Rússia copia estratégia do grupo Wagner e envia presidiários para morrer na Ucrânia
"É como se estivéssemos sendo mandados para um abatedouro", afirma ex-detento que foi ao campo de batalha
Internacional|Anatoly Kurmanaev e Ekaterina Bodyagina
A morte de Yevgeny Prigozhin, o líder do grupo mercenário Wagner, na quarta-feira (23), trouxe à tona as táticas dos guerrilheiros — algumas delas, sem dúvida, polêmicas. E a mais controversa continua sendo usada pelo Exército da Rússia: a de recrutar presidiários russos para lutar e morrer em solo ucraniano.
O grupo Wagner, porém, era conhecido por cumprir seus acordos. Caso os combatentes sobrevivessem à guerra, tinham sua liberdade garantida. A Rússia, além de copiar a estratégia, cria empecilhos para cumprir sua parte no acordo.
Foi o que presenciou Alexander [o nome completo foi omitido por motivos de segurança], ex-presidiário que atualmente serve no Exército russo e passou um mês no campo de batalha. Ele disse não ter visto um único soldado ucraniano e que mal disparou um tiro. A ameaça de morte vinha de longe e, aparentemente, estava por toda parte.
Enviada para proteger uma possível passagem de travessia de um rio no sul do país, sua unidade — criada às pressas e composta quase inteiramente de presos — resistiu a várias semanas de bombardeios incessantes, ataques de atiradores e emboscadas.
O terreno, plano e pantanoso, não oferecia outra cobertura a não ser as ruínas das casas queimadas. Ele garantiu ter visto cães mordiscando os cadáveres abandonados dos colegas, bebido água de chuva e revirado as latas de lixo à procura de comida.
Pressão para continuar
Alexander se mostrava preocupado. Disse também que, dos 120 homens de seu grupo, não mais de 40 continuam vivos — e estes, segundo seu relato e o de outros dois detentos na mesma situação obtidos pelo jornal The New York Times, estão sofrendo uma pressão imensa para continuar lutando depois do fim do contrato de seis meses que assinaram com o governo.
"É como se estivéssemos sendo mandados para um abatedouro. Para eles, é como se não fôssemos humanos, porque cometemos crimes", disse Alexander, em uma série de mensagens de áudio a partir da região de Kherson, referindo-se aos comandantes.
Seus relatos oferecem uma visão rara da guerra na Ucrânia, da perspectiva dos detentos russos. Essas unidades se tornaram uma das bases da estratégia militar de seu país, uma vez que os combates prolongados vêm dizimando as forças militares. Suas descrições não puderam ser confirmadas de modo independente, mas batem com os relatos dos soldados ucranianos e prisioneiros de guerra russos, segundo os quais Moscou usa os presidiários como bucha de canhão.
As narrativas dos soldados foram obtidas mediante mensagens de voz ao longo de duas semanas — algumas como entrevistas diretas, outras como mensagens fornecidas por familiares e amigos. Os sobrenomes, os detalhes pessoais e as unidades a que pertencem foram omitidos para protegê-los de qualquer retaliação.
Tempestade Z
O testemunho de Alexander descreve a brutalidade imposta aos presos russos, e as perdas humanas com as quais Moscou está preparada para arcar para manter o controle do território ocupado. O ministro da Defesa começou a designar milhares de detidos para unidades especiais chamadas de Tempestade Z em fevereiro, depois de adotar o modelo de recrutamento usado pelo grupo Wagner no primeiro ano da guerra.
Alexander disse que se alistou em março, pouco depois de receber uma sentença longa por homicídio na região central da Rússia. Deixou a mulher, a filha e o filho recém-nascido e temia não sobreviver à tortura e às extorsões na cadeia. Como outros presos engajados no combate, recebeu a promessa de um salário equivalente a U$ 2.000 no câmbio de hoje e de liberdade ao fim do contrato de seis meses, cuja cópia ele compartilhou com o jornal.
Segundo o grupo Wagner, 49 mil presidiários integraram suas forças na Ucrânia, e 20% deles morreram. Ex-combatentes descreveram as medidas disciplinares violentas impostas pelo grupo. Apesar disso, os sobreviventes afirmaram ter recebido as quantias prometidas e voltado para casa como homens livres.
Para engrossar o número de recrutas, a organização se empenhou em reabilitar os criminosos aos olhos da sociedade, mostrando o serviço militar como redenção patriótica. Em fevereiro, no entanto, perdeu o acesso às detenções, depois de uma disputa com o alto escalão militar, possibilitando ao Ministério da Defesa suplantar o grupo em matéria de recrutamento.
Não se sabe o tamanho nem o número de baixas dessas unidades dentro do Exército russo, mas uma contagem de mortos — obtida pela BBC e pela agência independente de notícias Mediazona — mostra que entre março e abril deste ano os presidiários passaram a ser as vítimas mais frequentes, enfatizando sua participação desproporcional na guerra.
Os relatos de Alexander e de outros três ex-presos mostram a evolução desses batalhões sob o controle direto do Exército. O Times obteve os dados para contato do primeiro por intermédio da ativista Yana Gelmel e verificou sua identidade e a dos outros recorrendo aos registros públicos da Justiça e a entrevistas concedidas a amigos e parentes.
Promessa e dívida
Todos descrevem pagamentos irregulares e não correspondentes às quantias prometidas pelo governo, além da impossibilidade de obter indenização em caso de ferimentos. "Nossos superiores deram instruções muito explícitas de não recolher o cadáver dos companheiros mortos em combate. Por quê? Para impedir que a família exija indenização; sem corpo, eles são dados como desaparecidos e não como mortos em combate.
"E são muitos, espalhados por toda parte, principalmente depois do confronto às margens do rio Dnieper, em maio. Ninguém está muito preocupado em tirá-los de lá", afirmou Alexander. O Ministério da Defesa russo não atendeu ao nosso pedido de esclarecimento.
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Ele confirmou: "Os comandantes ameaçam e intimidam para forçar os homens a continuar guerreando por mais um ano depois do fim do contrato". De acordo com outro ex-detento que serviu na frente de Zaporizhzhia, mais ao leste, o contrato que assinou o obrigava a permanecer na Ucrânia por mais 12 meses depois da anistia, mas como soldado profissional.
Alexander disse que passou um mês em treinamento perto da cidade ocupada de Luhansk e depois foi enviado, com a unidade, para manter a frente perto das antigas casas de veraneio próximas à ponte Antonovsky, área que os ucranianos vêm atacando com investidas-surpresa desde que os russos bateram em retirada rumo à margem oriental do rio, em novembro.
Os homens passaram o mês seguinte sob bombardeio constante do inimigo invisível, que atacou as posições expostas a partir da outra margem; eram atiradores, emboscadas noturnas, drones à espreita o tempo todo.
O objetivo da missão nunca ficou claro para eles, pois apenas receberam ordens de permanecer na posição em que se encontravam, mas não tinham armamento pesado nem meios de se defender dos ataques ucranianos.
"Eu ficava correndo de um lado para outro feito um idiota. Não disparei uma única vez nem cheguei a ver o inimigo. Não passamos de isca para expor as posições de artilharia. O que é que estou fazendo aqui, batendo cabeça e tremendo feito vara verde, com bombas chovendo ao meu redor?", desabafou Dmitri, um ex-companheiro de Alexander, em uma mensagem enviada à sua mulher [e compartilhada com o Times] um pouco antes de morrer em solo ucraniano.