'Saio de casa sem saber se volto', diz jovem sobre vida no Afeganistão
Mujtaba Osmani mora em uma das maiores cidades do país e já esteve perto de ataque. Para especialistas, terroristas atuam para enfraquecer governo
Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7
“Saio de casa todas as manhãs para trabalhar sem saber se estarei de volta ou serei atingido por uma bomba.” É assim que o afegão Mujtaba Osmani, de 24 anos, descreve a vida em seu país. Osmani nasceu na cidade de Mazar-e-Sharif, a quarta maior do Afeganistão, onde vive até hoje. Em entrevista ao R7, o jovem afirma que a rotina de um cidadão comum na região é se sentir constantemente ameaçado por grupos terroristas.
— Eles estão por toda a parte em nosso país. Ainda não conseguiram chegar ao centro de grandes cidades como Cabul e Mazar-e-Sharif, mas atuam em zonas periféricas. Os ataques acontecem com frequência no interior. O que aumentou nosso medo recentemente foram os atentados desde o começo do ano em Cabul, nossa capital. Mais de cem inocentes morreram e muitos ficaram feridos.
No último 20 de janeiro, um grupo de homens armados invadiu um hotel de luxo em Cabul e deixou pelo menos 43 pessoas mortas. O ataque foi reivindicado pelo Taleban — que, uma semana depois, também foi responsável pela explosão de uma ambulância no centro de cidade que deixou mais de 100 mortos.
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O Daesh (também conhecido como Estado Islâmico), por sua vez, perpetrou um atentado contra uma academia militar na capital afegã no último dia 29 que matou ao menos 11 soldados. Antes disso, o grupo havia invadido o escritório da ONG Save The Children na cidade de Jalalabad, fazendo pelo menos cinco mortos e mais de 20 feridos.
Osmani, que trabalha como gerente de vendas em uma empresa de comunicação, relata que esteve muito perto do centro de um ataque do Taleban dois anos atrás, quando um homem-bomba jogou um caminhão contra o consulado alemão em Mazar-e-Sharif, matando seis pessoas e ferindo mais de 120.
— Eu estava dirigindo a 200 metros do prédio. A explosão foi tão grande que os espelhos retrovisores e as janelas de vidro do meu carro trincaram.
Terroristas contra o governo
Em comunicado divulgado no início do mês, os departamentos de Segurança e Defesa do Afeganistão confirmaram que mais de 20 organizações extremistas atuam no país. As maiores são Taleban, Al Qaeda, Daesh e Haqqani — que contam com o apoio de menores como Lashkar-e-Taiba, Lashkar-e-Jhangvi, Jaish-e-Mohammad e Panjabi.
"Terroristas querem abalar estrutura do governo e desafiar poder econômico e militar dos EUA"
Peterson Silva, professor de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos do Exército Brasileiro, considera que os grupos terroristas atuam no Afeganistão para estabelecer seu poder e enfraquecer a consolidação de um governo central.
— O Taleban já controlou o país, mas há mais de uma década, desde o início dos anos 2000, foi retirado do poder com a ajuda militar dos Estados Unidos. Desde então, existe um processo de implementação de um governo, com presidentes, mas os terroristas querem abalar essa estrutura e desafiar o poder econômico e militar dos americanos. Atacam cidades como Cabul para mostrar aos cidadãos que esse governo não garante a segurança de ninguém.
O professor Sérgio Luiz Cruz Aguilar, que é livre-docente em segurança internacional na Unesp (Universidade Estadual Paulista), reforça o coro — e lembra das dificuldades do estabelecimento de um governo central em um país como o Afeganistão.
— Se nós observarmos a história do país, nunca houve um governo que se estendesse pelo território todo. Hoje, o presidente controla plenamente Cabul e seu entorno e, em demais áreas, governa por meio de acordos e alianças com chefes tribais, líderes de clãs e até senhores de guerra. Os russos ficaram no Afeganistão dez anos e nunca conseguiram controlar todo o país. Os EUA estão lá desde 2001, já contaram com a ajuda dos europeus e da Otan (aliança militar ocidental) e também não conseguem.
Nos últimos três anos, o governo afegão impulsionou várias iniciativas de diálogo, convidando o Taleban a participar de uma solução negociada no conflito. Segundo a mídia local, a recente escalada de violência especialmente em Cabul está relacionada à estratégia adotada desde o ano passado por Donald Trump — que mandou mais tropas norte-americanas ao país e ordenou um aumento em ataques aéreos e assistência às forças afegãs.
"O Emirado Islâmico tem uma mensagem clara para Trump e seus bajuladores: se você for adiante com uma política de agressão... não espere que os afegãos cultivem flores em resposta a isso", afirmou em um comunicado o porta-voz do Taleban, Zabihullah Mujahid.
"Além de competir por áreas de influência%2C terroristas ordenam ataques para demonstrar a própria força"
A possibilidade de que as organizações terroristas ainda ordenem ataques para demonstrar força e competir entre si também não deve ser descartada, conforme explica Aguilar.
— O que se percebe, na realidade, é que em todos os lugares onde houve presença desses grupos, eles se tornaram rivais. Além de uma competição por estabelecer áreas de influência ou sob controle de cada organização, há ainda a intenção de comprovar a própria força.
Perspectivas para o futuro
Na opinião do jovem Mujtaba Osmani, falta a ajuda do vizinho Paquistão para conter o crescimento dos grupos terroristas no Afeganistão.
— O governo precisa de uma estratégia que destrua o Taleban sem matar inocentes. Há mais de dez anos, dezenas de países têm soldados aqui no Afeganistão para tentar acabar com o terrorismo, e ninguém consegue. Nesse conflito, muitos de nossos cidadãos já morreram. Eu não acredito em negociação com grupos terroristas, infelizmente, mas creio que o nosso governo afegão precisa negociar com as autoridades do Paquistão, para que eles também ajudem na luta, já que o Taleban e outros grupos treinam seus militantes em cidades paquistanesas como Wazirabad. Depois de serem treinados lá, eles vêm para o nosso país, matar nosso povo.
O professor da Unesp, por sua vez, pondera que não existe solução a curto prazo.
— Quando os EUA chegaram ao Afeganistão em 2001, eles quebraram um padrão de convivência dentro da sociedade e da política afegã, que era a liderança por meio de clãs e tribos. Desde então, por conta desse padrão secular de convivência com que os afegãos estão acostumados, os norte-americanos nunca conseguiram estabelecer uma nova lógica que fosse aceita dentro do Estado. E não é uma estratégia militar que vai fazer isso.
Peterson Silva concorda — e acrescenta que, enquanto uma ideologia extremista existir na região, pouca coisa deve mudar.
— Tudo isso que se vê nos últimos dez, vinte anos, envolve uma série de fatores culturais, históricos e religiosos que marcam uma ideologia. E ideologia não se vence apenas com armas, ideologia tem que se combater com outra ideologia. Ao mesmo tempo, não podemos nos iludir dizendo que basta chegar lá com escolas e programas de desenvolvimento econômico. As próprias instituições educacionais e econômicas que existem lá hoje já são alvo dos terroristas.
O especialista conclui que não existe saída fácil: “Não há receita de bolo. É o contrário: exige uma dosagem multidimensional de soluções que, no momento, não encontram circunstâncias propícias para serem aplicadas — o governo está frágil, os grupos insurgentes estão fortalecidos e não se encontram isolados no Afeganistão, mas interligados com organizações no Paquistão e no Iraque”.