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Séries de massacres escancaram o terror das gangues que comandam o Haiti

Crise de violência no país mostra total falta de controle das autoridades; ataques deixaram mais de 350 mortos em 2024; maior hospital público foi alvo na véspera das festas

Internacional|David C. Adams e Frances Robles, do The New York Times

Policiais do Quênia participaram da Missão Multinacional de Apoio à Segurança durante visita do presidente William Ruto do Quênia a Porto Príncipe Adriana Zehbrauskas/The New York Times

A chegada de mais 150 policiais estrangeiros ao Haiti, no primeiro fim de semana de janeiro, ampliou a força internacional de segurança encarregada de combater as gangues poderosas e bem armadas que há meses vêm tocando o terror no país – mas, a julgar pelo histórico local, é pouco provável que eles façam alguma diferença.

Os massacres contínuos que mataram mais de 350 pessoas, cometidos depois do ataque ao maior hospital público do país, na véspera do Natal, escancaram a total falta de controle das autoridades sobre a crise profunda em que se vê a nação.

A coletiva que anunciaria a reabertura de um hospital público, fechado há nove meses pela brutalidade das facções, também sofreu um ataque, resultando em um policial e dois repórteres mortos. Pelo menos outros 25 tiveram de esperar duas horas por resgate enquanto protegiam sete colegas feridos, rasgando pedaços das próprias roupas para improvisar torniquetes e tampões de estanque das hemorragias, porque, segundo testemunhas, os poucos médicos presentes fugiram para tentar se salvar. Alguns jornalistas conseguiram escapar escalando um muro nos fundos. “O chão e nossas roupas ficaram cobertos de sangue. O hospital não tinha nada para tratar das vítimas”, contou Jephte Bazil, do portal de notícias on-line Machann Zen Haïti.

Antes dessa investida, outras duas chacinas em diferentes partes do país deixaram mais de 350 mortos e evidenciaram as falhas e os problemas das autoridades locais e da força-tarefa internacional encarregadas de proteger os civis inocentes. Uma delas, em dezembro, foi perpetrada em uma área ampla e pobre de Porto Príncipe, onde a falta de policiamento permitiu que inúmeros idosos fossem mortos, esquartejados e jogados no mar sem o conhecimento das autoridades. Segundo a ONU, pelo menos 207 foram assassinados entre os dias 6 e 11. A outra, mais ou menos na mesma época, durou três dias, e foi cometida a pouco mais de 110 quilômetros ao norte, em Petite Rivière. Segundo os líderes comunitários, 150 foram mortos no confronto entre membros das gangues e grupos de justiceiros.


As três ocorrências fazem parte da mortandade implacável que toma conta do Haiti há dois meses, expondo a fragilidade do governo interino, pondo em dúvida a viabilidade da missão de segurança intermediada pelos EUA e deixando a transição rumo às eleições e a uma liderança mais estável à beira de um colapso. De fato, com Donald Trump prestes a assumir o controle de uma empreitada internacional subfinanciada e considerada ineficiente, o futuro do Haiti nunca pareceu tão sombrio.

Para o ministro da Justiça, Patrick Pelissier, os 150 novos soldados, na maioria guatemaltecos, podem ajudar a mudar a situação. Ele também fez questão de enfatizar que algumas áreas controladas pelas facções foram retomadas e que o governo está cuidando dos desalojados. “O Estado não entrou em colapso; está aí, vivo, atuante.”


Para muitos especialistas, porém, o Haiti já é um Estado falido, sim, com vários grupos do governo interino envolvidos em brigas internas e aparentemente sem nenhuma estratégia para combater o agravamento da brutalidade e abrir caminho para as eleições, que deveriam ser efetuadas este ano. “Disputas políticas resultam em violência. As gangues sabem muito bem quando é hora de se defender e de atacar, e fazem essa transição quando a consideram necessária”, explicou Diego Da Rin, analista haitiano do Grupo Internacional de Crises.

As matanças também chamaram a atenção para a fragilidade da missão de Apoio Multinacional à Segurança, que conta com o apoio dos EUA, reúne centenas de policiais, em boa parte quenianos, e começou a chegar em junho. Na verdade, deveria reunir 2.500 oficiais, mas, com pouca verba internacional, conta com muito menos que isso, sem condições, portanto, de atuar em muitas áreas dominadas pela bandidagem.


De acordo com vários especialistas, as chacinas da véspera de Natal deixaram a impressão de um governo totalmente inepto. O anúncio da reabertura do hospital, por exemplo, foi feito em um reduto criminoso, praticamente sem nenhuma segurança – e, mesmo depois do início do ataque, a polícia levou pelo menos uma hora para chegar, apesar de estar praticamente ao lado. O ministro da Saúde, Duckenson Lorthe Blema, que estava doente e chegou atrasado, acha que seria um dos alvos. “Não sou louco; minha intenção era boa, mas acabou dando tudo errado. Foi um fiasco e resolveram pôr a culpa em mim”, declarou em entrevista o médico, que foi demitido logo depois da investida.

Blema insistiu em dizer que pedira destacamento policial na ocasião e não soube explicar por que a proteção acabou sendo mínima. Justificou a falta de suprimentos do hospital com a alegação de que pretende abri-lo “aos poucos”, apenas como clínica de atendimento urgente, ou seja, sem condições de atender os feridos pelos disparos.

Já Pelissier admitiu a falta de coordenação entre o Ministério da Saúde e a polícia e de uma análise anterior sobre o nível adequado de segurança para o evento. “Bairros inteiros estão sendo controlados pelas gangues, mas a polícia está trabalhando para recuperá-los. Na verdade, a crise é grave na capital e no Vale do Artibonite, mas o resto do país está operando normalmente.”

A situação caótica em que o Haiti se encontra foi a grande responsável pelo assassinato do último presidente eleito, Jovenel Moïse, em julho de 2021. As gangues, faturando com postos de verificação ilegais, extorsão e sequestros, usaram o vácuo político para expandir o território de ação. Sem uma liderança eleita, a nação atualmente é governada por um conselho de transição composto de partidos rivais, com uma presidência interina rotativa entre os membros.

O pico de violência mais recente teve início em 11 de novembro, quando o comitê substituiu o primeiro-ministro e as facções aproveitaram o momento de agitação política para atacar um avião comercial norte-americano e aumentar o nível de brutalidade. Desde então, o principal aeroporto do Haiti se mantém fechado. Mais de 5.300 pessoas foram mortas em 2024, e o número total de desalojados já supera os 700 mil, segundo a Organização Internacional para Imigração.

Postos de verificação clandestinos e emboscadas prejudicam o fornecimento de alimentos, e a ONG Mercy Corps avalia que quase cinco milhões de pessoas – metade da população nacional – já enfrentam uma insegurança alimentar grave.

O novo premiê, Alix Didier Fils-Aimé, na única coletiva de que participou desde que assumiu o cargo, há dois meses, anunciou um aumento salarial para os policiais e se disse empenhado em restaurar o Estado de direito. Entretanto, nem ele nem os membros do conselho presidencial concordaram em nos conceder entrevista. Em um discurso no dia de Ano-Novo, porém, Leslie Voltaire, presidente do conselho, fez questão de reafirmar que as eleições serão promovidas ainda este ano, mas comparou a situação atual à de uma guerra. Segundo um porta-voz da polícia, ele preferiu se abster de comentários.

O comandante da missão liderada pelo Quênia, Godfrey Otunge, que também não atendeu aos nossos pedidos de entrevista, reclamou da falta de reconhecimento das realizações de seu agrupamento. Em postagem recente na internet, afirmou que “o futuro do Haiti é promissor”. Já o Departamento de Estado norte-americano, que contribuiu com US$ 600 milhões para a empreitada, defendeu a atuação da missão, observando que uma de suas operações conjuntas com a polícia resultou na morte de um criminoso famoso. Falou também da reabertura recente de duas delegacias, da presença permanente que a força-tarefa agora tem perto do porto principal, há muito controlado pelo crime, e do envio por parte do governo federal de vários carregamentos de material em dezembro.

Apesar disso, os especialistas afirmam que, se não houver um aumento significativo no volume de ajuda externa, é pouco provável que a decadência do país seja reversível. “O governo haitiano não deixa claras suas ações e, infelizmente, no momento tem de optar entre escolhas ruins e péssimas”, resumiu Sophie Rutenbar, professora visitante da Universidade de Nova York que ajudou a coordenar as operações da ONU no Haiti até 2023.

Parte dos jornalistas feridos culpa as gangues e o governo pela lambança que custou tantas vidas. “Se o Estado tivesse assumido suas responsabilidades, nada disso teria acontecido. É uma força legal e não poderia ter dado acesso aos criminosos aos locais que não poderia cobrir”, lamentou Velondie Miracle, que levou sete tiros na perna, na têmpora e na boca.

(André Paultre contribuiu de Porto Príncipe.)

c. 2025 The New York Times Company

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