Traição e voo secreto: como os EUA capturaram um dos maiores traficantes do México
Caçada de ‘El Mayo’ durou 40 anos e só terminou após ele ser traído pelo filho de El Chapo, também preso nos Estados Unidos
Internacional|Alan Feuer, Natalie Kitroeff e Emiliano Rodríguez Mega, do The New York Times
Parecia uma história tirada de um thriller sobre o narcotráfico: um dos maiores traficantes de drogas do México foi atraído para um avião, cruzou a fronteira e foi entregue aos agentes federais dos Estados Unidos pelo filho de seu ex-parceiro no crime.
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Por mais improvável que possa parecer, tudo indica que foi exatamente isso que se passou na noite de quinta-feira, dia 25, quando um turboélice Beechcraft King Air pousou em um pequeno aeroporto municipal nos arredores de El Paso, no Texas, e desembarcou um dos homens mais procurados do México: Ismael Zambada García, um dos fundadores do notório cartel de drogas de Sinaloa.
Ele, que é conhecido como El Mayo, durante décadas evitou ser capturado por autoridades mexicanas e norte-americanas, levando uma vida de simplicidade luxuosa nas montanhas de Sinaloa – apesar da recompensa de US$ 15 milhões oferecida pelos Estados Unidos por sua cabeça.
Mas, no fim, segundo autoridades norte-americanas, ele foi traído por um inimigo improvável: o filho de seu aliado criminoso mais próximo, Joaquín Guzmán Loera, o infame traficante conhecido como El Chapo, que agora cumpre sentença de prisão perpétua em uma prisão federal dos EUA.
Autoridades norte-americanas informaram que o filho de El Chapo, Joaquín Guzmán López, enganou Zambada García para que ele embarcasse no avião, dizendo-lhe que iam ver imóveis no norte do México. O homem mais velho não tinha ideia de que estava a caminho do Texas, onde seria entregue a agentes dos Estados Unidos que o perseguiam havia muito tempo.
O dramático voo transfronteiriço foi feito depois de anos de contato silencioso entre Guzmán López e um pequeno grupo de oficiais de segurança dos Estados Unidos, do FBI e do Departamento de Segurança Interna, que o vinham perseguindo ferozmente, bem como a seus três irmãos e Zambada García, desde a condenação histórica de Guzmán Loera por conspiração de tráfico de drogas, há cinco anos.
Ainda não está claro até que ponto os oficiais influenciaram ou conduziram os eventos do dia 25, mas eles estavam cientes de que Zambada García estava no avião quando este se aproximava da fronteira dos Estados Unidos, segundo duas pessoas familiarizadas com o assunto.
E, no fim, independentemente do papel que desempenharam, os agentes dos Estados Unidos conseguiram o que queriam: apreenderam um alvo criminal extremamente importante, que havia escapado da captura. Fazia muito tempo que duvidavam que as autoridades mexicanas pudessem – ou quisessem – detê-lo.
Perguntas ainda sem respostas
Quase imediatamente, as duas prisões desencadearam uma torrente de perguntas no México, onde o governo declarou que não tinha desempenhado nenhum papel e que não estava ciente de nada até que a embaixada dos Estados Unidos ligou e deu a notícia de que Zambada García e Guzmán López estavam sob custódia.
Questionada por repórteres na manhã do dia seguinte, Rosa Icela Rodríguez, secretária de Segurança do México, disse que o governo não sabia se a prisão fazia parte de um acordo com os promotores dos Estados Unidos: “Isso faz parte das investigações, seja uma captura, seja uma rendição. Cabe ao governo dos Estados Unidos explicar essa situação.”
O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, afirmou que sua administração espera que o governo dos Estados Unidos forneça um “relatório completo” de como foram feitas as detenções – incluindo se houve um acordo prévio com Zambada García ou com Guzmán López. “Não há desconfiança. O que sempre pedimos é respeito”, acrescentou.
Não houve um pedido formal de extradição para Zambada García, que foi indiciado nos Estados Unidos há mais de duas décadas, com acusações de conspiração com o tráfico de drogas em vários estados. E, embora as autoridades dos Estados Unidos não tenham conseguido capturá-lo dentro do México, mesmo com a ajuda de tropas de elite da Marinha mexicana, houve várias tentativas nos últimos anos.
Ao enganar Zambada García para embarcar no avião, Guzmán López deu aos Estados Unidos a recompensa que o país procurava havia muito tempo. E, ao fazer isso, também pode ter aumentado suas chances de conseguir um acordo favorável para si mesmo e para o irmão mais próximo, Ovidio Guzmán López, que já estava sob custódia federal dos Estados Unidos.
Zambada García não quis comparecer pessoalmente no dia seguinte à sua prisão a uma audiência no Tribunal Distrital dos Estados Unidos, em El Paso, e entrou com uma declaração de inocência das acusações de conspiração de tráfico de drogas por meio de um advogado. No dia 31 de julho, esteve presente a uma audiência de detenção e continua sob custódia.
Guzmán López compareceu no dia 30 de julho à sua audiência inicial no Tribunal Distrital dos Estados Unidos, em Chicago.
Comunicação sigilosa
Autoridades dos Estados Unidos mantiveram um canal de comunicação silencioso com Guzmán López durante algum tempo. Ele passou a ser usado com mais frequência depois da extradição de Ovidio para enfrentar um julgamento em Chicago, em setembro passado, segundo três pessoas familiarizadas com sua situação.
Por mais que ainda não esteja claro quanto esse contato influenciou sua decisão de enganar Zambada García, entregar um prêmio como El Mayo aos promotores dos Estados Unidos só pode aumentar suas chances de obter termos amigáveis em qualquer acordo judicial futuro.
Autoridades norte-americanas também estavam negociando discretamente com Zambada García, havia pelo menos três anos, sobre sua possível rendição, embora, no fim, essas conversas não tenham levado a lugar algum.
No dia 26, Rodríguez sugeriu que as autoridades acreditavam que um avião particular Cessna havia transportado os dois chefões do crime para fora do país, identificando publicamente o piloto como um cidadão norte-americano chamado Larry Curtis Parker.
Ela disse que o avião decolou por volta das oito da manhã do dia 25. Mas um funcionário dos Estados Unidos familiarizado com os fatos do caso disse que o avião que levou os dois homens de Hermosillo era um Beechcraft que saiu do aeroporto por volta das duas da tarde.
Contactado por telefone na tarde do dia 26, um homem que se identificou como Parker afirmou que as autoridades mexicanas estavam erradas ao nomeá-lo como o piloto que transportou os dois homens pela fronteira. Ele reconheceu que pilotava um pequeno Cessna e disse que viu um Beechcraft estacionado perto de seu avião, no aeroporto de Hermosillo, no dia 25. Alegou que não tinha nenhuma relação com figuras do cartel: “Sou só um norte-americano honesto e trabalhador.”
Um funcionário do Ministério da Segurança do México, que não estava autorizado a falar publicamente, informou que uma investigação vai determinar se houve algum erro na identificação do piloto.
A prisão de Zambada García – considerado há muito tempo um padrinho no submundo de seu país e um dos traficantes mais astutos ainda em atividade – repercutiu em todo o México como um dos maiores golpes contra o crime organizado dos últimos anos.
“Essa é a prisão que verdadeiramente pode abalar o mercado mexicano”, comentou Vanda Felbab-Brown, pesquisadora sênior da Instituição Brookings e especialista em política global de drogas, acrescentando que pode levar a “uma quantidade tremenda de violência e instabilidade em todas as Américas”.
“Se Zambada García foi de fato traído, vai ter guerra dentro de Sinaloa”, disse Eduardo Guerrero, analista de segurança que vive na Cidade do México, gerando ondas brutais de violência nas próximas semanas. Ele acrescentou que um cartel de Sinaloa enfraquecido também pode levar o cartel rival, Jalisco Nova Geração, a avançar para novos territórios.
No dia 26, pelo menos 200 membros das Forças Especiais mexicanas foram mobilizados para Culiacán, reduto do cartel em Sinaloa, para reforçar a segurança, anunciou o exército mexicano em um comunicado.
A prisão também pode ter implicações políticas, segundo alguns funcionários dos Estados Unidos, sobretudo se Zambada García decidir cooperar com as autoridades norte-americanas e divulgar o que sabe sobre a corrupção em seu país.
O cartel de Sinaloa foi atingido nos últimos meses por uma onda de prisões que visa a alta cúpula da organização.
Em maio, Néstor Isidro Pérez Salas, que as autoridades acreditam ser um dos principais assassinos dos quatro irmãos Guzmán, foi extraditado para Nova York sob acusações de conspiração com o tráfico de drogas. Essa ação faz parte de um extenso processo que identifica os filhos de El Chapo como alguns dos contrabandistas de fentanil mais prolíficos do mundo. Outro suposto assassino do cartel de Sinaloa, Jorge Iván Gastélum Ávila, foi extraditado no ano passado para ser julgado em Washington.
Mas especialistas disseram que as prisões provavelmente não vão influenciar o fluxo de fentanil e de outras drogas que cruzam a fronteira. “Não é um golpe fatal. Todo mundo em Sinaloa lamentou a prisão de El Chapo. Mas, ao mesmo tempo, a organização sobreviveu e continuou crescendo”, observou Valentín Pereda, professor de criminologia da Universidade de Montreal. “Seriam necessários meses de uma guerra verdadeiramente intensa dentro do cartel para que o mundo detectasse uma mudança na dinâmica do tráfico de fentanil. Estamos muito longe desse momento”, acrescentou Felbab-Brown.
c. 2024 The New York Times Company