Tudo que você precisa saber para entender a crise diplomática entre Canadá e Índia
A acusação do primeiro-ministro canadense de envolvimento do governo indiano no assassinato do nacionalista Sikh significa uma forte escalada nas tensões entre os países
Internacional|Do R7
Em 14 de outubro, o governo do Canadá expulsou seis diplomatas indianos, incluindo o alto-comissário, acusando-os de participação em uma ampla rede criminosa criada para intimidar e assediar os siques residentes em seu território. Em retaliação, a Índia também exigiu a saída de seis representantes canadenses.
A medida agravou uma disputa entre as duas nações, que começou em 2023 com um assassinato na Colúmbia Britânica. O primeiro-ministro Justin Trudeau acusou a Índia de orquestrar o crime ousado, dando início a uma série de denúncias e confrontos diplomáticos.
Veja aqui o que se sabe – e não se sabe – sobre os eventos que complicaram e romperam as relações que já foram amigáveis entre a Índia e o Canadá.
1. Como tudo começou?
Hardeep Singh Nijjar, presidente de um templo sique em Surrey, na Colúmbia Britânica, sofreu uma emboscada e foi morto a tiros por três homens mascarados em 18 de junho de 2023. Ativista, defendia uma nação independente no norte da Índia.
Dois meses depois, em setembro, o premiê canadense disse aos legisladores que “agentes do governo indiano” estavam ligados à morte de Nijjar, gerando revolta no governo de lá. Em três de maio, três homens foram presos e acusados formalmente. O governo indiano nega com veemência as imputações de qualquer envolvimento com a ação violenta, alegando que Trudeau está apenas bajulando a comunidade sique em seu país, que é bem grande, para obter benefícios políticos.
2. Quem era Hardeep Singh Nijjar?
Nijjar nasceu no Punjab, no norte da Índia, e se mudou para o Canadá em meados dos anos 90, depois de um período de repressão ao movimento sique por parte do governo. Na nova pátria, trabalhou de encanador, casou-se e teve dois filhos. Conseguiu a cidadania em 2015 e, em 2020, tornou-se presidente do Guru Nanak Sikh Gurdwara, templo em Surrey.
Segundo a carta aberta que escreveu ao governo canadense em 2016, ele se autodescreveu como “um nacionalista sique que apoia o – e acredita no – direito de autonomia e independência do Punjab, ocupado pela Índia, mediante uma futura consulta popular”. Era figura central na província, angariando votos para um referendo em defesa do estabelecimento de uma nação chamada Calistão, que incluiria partes do estado.
O governo indiano o declarou terrorista em 2020, décadas depois de ter saído do país, acusando-o de planejar um ataque violento na terra natal e de liderar um grupo terrorista chamado Khalistan Tiger Force. No Punjab, porém, políticos e jornalistas afirmaram que, apesar das acusações, muita gente nunca nem tinha ouvido falar a seu respeito ou de seu movimento.
3. Quem são os siques separatistas?
O siquismo é a quinta maior religião organizada do mundo, com cerca de 26 milhões de fiéis, dos quais 23 vivem no Punjab. Compõem menos de dois por cento da população total indiana, que é de 1,4 bilhão.
Nas décadas de 70 e 80, o movimento por um país independente ganhou espaço dentro do estado e, no resto do mundo, entre os integrantes da diáspora, e acabou inspirando uma insurgência armada que durou mais de dez anos. A reação indiana foi de força bruta, incluindo o uso de tortura, detenções ilegais e execuções sumárias para supressão da iniciativa.
Em 1984, a então primeira-ministra Indira Gandhi enviou tropas para o Templo Dourado, santuário mais sagrado do siquismo, em Amritsar, para prender os insurgentes que ali se escondiam. Centenas foram mortos na operação.
No mesmo ano, Gandhi foi assassinada por dois seguranças siques, o que gerou uma onda de violência e antagonismo à comunidade em todo o norte do país. Milhares foram massacrados em pogroms organizados.
Atualmente, Nova Déli afirma que a atitude permissiva dos canadenses em relação ao extremismo dos siques politicamente influentes representa uma ameaça à segurança nacional; entretanto, analistas, líderes políticos e moradores afirmam que no Punjab há pouco apoio à causa secessionista que culminou em violência e morte décadas atrás e foi suprimida.
Esta, entretanto, continua sendo defendida por parte dos três milhões de membros da diáspora, principalmente no Canadá, na Austrália e no Reino Unido.
4. Por que o Canadá está envolvido?
Muitos siques emigraram para lá. Segundo o censo de 2021, representavam mais de dois por cento da população, tornando-se ali a maior população sique fora da Índia.
O governo indiano afirma ter alertado suas autoridades a respeito de extremistas como Nijjar, que tramavam atos de violência no Punjab na esperança de transformar o estado em uma nação independente, e acusa Trudeau de simpatizar com os separatistas porque boa parte dos siques ali apoiam o Partido Liberal, ao qual pertence.
Além disso, também acusou os britânicos, os norte-americanos e os australianos de inércia, alegando que os secessionistas vandalizaram as missões diplomáticas indianas e ameaçaram os funcionários. Entretanto, tais alegações foram reavaliadas com ânimo redobrado depois da descoberta de um segundo plano para assassinar outro ativista, por pouco não levado a cabo – dessa vez, nos EUA.
5. O que aconteceu nos EUA?
Em novembro passado, a justiça norte-americana acusou Nikhil Gupta, cidadão indiano, de mercenarismo e conspiração para matar mediante pagamento. O alvo seria Gurpatwant Singh Pannun, conselheiro-geral do grupo Sikhs for Justice, que apoia a independência do Punjab.
Para a promotoria, há relação entre a tentativa de assassinato e a morte de Nijjar, em junho. De fato, chegou a afirmar que um membro do governo indiano não identificado orquestrou a operação. O plano, aliás, falhou porque o contratado para fazer o serviço, na verdade, era um agente disfarçado.
6. Por que o Canadá acusou os diplomatas indianos de fazer parte de uma rede criminosa?
Em coletiva concedida em 14 de outubro, a Polícia Montada Real do Canadá disse acreditar que os seis diplomatas faziam parte de uma ampla rede criminosa envolvendo a prática de homicídios, intimidação, assédio e extorsão de siques canadenses.
Afirmou também que as ações eram executadas em todo o país onde existem essas comunidades. Entre outros detalhes, descreveram como o grupo de agentes indianos obtinha informações para ameaçar e intimidar os siques, tanto por intermédio de informantes pagos como por extorsão e ameaça de indivíduos dentro do próprio grupo.
Depois que as autoridades prenderam três suspeitos no caso Nijjar, o canal público CBC anunciou que o trio fazia parte de uma gangue indiana e era liderado por Lawrence Bishnoi, acusado de vários episódios de assassinato, extorsão e narcotráfico. Segundo a polícia, ele organizou praticamente tudo do presídio indiano em que se encontra desde 2014.
De fato, ele demonstra o poder imenso que tem, mesmo atrás das grades, tendo chegado a conceder uma entrevista à TV, no ano passado, em que vendia a imagem de guerreiro nacionalista, e não a de gênio do crime. “Sou nacionalista, ou seja, contra o Calistão e o Paquistão”, afirmou diante das câmeras.
Segundo analistas e antigos oficiais, a agência de espionagem externa indiana Research and Analysis Wing (RAW) há tempos é suspeita de usar redes criminosas para fazer seus trabalhos e poder manter uma fachada de isenção.
7. E agora?
A relação entre a Índia e o Canadá está presa em um impasse – e os dois vão precisar de algum tempo para restaurar os laços diplomáticos depois dos eventos dramáticos.
Enquanto isso, o Canadá será pressionado para revelar mais detalhes a respeito da investigação que está promovendo sobre o que descreveu como “redes criminosas geridas por autoridades indianas em território nacional”, principalmente a alegação de que esses agentes estariam envolvidos em “homicídios”.
Na coletiva de 14 de outubro, os representantes do governo se recusaram a revelar quais teriam sido as outras vítimas dessas ações.
8. Como isso afeta a situação mundial?
Além das implicações imediatas da aplicação da lei, a questão também é significativa no plano geopolítico, já que o Canadá e a Índia ocupam posições de destaque no cenário internacional, cada país à sua maneira. A ruptura da relação entre ambos interfere nas questões globais.
O Canadá é membro da Otan, do G-7 e do G-20, além de integrar o grupo Cinco Olhos de nações ocidentais que compartilham informações relevantes – e, embora mantenha uma posição mais discreta que os outros integrantes dessas entidades, participa de todas as decisões geopolíticas mundiais como força mediana e tradicional.
A Índia, por sua vez, não tem nada de contida nem moderada: está em expansão. É o país mais populoso do mundo, potência econômica e parceiro comercial essencial e aliado disputado pelos EUA, pela União Europeia e por outras nações. Entretanto, ao flertar com Narendra Modi, esses governos estão optando, de uma forma ou de outra, por fazer vista grossa às acusações de que o primeiro-ministro estaria dando uma guinada rumo ao autoritarismo e assediando as minorias, enquanto defende uma pauta hindu nacionalista com os aliados.
Mesmo com as autoridades norte-americanas auxiliando o Canadá na empreitada de repressão ao que descreve como “rede indiana criminosa” em seu território, o governo Biden se mantém discreto quando se trata dos próprios temores em relação a Modi, que foi recebido com pompa e circunstância na Casa Branca em 2023.
Apesar disso, com a disputa entre o Canadá e a Índia, os governos ocidentais se verão sob uma pressão ainda maior para se posicionar contra a repressão transnacional, ou seja, a intimidação e a morte de pessoas no território alheio.
c. 2024 The New York Times Company