Por que prisões da América Latina se tornaram terreno fértil para o crime organizado?
Grupos como Tren de Aragua, PCC e Comando Vermelho cresceram dentro do sistema prisional
Internacional|Alessandra Freitas, da CNN Internacional
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Produzido pela Ri7a - a Inteligência Artificial do R7
A administração Trump está intensificando os esforços para reprimir as gangues que transportam drogas ilícitas para os EUA , com ataques militares mortais no mar e medidas para endurecer as fronteiras ocupando o centro do palco.
Mas, enquanto os Estados Unidos dobram as intervenções abertas, especialistas alertam que os formuladores de políticas podem estar ignorando um campo de batalha fundamental: as prisões em toda a região.
Várias das organizações criminosas mais poderosas da América Latina não foram forjadas nas fronteiras, nas ruas ou em esconderijos na selva, mas dentro das prisões da região.
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Superlotadas, com poucos recursos e, muitas vezes, efetivamente autogeridas, essas instalações serviram por muito tempo como incubadoras onde grupos armados recrutam, reorganizam e expandem sua influência.
Em toda a região, pelo menos dez organizações foram criadas ou fortalecidas atrás das grades.
De Tocorón a São Paulo
Esse é o caso do Tren de Aragua, citado pela administração Trump como alvo de ataques recentes a supostos barcos de drogas que aumentaram as tensões com o líder da Venezuela, Nicolás Maduro, embora não houvesse fortes evidências de uma conexão entre os barcos e o grupo criminoso.
Fundado dentro da prisão de Tocorón, no estado de Aragua, no início da década de 2010, o grupo inicialmente buscou impor ordem interna para garantir melhores condições de vida, de acordo com um relatório da Transparência Venezuela.
“Havia uma frustração social por trás disso — ressentimento pela forma como o estado tratava os prisioneiros”, disse Ronna Rísquez, jornalista venezuelana e autora de “El Tren de Aragua”, à CNN Internacional. “As condições desumanas e a falta de apoio estatal contribuíram diretamente para a ascensão dos pranes.”
Os pranes — um acrônimo para Preso Rematado Asesino Nato (“um presidiário endurecido, assassino nato”) — eventualmente se tornaram os governantes de fato de muitas prisões venezuelanas.
“Eles tinham controle total. A Guarda Nacional e os diretores das prisões obedeciam às suas ordens”, disse Rísquez.
Eles taxavam os presos, controlavam os fluxos de contrabando e até administravam operações externas de extorsão e sequestro.
O governo invadiu a prisão de Tocorón em 2023 e afirma que o grupo criminoso foi desmantelado, embora seus líderes, Hector Rusthenford Guerrero Flores, vulgo “Niño Guerrero”, e Johan Petric, ainda estejam foragidos.
Essa mesma dinâmica foi vista em toda a região. No Brasil, grupos do crime organizado como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho) surgiram dentro das prisões no final dos anos 1990 e 1970, quando os presos se rebelaram contra a superlotação, os abusos e as condições de vida precárias.
Gregório Fernandes de Andrade, um advogado criminalista que passou 16 anos no sistema por homicídio, disse que as celas estavam tão cheias que os presos muitas vezes se amontoavam em redes improvisadas penduradas nos tetos por falta de espaço.
“Eu estava frequentemente em uma cela de 4x4 metros com 40 presos”, disse ele. “Tínhamos que nos revezar para dormir.”
De acordo com dados federais, as prisões do Brasil operam com 140% de ocupação, com mais de 700 mil presos em instalações construídas para menos de 500 mil – uma realidade comum nos países latino-americanos.
A demanda se transformou em um negócio para membros de grupos organizados, que vendem aos presos qualquer coisa, desde itens de higiene até comida, segurança física e ajuda jurídica.
Andrade, que dividiu celas com Roni Peixoto, um dos líderes do CV, e presos ligados ao PCC, diz que a adesão raramente é por coerção.
“Não há uma arma apontada para sua cabeça”, disse ele. “As pessoas lutam para entrar por necessidade. Essas facções acolhem você — mais do que o estado jamais fez.”
A CNN Internacional entrou em contato com o governo brasileiro para comentar.
Em meados dos anos 2000, o PCC dominava as prisões de São Paulo.
“Eles estão presentes em cerca de 90% das unidades estaduais, e os homicídios são praticamente zero — o sistema foi ‘pacificado’ pelo PCC por quase 20 anos”, disse a socióloga e professora da Universidade Federal do ABC, Camila Caldeira Nunes Dias.
O PCC também administra uma das redes de exportação de cocaína mais poderosas da América do Sul, abastecendo os mercados europeus através dos portos do Brasil, enquanto o CV domina os corredores de tráfico do Peru através da Amazônia, de acordo com a InSight Crime, um grupo que estuda o crime organizado nas Américas.
Especialistas dizem que o trabalho feito dentro das prisões foi crucial para o estabelecimento das gangues no mundo exterior.
Líderes de gangues ordenam compras de drogas, expansão territorial e assassinatos de trás das grades.
“Chamamos as prisões de salas de negócios dos fundos”, disse Elizabeth Dickinson, analista sênior do International Crisis Group, à CNN Internacional. “Muitos líderes preferem operar de dentro porque estão mais seguros lá.”
Mas as disputas para alcançar tal controle das celas e dos presos dentro delas podem ser mortais – especialmente em instalações onde múltiplas facções coexistem.
A disputa pelas chaves das celas
Em toda a América Latina, massacres em prisões pelo controle territorial tornaram-se uma realidade recorrente.
Na prisão de Uribana, na Venezuela, uma disputa entre chefes de gangues em 2013 levou à morte de pelo menos 61 pessoas.
No Brasil, uma disputa semelhante desencadeou o infame massacre da prisão do Carandiru em 1992, em São Paulo, matando 111 presos e ajudando a estimular a ascensão do PCC.
No Equador, essa dinâmica tornou-se ainda mais explosiva. Devido ao seu papel estratégico nas exportações globais de cocaína, áreas como Guayaquil permitiram que atores estrangeiros — cartéis mexicanos, dissidentes colombianos — se inserissem nas gangues locais.
Quando seus líderes foram presos, a luta pelo controle migrou diretamente para as penitenciárias.
Daniel Pontón, reitor da Escola de Segurança e Defesa do IAEN (Instituto de Altos Estudos Nacionais) do Equador, diz que as prisões equatorianas são frequentemente estruturadas em blocos de celas controlados por diferentes grupos, o que incita o conflito.
“Cada bloco tinha sua própria economia e liderança — tudo privatizado e controlado pela gangue", diz ele. “Se eu tenho uma disputa com um líder criminoso, vou atrás do bloco dele, mato ele e assumo sua estrutura criminosa.”
Essa realidade foi duramente exposta após o assassinato, em 2020, de Jorge Luis Zambrano, vulgo “Rasquiña”, líder de longa data de Los Choneros. Sua morte abalou o equilíbrio que ele mantinha entre facções rivais.
Los Lobos, Los Tiguerones e outros se fragmentaram e começaram a lutar pelo domínio, desencadeando massacres que mataram mais de 400 presos em várias províncias em menos de três anos, de acordo com a InSight Crime.
Para os líderes de gangues, o derramamento de sangue é justificado pelos lucros. Os mercados prisionais do Equador valem agora mais de US$ 200 milhões (R$ 1,2 bilhão) anualmente — mais que o dobro do orçamento operacional federal para o SNAI (Serviço Nacional de Atenção Integral a Pessoas Adultas Privadas de Liberdade), o órgão que supervisiona o sistema prisional, que era de cerca de US$ 99 milhões (R$ 594 milhões) em 2021.
E as prisões tornaram-se nós-chave na cadeia global de cocaína, oferecendo armazenamento, logística e proteção para traficantes que movimentam cargas pelos portos de Guayaquil. A CNN Internacional entrou em contato com o governo equatoriano para comentar.
Mão forte
Em toda a América Latina, campanhas de linha dura “mano dura” (“mão forte”) tornaram-se um ponto focal político, com políticos concorrendo com promessas de sentenças mais duras, prisões em massa e papéis militares expandidos.
Em 2024, os eleitores equatorianos aprovaram o envolvimento militar no policiamento e sentenças mais longas após uma onda de assassinatos e massacres em prisões.
Em 18 de novembro, legisladores no Brasil votaram para aprovar uma legislação para rotular grupos como PCC e CV como organizações terroristas, visando estender significativamente as sentenças de prisão para os condenados sob o estatuto.
O poder Executivo do Brasil, no entanto, rejeitou a ideia de classificar PCC e CV como grupos terroristas.
Durante um diálogo de segurança de alto nível em Washington em março de 2024, representantes brasileiros disseram aos seus homólogos dos EUA que PCC e CV são organizações criminosas impulsionadas pelo lucro, em vez de grupos ideológicos, e, portanto, não atendem aos critérios legais do Brasil para terrorismo.
Nesse sentido, o “modelo Bukele” de El Salvador — construído sobre detenções em massa e a abertura do CECOT (Centro de Confinamento do Terrorismo), uma megaprisão com capacidade para 40.000 presos que a coloca entre as maiores do mundo — tornou-se o ponto de referência político, especialmente para líderes de direita na América Latina.
De Daniel Noboa, do Equador, a Santiago Peña, do Paraguai, e Javier Milei, da Argentina, prometeram replicar o modelo salvadorenho.
Vários países da região estão investindo de forma semelhante em uma nova onda de construção de prisões.
No Equador, o governo começou a operar El Encuentro, uma instalação de segurança máxima de US$ 52 milhões (R$ 312 milhões) em Santa Elena, construída para abrigar cerca de 800 presos de alto risco e equipada com controles biométricos, bloqueadores de sinal e sistemas de vigilância reforçados – mas a violência permanece.
Em 2024, a presidente hondurenha Xiomara Castro anunciou uma megaprisão com capacidade para 20.000 pessoas, como parte de uma repressão mais ampla às gangues – incluindo aumento de prisões, designação de atividade de gangue como terrorismo e papel expandido para as forças militares e policiais.
Uma linha de frente oculta
Grupos de direitos humanos e analistas de segurança alertam que a abordagem de encarceramento em massa do presidente Nayib Bukele em El Salvador não é facilmente transferível, especialmente em países com mercados criminosos fragmentados e instituições estatais mais fracas.
“Quando você tem uma prisão superlotada, e há desordem e falta de recursos, você cria uma oportunidade para grupos criminosos gerenciarem isso”, disse Dickinson do Crisis Group. “O que acaba acontecendo é que muitos indivíduos, especialmente infratores de baixo nível, tornam-se vítimas dessa economia extrativa. Muitos acabam se aliando a uma facção apenas para sobreviver à experiência.”
Andrade, que tinha 22 anos quando foi preso, argumenta que a resposta está em quebrar o ciclo.
“Eu tive muito mais oportunidades de entrar para o crime do que de ganhar a vida honestamente”, disse ele. “É mais fácil para um garoto conseguir um saco de drogas e uma arma do que um livro e uma caneta.”
“Existem pessoas boas e inteligentes lá dentro que não conseguem nem imaginar uma segunda chance na sociedade porque nunca lhes foi permitida nem a primeira”, disse Andrade, que acabou obtendo um mestrado e se tornou advogado criminalista. “Se continuarmos brutalizando as pessoas lá dentro, eventualmente elas se tornarão os soldados do crime aqui fora."
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