Sírios contam como sobreviveram a maior bombardeio desde o Vietnã
Cerco à cidade de Raqqa, antiga 'capital' do Daesh, teve a maior quantidade de projéteis de artilharia disparados desde a Guerra do Vietnã
Internacional|Fábio Fleury, do R7
O relatório da Anistia Internacional sobre o cerco a Raqqa, na Síria, que relata os horrores sofridos pela população civil da cidade que foi considerada a capital do 'califado' do Daesh, mostra como famílias inteiras foram perdidas naquele que foi o maior bombardeio promovido pelos EUA desde a Guerra do Vietnã.
O cerco durou de junho a outubro de 2017 e terminou com a derrota dos radicais do Daesh, mas também causou prejuízos incalculáveis em termos de mortos, feridos e destruição da infraestrutura urbana.
'35 mil projéteis'
No documento, a entidade cita uma declaração de um dos oficiais mais graduados do exército norte-americano, o major-sargento John Wayne Troxell. Segundo ele, as tropas dos EUA, que apoiavam o Exército Democrático da Síria na retomada de Raqqa, dispararam dezenas de milhares de projéteis contra a cidade.
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"Em cinco meses, os fuzileiros navais dispararam 35 mil projéteis de artilharia contra alvos do Daesh. Eles dispararam mais tiros em Raqqa do que qualquer outro batalhão dos fuzileiros ou do exército desde a guerra do Vietnã. A todo minuto de cada hora nós abrimos fogo contra o Daesh em Raqqa, seja com morteiros, artilharia, mísseis, foguetes, drones, etc", afirmou Troxell em uma entrevista em janeiro.
Com tamanho poder de fogo, muitas vezes em ataques com armamentos com pouca capacidade de precisão, as baixas civis em grandes números foram inevitáveis. Famílias inteiras acabaram dizimadas.
'Caminhamos sobre o sangue dos mortos'
A família Hashish vivia em um bairro humilde de Raqqa. Por não terem recursos, eles não conseguiram deixar a cidade no início dos ataques e acabaram emboscados entre o fogo pesado da artilharia da coalizão liderada pelos EUA e os atiradores de elite e os campos minados do Daesh.
Nove membros da família morreram quando o prédio onde eles estavam abrigados foi atingido por um bombardeio da coalizão. Na tentativa de fugir, outros sete morreram quando tentavam atravessar uma estrada infestada de minas plantadas pelo Daesh.
"Os que ficaram morreram e os que tentaram fugir também morreram. Não tínhamos como pagar para sair de lá e ficamos encurralados. Conseguimos escapar porque caminhamos sobre o sangue dos mortos que explodiram enquanto tentavam fugir à nossa frente", contou uma das poucas sobreviventes, Munira Hashish, à Anistia.
Tragédia familiar
Os Aswads eram uma família de comerciantes, que por toda a vida trabalharam para construir um prédio em Raqqa. Alguns deles ficaram para trás, numa tentativa de proteger seu patrimônio. Eles estavam escondiso no porão quando um bombardeio da coalizão os atingiu, matando oito pessoas na hora.
Mohammed Aswad, o único sobrevivente, contou à Anistia Internacional que seu irmão, Ammar, que tinha deixado a cidade, morreu dias depois quando tentou voltar para resgatar os corpos dos mortos. Ele pisou em uma mina plantada pelo Daesh.
Último bombardeio
Na manhã de 12 de outubro de 2017, quando o Daesh estava prestes a ser derrotado, a coalizão bombardeou o bairro de Harat al-Badu, último reduto dos radicais, e destruiu completamente a casa de Fayad Mohammed, de 80 anos. Morador do local há mais de 50 anos, ele se recusava a abandonar sua casa. Morreu juntamente com outros 17 parentes e vizinhos, no último bombardeio do cerco.
Horas mais tarde, no mesmo dia, os combatentes do Exército Democrático da Síria e da coalizão ocidental liderada pelos EUA acertaram um cessar-fogo com os militantes do Daesh, que foram escoltados para fora da cidade.