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Terrorismo internacional: a história de ‘Ivan o Troll’ e suas armas virais impressas em 3D

Segundo investigações, pseudônimo é de John Elik, um fabricante de armas de 26 anos dos Estados Unidos

Internacional|Lizzie Dearden e Thomas Gibbons-Neff, do The New York Times

armas 3D ivan troll terrorismo - NYT Koblenz Public Prosecutor's Office, Germany via The New York Times

Londres – Depois de uma tentativa de assassinato executada por uma gangue na cidade francesa de Marselha, no ano passado, a polícia encontrou o que parecia ser um rifle de assalto de brinquedo, aparentemente fabricado com peças de plástico e Lego. “Mas a arma era letal”, disse Hervé Pétry, coronel da gendarmaria nacional.

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Nos últimos três anos, esse modelo de arma de fogo semiautomática de fabricação caseira, conhecido como FGC-9, apareceu nas mãos de paramilitares da Irlanda do Norte, de rebeldes em Mianmar e de neonazistas na Espanha. Em outubro, um adolescente britânico vai ser condenado por fabricar uma FGC-9, em um dos mais recentes casos de terrorismo relacionados a essa arma.

Um grupo on-line, conhecido como Deterrence Dispensed (Dissuasão Distribuída), publica um manual de instruções gratuito para construir a arma. Esse documento afirma que as pessoas do mundo inteiro devem estar armadas e preparadas: “Juntos, podemos derrotar definitivamente a violação de nosso direito natural de portar armas, defendermo-nos e reagirmos contra a tirania.”

Historicamente, tem sido difícil promover esse tipo de liberalismo norte-americano em muitas outras partes do mundo. Por mais que algumas pessoas acreditassem na teoria, as leis rigorosas tornavam tão complicado comprar uma arma que o conceito quase não fazia sentido. Mas a FGC-9 está mudando essa situação. “Não é só uma arma. É também uma ideologia”, observou Kristian Abrahamsson, oficial de inteligência da polícia da alfândega sueca, informando que dezenas de FGC-9 surgiram em seu país nos últimos anos.


O “The New York Times” investigou o crescimento da FGC-9 desde que era um projeto de garagem desenvolvido por um amador até se tornar uma arma letal usada por insurgentes, terroristas, narcotraficantes e milicianos de pelo menos 15 países. Embora tenham sido projetadas e distribuídas inúmeras pistolas impressas em 3D na internet, forças de segurança internacionais dizem que a FGC-9 é, de longe, a mais comum. A arma é tão desejada entre extremistas de direita no Reino Unido que a posse e o compartilhamento de seu manual de instruções são considerados crimes de terrorismo.

Ninguém faz mais para promover a FGC-9 e a ideologia do que seu coprojetista, que, on-line, se autodenomina Ivan o Troll. Figura de proa do Deterrence Dispensed, ele apareceu em inúmeros vídeos e podcasts no YouTube, mas sempre usando seu pseudônimo. Documentos judiciais, registros corporativos e informações publicadas em suas contas nas redes sociais ligam o personagem Ivan o Troll a John Elik, de 26 anos, fabricante de armas do Illinois. Sobrinho de uma deputada estadual, Elik se tornou uma das figuras mais importantes da incipiente indústria internacional de armas impressas em 3D, que é vista pelas forças policiais do mundo inteiro como uma ameaça às restrições ao acesso a armamentos. Nesse aspecto, as autoridades e os defensores do direito às armas concordam.


O “Times” enviou um pedido de entrevista e um resumo desta matéria ao endereço de e-mail de Elik. Uma resposta foi enviada de uma conta de Ivan o Troll, recusando-se a responder às perguntas e afirmando que não acreditava que receberia um tratamento justo.

Nos Estados Unidos, as armas impressas em 3D são reguladas por uma mistura de leis estaduais. O Illinois restringiu a venda e a posse de componentes de armas caseiras, exceto por comerciantes e fabricantes de armas de fogo. Como Elik é um fabricante licenciado, não há indícios de que esteja violando essa lei. A legislação do estado exige que os fabricantes adicionem um número de série aos componentes das armas caseiras. Os vídeos publicados na internet incentivam o espectador a conhecer as leis locais.


A maioria das armas fabricadas em série no século XX, mesmo as que atualmente são comercializadas para defesa pessoal, foram originalmente projetadas para militares e caçadores. A FGC-9, por outro lado, foi criada com o objetivo explícito de armar o maior número possível de pessoas comuns. FGC é uma abreviação que representa o que seus criadores pensam sobre a restrição de armas – as letras “g” e “c” significam “gun control” (controle de armas, em inglês), enquanto o “f” representa um palavrão. O nove é em razão da bala de nove milímetros que é disparada pela arma.

O uso da FGC-9 por insurgentes opositores à junta militar de Mianmar faz parte do plano declarado de seus criadores, uma materialização da esperança de que elas possam ser usadas para enfrentar o Estado. No e-mail que enviou ao “Times”, Elik escreveu que “é um erro se concentrar em policiais europeus reclamando de um pequeno número de armas recuperadas e em tiroteios nos quais ninguém ficou ferido, em vez de seu uso como ferramenta de libertação”.

O protótipo

O principal designer da arma foi Jacob Duygu, alemão de ascendência curda. A Alemanha exige que os proprietários de armas tenham licença, mas Duygu queria ter uma arma de fogo ao seu modo. E assumiu a missão de dar a qualquer um as ferramentas para fazer o mesmo, sobretudo em países com leis rigorosas de controle de armas. Segundo Rajan Basra, pesquisador sênior do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização, que examinou a proliferação da FGC-9, Duygu desenvolveu uma afinidade pelo liberalismo norte-americano e pelo direito à posse de armas garantido pela Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos. O alemão era conhecido na internet como JStark, em homenagem ao major-general John Stark, líder militar da Revolução Americana.

Contas de redes sociais vinculadas a Elik expressaram opiniões semelhantes. “Os civis precisam de armas de assalto porque ter uma arma feita para matar pessoas é muito importante para a autodefesa. Se for elaborada para fazer isso de forma rápida e fácil, melhor ainda”, dizia uma postagem.

armas 3D ivan troll terrorismo - NYT Daniel Berehulak/The New York Times - 07.05.2024

O design de Duygu foi publicado em março de 2020 com o objetivo declarado de contornar as leis sobre armamento. As versões caseiras de armas de fogo existem há séculos, mas a do alemão representou um grande avanço: a FGC-9 pode ser construída completamente do zero, sem peças comerciais, que geralmente são reguladas e monitoradas por agências de segurança internacionais. Qualquer pessoa com uma impressora 3D comercial, centenas de dólares em materiais, algum conhecimento de metalúrgica e muita paciência pode se tornar proprietária de uma arma.

O lançamento da FGC-9 inspirou entusiastas a sugerir modificações. Entre eles estava Elik, que desenvolveu um processo para fazer os sulcos em espiral, ou estriamento, dentro do cano da arma. Um ano depois, foi lançada uma nova versão da FGC-9, na qual o pseudônimo de Elik aparecia como cocriador.

Basra e Nathan Mayer, pesquisador de segurança, foram os primeiros a vincular Elik às contas de Ivan o Troll, usando pistas on-line depois que ele foi identificado em um processo judicial como proprietário de um site que promovia armas impressas em 3D. O “Times” replicou e expandiu a investigação, usando fotos e vídeos que Elik publicou de sua casa e de campos de tiro na propriedade de sua família, incluindo a de sua tia, Amy Elik, deputada estadual republicana e defensora fervorosa do direito às armas, que votou contra a proibição estadual de armas de fogo caseiras. Ela não respondeu a um pedido de comentário.

Duygu foi encontrado morto em 2021, por causas indeterminadas, poucos dias depois de ter sido interrogado pela polícia alemã. Elik rapidamente se tornou o porta-voz mais proeminente da arma criada por eles e passou a desenvolver os próprios designs de armas impressas em 3D, incluindo versões de um Kalashnikov e de uma submetralhadora MP5. “Esse mercado puro de ideias não foi criado por acidente, ainda que faça mais sucesso do que Stark ou eu jamais imaginamos”, uma das contas vinculadas a Elik escreveu na internet.

Viralização

A arma recebeu grande atenção pela primeira vez em dezembro de 2020, quando Matthew Cronjager, neonazista britânico, foi detido e acusado de tentar recrutar e armar uma milícia. Entre os alvos estavam o governo britânico, judeus, homossexuais, muçulmanos e membros de grupos étnicos minoritários.

Cronjager, então com 17 anos, havia baixado um manual do Deterrence Dispensed para fabricar munição de nove milímetros e as instruções da FGC-9. Foi detido depois de tentar pagar a um agente disfarçado para fabricar a arma. Ele, que mais tarde foi condenado e ficou preso durante mais de 11 anos, disse que queria derrubar o governo e iniciar uma revolução, segundo consta nos registros judiciais.

Ivaylo Stefanov, da unidade de armas ilícitas da Interpol, declarou: “Todo mundo pensava que levaria décadas para que a tecnologia avançasse e as impressoras pudessem estar à disposição do cidadão comum.”

A Interpol é informada de apreensões da FGC-9 pelo menos a cada dois meses, e Stefanov comentou que provavelmente existem muitas mais não notificadas: “Vemos isso até em países europeus que nunca tiveram casos desse tipo.”

A mensagem midiática de Ivan o Troll é que tudo isso é pura hipocrisia. Ele apontou que os governos ocidentais abastecem insurgentes e líderes autoritários pelo mundo inteiro com armas de guerra e, em 2022, afirmou em entrevista: “Estou compartilhando um arquivo de computador. Se sou culpado por divulgar informações, o que isso faz deles?”

Stefanov e outras pessoas disseram que, à medida que a tecnologia avançar, é muito provável que fabricantes amadores possam usar peças impossíveis de ser rastreadas para construir armas que disparam como metralhadoras. O governo Biden está tentando regulamentar os componentes de armamento caseiro como armas de fogo, iniciativa que a Suprema Corte vai analisar em breve.

Cada vez mais, a FGC-9 é produzida não só por amadores individuais e extremistas, mas também por operações criminosas que fabricam armas para vender ou alugar. Fábricas improvisadas foram encontradas na Austrália, na França e na Espanha. “Existe um elemento ideológico claro. Mas não devemos ser ingênuos. Acima de tudo, há um desejo de ganhar muito dinheiro”, comentou Pétry, o coronel francês.

c. 2024 The New York Times Company

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