alioui viajavam pela costa até Nice, Cannes e Monte Carlo. Adoravam o mar. Enquanto embrulhava os doces, contou a história de um amor que, no fim das contas, não durou muito. Suas mãos brilhavam com o mel. Mas foi a pizza que a aproximou da cidade. E, assim como acontece com muitos pizzaiolos, também aproximou a cidade dela. “Conheço Marselha inteira”, disse Alioui, enquanto se virava para a próxima cliente e a cumprimentava calorosamente: “Ma chérie!”

c. 2024 The New York Times Company

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