Relatório da Anistia Internacional mostra sofrimento de civis na Síria
Documento divulgado pela ONG relata o drama de famílias que perderam dezenas de pessoas durante combates na cidade síria de Raqqa
Internacional|Fábio Fleury, do R7
Um relatório divulgado nesta semana pela Anistia Internacional trouxe à tona os horrores do cerco à cidade de Raqqa, na Síria, entre junho e outubro de 2017, que resultou na morte de milhares de civis e em dezenas de milhares de feridos, além da destruição de praticamente toda a infraestrutura urbana.
Raqqa era considerada a capital do 'califado' estabelecido pelos radicais do Daesh em território sírio e iraquiano e recebeu ataques pesados do Exército Democrático da Síria, com apoio aéreo e logístico da coalizão internacional liderada pelos EUA, em parceria com a França e o Reino Unido. Encurralados na cidade em meio ao conflito, os civis foram os principais atingidos.
Voluntários da Anistia Internacional foram a Raqqa e, durante duas semanas, visitaram 42 locais de ataques do Daesh e da coalizão e conversaram com 112 moradores. Além disso, usaram comparações de imagens de satélite para conseguir obter um retrato fiel da destruição causada pelo conflito.
Famílias destruídas
No relatório, a ONG destaca quatro famílias que foram quase que completamente dizimadas durante os ataques, enquanto buscavam um meio de deixar Raqqa. Seus relatos contradizem uma alegação dos EUA, de que jamais teria havido uma campanha aérea tão 'precisa' quanto a realizada na cidade.
"Não somos perfeitos, mas somos os mocinhos. Nunca na história do mundo houve uma força militar que tenha prestado mais atenção para limitar as mortes e feridos entre os civis em um campo de batalha quanto esta coalizão, nestes últimos anos, quando a precisão nos deu opções jamais vistas antes", disse o secretário de Defesa dos EUA, James Mattis, em agosto de 2017.
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A realidade se mostrou bem diferente do que alegou o norte-americano e o caso da família Badran é o mais emblemático. No total, 39 familiares foram mortos em quatro ataques diferentes realizados pela coalizão em locais diferentes, conforme eles fugiam de uma região da cidade para a outra em busca de um lugar seguro.
"Achamos que as forças que vieram combater o Daesh iriam saber o que estavam fazendo, que iriam mirar apenas no Daesh e deixar os civis em paz. Fomos ingênuos. Quando nós percebemos o quanto a situação estava perigosa, já era tarde demais, estávamos encurralados", disse Rasha Badran à Anistia Internacional.
Tentativas de fuga
Nos ataques, Rasha perdeu toda a família: pais, tios, primos e a filha Tulip, de apenas um ano. Apenas ela e o marido sobreviveram. O relato dela, sobre os meses que passaram tentando apenas sobreviver e fugir de Raqqa, é dramático.
No início de junho, eles viviam em um prédio no bairro de Fardous, na parte oeste da cidade. Quando a rua deles foi atingida por artilharia pesada da coalizão ocidental, a família fugiu para outro prédio. Alguns dias depois, o local foi bombardeado e quatro parentes se feriram. O grupo se movia mais lentamente por causa dos feridos e a fuga ficou mais difícil. Por isso, eles permaneceram um tempo na região.
"Em 18 de julho, estávamos fugindo do bairro de Nazlet al-Shehade porque as lutas estavam cada vez mais próximas. Foi quando nove de nossos paredes foram mortos em dois bombardeios. Cinco deles que estavam prestes a sair de uma das casas e quatro outros dentro do carro", conta Rasha.
Para tentar buscar auxílio médico para os feridos, a família voltou a Fardous e passou quase um mês escondida em uma casa na mesma rua, já que o prédio onde moravam que havia sido destruído. Quando o médico foi morto por atiradores do Daesh, eles decidiram que era hora de sair de lá novamente.
Pior dos ataques
No início da noite de 20 de agosto, um ataque aéreo destruiu completamente as casas onde a família Badran estava abrigada. Rasha e o marido, Abdulhawad, ficaram feridos e, além deles, os únicos sobreviventes foram Ousama, o irmão do marido, e Mohamed, primo deles.
"Eu desmaiei e quando acordei, ouvi Mohamed me chamando, mas não conseguia me mover ou falar. Então meu marido e seu irmão me encontraram. Estava escuro e não conseguíamos ver nada. Chamamos mas ninguém mais respondeu, só dava para ouvir os aviões passando acima de nós. Nos escondemos nos destroços até amanhecer. Foi quando encontramos o corpo de Tulip. Nossa bebê estava morta, nós a enterramos ali perto, debaixo de uma árvore", conta a síria.
Ousama e Mohamed foram mortos dias depois em mais um bombardeio, quando foram chamar vizinhos para tentar fugir. Em 17 de setembro, em meio a um grupo com outras dezenas de sobreviventes, Rasha e Abdulhawad conseguiram chegar ao território controlado pelo Exército Democrático da Síria e sair da linha de frente do combate.
Após perder 39 parentes, incluindo a filha, em uma das frentes de combate mais sangrentas da guerra na Síria, Rasha Badran não se conforma com os bombardeios contra civis. "Não entendo por que eles nos bombardearam. Será que os aviões de reconhecimento não perceberam que todos ali eram de famílias civis?", questiona.