Registro de migrantes sobe, mas Brasil reconhece mil refugiados
Número de estrangeiros registrados no país aumentou 18,4% em 2018. Para solicitantes de refúgio, estrutura reduzida de atendimento é desafio
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
O Brasil registrou 121.539 novos migrantes em 2018 — número que representa um aumento de 18,4% em relação a 2017, quando foram registrados 102.634 novos estrangeiros em situação legal no território nacional.
Também no ano passado, o governo concedeu status de refugiados a 1.036 estrangeiros — um crescimento de 16,5% em relação aos 889 de 2017.
Os dados foram obtidos pelo R7 por meio da Polícia Federal, que é responsável pela emissão do RNM (Registro Nacional Migratório) — documento que atesta a identidade de estrangeiros com residência temporária ou permanente no país.
Para o professor de Relações Internacionais na UFRR (Universidade Federal de Roraima) João Carlos Jarochinski, os aumentos registrados na emissão dos documentos, ainda que não sejam expressivos, se devem a uma série de fatores.
“Entre 2016 e 2017, o índice de desemprego estava mais acentuado no Brasil e a capacidade de atuação dos migrantes no mercado de trabalho nacional era menor. Além disso, para o caso dos venezuelanos, por exemplo, não havia uma resolução que facilitasse a regularização do fluxo. Já entre 2017 e 2018, houve uma leve recuperação econômica e mudanças legislativas que favoreceram a regularidade e a obtenção de documentos”, diz.
Desde março de 2018, os venezuelanos que desejam se regularizar no Brasil podem recorrer à portaria interministerial 9/2018 — que autoriza, por dois anos, a “residência ao migrante que esteja em território brasileiro e seja nacional de país fronteiriço, onde não esteja em vigor o acordo do Mercosul”. De acordo com a PF, há 36.349 migrantes da Venezuela registrados no Brasil atualmente. Os egressos do país vizinho só ficam atrás dos haitianos — que totalizam 70.129 registrados.
Do Haiti à Venezuela
Um dos que chegaram do Haiti é o jovem Challes Obas, de 31 anos. Ele veio depois que a ilha foi devastada por um terremoto no ano de 2010.
Antes de pisar em terras tupiniquins, Obas passou por Quito, no Equador, onde recorreu à embaixada brasileira para obter o protocolo que lhe desse direito à residência temporária no Brasil. À época, o país concedia visto humanitário para haitianos atingidos pela tragédia.
Ao chegar aqui, o jovem foi à PF dar entrada no processo para a obtenção do RNM (antigamente chamado de Registro Nacional do Estrangeiro). Lá, recebeu um novo protocolo para utilizar como documento até que o RNM fosse emitido — procedimento que durou, no total, três meses.
“Nesse período, tive muita dificuldade para conseguir trabalho e abrir conta em banco porque ninguém sabia que aquele protocolo tinha validade, por mais que o papel contasse com um carimbo da PF. Isso já mudou um pouco, mas havia muita confusão — tanto que as ONGs passaram a fazer campanhas de conscientização para mostrar que aquele documento é legal”, relata, em entrevista ao R7.
Mesmo com o RNM em mãos, o haitiano não deixa de enfrentar percalços no que diz respeito à sua documentação. “Preciso renovar o registro, mas não encontro horário para agendamento na sede da PF em São Paulo. Há horários disponíveis em postos no litoral e no interior, mas sem comprovante de residência desses lugares e morando longe fica difícil”, relata.
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Dificuldades semelhantes se apresentaram ao venezuelano Jose Rafael Camejo, de 46 anos, que chegou ao Brasil em setembro de 2018.
“Tentei conseguir o RNM pelo processo de residência temporária, mas não havia data para atendimento na sede da PF em São Paulo. Agendei em Bauru e, chegando lá, não me atenderam porque não é a cidade onde eu moro. Decidi solicitar o status de refugiado na capital paulista. Saí com o protocolo da solicitação de refúgio em trâmite no mesmo dia em que pedi”, conta.
Com o protocolo, Camejo, que é engenheiro de informática, conseguiu trabalho como desenvolvedor para uma empresa de softwares e abriu uma conta em banco. Até que seja efetivamente reconhecido como refugiado, deve renovar o protocolo anualmente. A solução parece ter se dado de forma fácil, mas muitos na mesma situação do venezuelano costumam se deparar com mais incertezas, segundo Marcelo Haydu, coordenador da Adus, ONG de apoio a refugiados em São Paulo.
“O caso dos solicitantes é complexo porque muitas companhias não admitem, no protocolo, um documento válido. Aí vem a dificuldade para a inserção no mercado de trabalho. Mesmo quando entendem que o protocolo é válido, não te contratam porque sabem que você está em situação provisória e existe a incerteza em relação ao reconhecimento. As pessoas esperam, em média, de três a quatro anos para ter um posicionamento das autoridades sobre o refúgio”, aponta.
As dificuldades dos refugiados
O reconhecimento de pouco mais de mil refugiados pelo governo brasileiro ao longo de 2018 — em meio a um total de 80.014 solicitações em trâmite, de acordo com dados da PF — é um reflexo da reduzida estrutura do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça), conforme explicam especialistas ouvidos pelo R7.
“O Conare é um órgão com uma estrutura pequena para fazer essa análise de todas as solicitações. Além disso, fica tudo centralizado em Brasília — a entrevista dos solicitantes, que não é um procedimento simples, é feita por um órgão colegiado que se reúne uma vez por mês. Precisaríamos de um outro dinamismo ou de um aumento dessa estrutura de forma descentralizada”, aponta Jarochinski, da UFRR.
Atualmente, a maioria dos refugiados reconhecidos no Brasil vem da Síria — são 1.249 no total. Em seguida, aparecem 445 congoleses. Os haitianos, embora sejam maioria com RNM no país, totalizam 163 refugiados. Isso acontece porque o status de refúgio implica premissas específicas, segundo Manuel Furriela, reitor do Complexo Educacional FMU FIAM-FAAM e presidente da Comissão do Refugiado, Asilado e da Proteção Internacional da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional São Paulo).
“A primeira é de que o estrangeiro só veio para o Brasil porque ele não teve condições de permanecer em seu país. Ele foi forçado a sair por causa de alguma perseguição — religião, política e guerra são as causas mais comuns. Quando chega aqui e é autorizado, pode permanecer por tempo indeterminado. O refúgio cessa se o conflito acabar”, explica.
Legislação moderna
Apesar dos empecilhos estruturais, a legislação brasileira para os refugiados é considerada avançada. O país tem a tradição de acolher egressos de países em conflito desde as grandes guerras do século 20, recorda Furriela.
“O que também pôs o Brasil na vanguarda foi uma lei específica do presidente Fernando Henrique Cardoso, de 1997. Foi criada uma norma especial para o refúgio com todos os dispositivos para regularizar o processo — que prevê questões mais práticas em relação aos direitos humanos. O refugiado tem direito a todos os serviços públicos e a continuar sua vida aqui com suporte temporário do governo brasileiro para se inserir na nossa sociedade”, detalha.
“Existe, por exemplo, a previsão — não são todos os países que aceitam, mas o Brasil aceita — de que, a partir do momento em que a pessoa é reconhecida como refugiada, ela possa trazer todos os seus familiares ou pessoas ligadas a si. Não é necessário que cada um faça a própria solicitação. Há ainda a possibilidade de revalidação do diploma de ensino superior sem custos”, completa.
Na opinião de Jarochinski, da UFRR, o que falta é melhorar a efetividade da lei para que mais pessoas tenham acesso e sejam formalmente registradas no país: “Nós pensamos em política de refúgio para poucas pessoas porque estivemos longe dos grandes conflitos mundiais. Houve um aumento significativo na demanda de pedidos para uma estrutura que continua a mesma de 20 anos atrás”, finaliza.