Logo R7.com
Logo do PlayPlus

Vale R$ 1,85 bilhão: a caça à obra-prima perdida de Van Gogh

Quadro caríssimo do pintor holandês foi comprado por ricaços anônimos até ninguém mais saber onde ela está

Internacional|Michael Forsythe, Graham Bowley e Elisabetta Povoledo, do The New York Times

Os jardins da Villa Favorita em Lugano, na Suíça, onde suspeita-se que o dono atual do quadro 'Retrato do dr. Gachet' viva Maurizio Fiorino/The New York Times - 01.11.2024

Com a batida do martelo da Christie’s de Manhattan, em 15 de maio de 1990, o quadro “Retrato do dr. Gachet”, de Vincent van Gogh, estabeleceu o recorde da época como a obra de arte mais cara já vendida em leilão, adquirida por um magnata japonês do setor do papel por US$ 82,5 milhões.

Pintado no jardim do médico que lhe dá nome em junho de 1890, foi concluído algumas semanas antes de o artista cometer suicídio. A melancolia que emana do modelo reflete “a expressão desacorçoada de nossa época”, como van Gogh escreveu ao amigo Paul Gauguin. Considerada uma de suas obras-primas, os especialistas calculam que a tela hoje valha US$ 300 milhões.

Durante boa parte do século XX, foi exibida com destaque no Museu Städel de Frankfurt, na Alemanha, e no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, ao qual foi emprestada por um colecionador particular antes da venda de 1990 – entretanto, simplesmente desapareceu depois da passagem pela casa de leilões e seu paradeiro se tornou um dos maiores mistérios do mundo da arte.

Os curadores responsáveis pela montagem de exposições de van Gogh fazem de tudo para encontrá-la; o Städel, onde já foi exibida, criou e bancou um podcast para tentar definir seu paradeiro. Ao longo dos anos, os investigadores extraoficiais do ramo conseguiram confirmar que o tal comprador japonês de 1990 logo em seguida acabou arruinado por um escândalo, sua coleção foi vendida por um banco e que o Gachet foi comprado por um financista austríaco que logo descobriu que também não poderia mantê-lo. Em 1998, foi vendido discretamente a um comprador não revelado – e desde então o rastro se perdeu, pelo menos publicamente.


Ao mesmo tempo que o mercado de arte preza o sigilo e valoriza a proteção da privacidade como uma questão de honra, também emprega gente cuja missão é obter informações confiáveis sobre quem é dono do quê. Algumas dessas pessoas são representantes das casas de leilões, outras são consultores ou comerciantes que fizeram de um gênero específico seu nicho especial.

Os repórteres do “The New York Times” se empenharam durante meses em entrar em contato com o pequeno grupo envolvido na venda de 1998 e com o outro, maior, de especialistas que rastreiam essas compras. A intenção de encontrar o Gachet – missão assumida ao longo dos anos por tantos outros – os levou não só às casas de leilões e galerias de Nova York como a um palacete de conto de fadas na Suíça, às margens do Lago de Lugano.


Ao longo do processo, muitos especialistas confessaram não ter a mínima ideia do que aconteceu à pintura; quatro pessoas que fazem parte do mundo da arte desconfiam que a obra esteja com uma família europeia muito rica, mas todos têm uma opinião formada sobre a questão implícita na busca: os colecionadores têm a responsabilidade de compartilhar as obras de arte mais significativas e marcantes com o grande público?


É uma dúvida que vem se tornando cada vez mais relevante, já que é cada vez mais óbvio que a maioria dos museus já não consegue competir com os colecionadores bilionários pelas grandes obras de arte – e poucas pinturas deixam isso tão claro quanto o retrato de Gachet, que tanto tempo ficou exposto e hoje provavelmente se esconde na casa de alguém ou em algum armazém climatizado.

O retrato de um médico e da melancolia

Quem tiver a intenção de acompanhar a história – e o paradeiro – do quadro deve começar em Auvers-sur-Oise, vilarejo situado na periferia de Paris. Quando van Gogh desembarcou do trem ali, em 20 de maio de 1890, a paisagem rústica e as casas de telhado de colmo já atraíam os artistas da época. Aos 37 anos e profundamente perturbado, ele usaria uma arma para se matar semanas depois, mas estava prestes a entrar em um de seus períodos mais produtivos, durante o qual pintou “Campo de Trigo com Corvos” e “A Igreja de Auvers”.

Nesse mesmo dia, conheceu Paul-Ferdinand Gachet, médico que estudava transtornos nervosos e também era apaixonado por arte. Não demorou para que Van Gogh começasse a pintar naturezas-mortas no jardim de sua casa – e seu retrato. De fato, fez duas versões, sendo que a segunda está em exibição no Musée d’Orsay, em Paris. “Para mim, revela o forte impulso humanista e a capacidade de amar de Vincent”, disse Gary Tinterow, diretor do Museu de Belas-Artes de Houston que era o curador de pinturas europeias do século XIX do Met quando a obra foi tirada da parede para ser leiloada, em 1990.

A estrada em Lugano, Suíça, faz uma curva perto dos portões que anunciam a entrada da Villa Favorita Maurizio Fiorino/The New York Times - 01.11.2024

Depois do suicídio de van Gogh, o quadro foi para seu irmão, Theo, e depois para a mulher deste, Johanna, que o vendeu em 1897 por 300 francos (cerca de US$ 58 na época). Em 1904, estava em poder de um conde alemão que pagara cerca de US$ 400 por ele. Em 1911, o Städel o adquiriu e o colocou ao lado de grandes nomes como Albrecht Dürer; em pouco tempo se tornou uma das obras mais valorizadas do museu. Os nazistas chegaram ao poder nos anos 30 e começaram a confiscar as obras que desprezavam; no fim de 1937, a pintura tinha sido apreendida e enviada a Berlim.

Um agente a vendeu em nome do marechal do Reich Hermann Goering a Franz Koenigs, banqueiro alemão que viva em Amsterdã; o dono seguinte, o alemão judeu Siegfried Kramarsky, também banqueiro, a levou para Nova York quando emigrou e, ao longo das décadas seguintes, foi exibida intermitentemente no Met, geralmente no verão, quando a família saía em viagem, segundo Tinterow. Em 1984, acabou ficando ali de vez, graças a um “empréstimo integral por tempo indeterminado”.

Em 1990, os Kramarsky a venderam, e o lance vencedor foi o de Ryoei Saito, presidente honorário da Companhia de Papel Daishowa. Ele acabou tendo problemas com a lei, inclusive sendo acusado de pagar propina para alterar os limites de uma área florestal para criar, entre outras coisas, o “Clube de Golfe Vincent”. A situação acabou saindo do controle, e foi então que o Gachet e outras obras que possuía foram parar nas mãos de um de seus credores, o Banco Fuji, que, por sua vez, a vendeu a Wolfgang Flöttl em 1997.

Quando a situação financeira do financista austríaco também começou a periclitar, o Gachet voltou a ser vendido em uma transação mediada pela Sotheby’s, mas nem o preço nem o nome do comprador foram divulgados, e o quadro simplesmente desapareceu do mundo da arte. “Faz parte não só da história como também da nossa vida, e não saber onde se encontra é intolerável”, confessou Wouter van der Veen, especialista em van Gogh que está empenhado em reformar a casa do médico/modelo na França.

Os guardiões de segredos

Ao longo dos anos, sempre houve muita especulação em torno de quem seria o dono da obra, sendo que um dos “suspeitos” era Guido Barilla, presidente da fabricante de massas que leva seu nome. Entretanto, em um podcast de 2019 patrocinado pelo Städel, o jornalista alemão Johannes Nichelmann descartou a possibilidade. David Nash, que já tinha sido o diretor de impressionismo e arte moderna da Sotheby’s e na época também assessorava Flöttl, contou ao apresentador que quem o tinha comprado era um italiano que morava na Suíça, mas não revelou seu nome. Nesse mesmo ano, um artigo do repórter de arte alemão Stefan Koldehoff afirmou que o proprietário atual era conhecido como o “Homem de Lugano”.

Sede da casa de leilões Sotheby’s, em New York Amir Hamja/The New York Times - 22.11.2024

Não é surpresa que a Sotheby’s saiba, ou acredite saber, quem é o dono do quadro: para começar, foi a casa de leilões que fez a venda; além disso, está em um ramo que depende do rastreamento e do sigilo para levar vantagem em caso de morte, divórcio ou outra ocorrência envolvendo os donos. São pessoas que fazem parte do mundo da arte – nem sempre infalíveis, mas excepcionalmente bem-informadas. Quatro delas acreditam que a obra tenha sido levada para a Suíça, comprada pelos Invernizzi, família italiana que fez fortuna com a produção e a venda de queijo fabricado pela Galbani, empresa assumida por três dos irmãos – Ermenegildo, Achille e Rinaldo – na década de 20.

A participação do trio na companhia ficou comprometida em 1989, quando esta foi vendida por US$ 1,6 bilhão, ainda que Antonio, um dos filhos de Rinaldo, fizesse parte da diretoria. Falecido há alguns anos, ainda era o patriarca quando, em 1998, o clã teria adquirido a pintura, mesmo que nenhum nome tenha sido mencionado no documentário de Nichelmann, criador do podcast de 2019. Entretanto, o filme mostra o lago e fala das especulações de que o Gachet esteja com uma família de Lugano que ganhou bilhões na indústria alimentícia, mesmo que seus integrantes neguem a posse.

Michael Findlay, que era especialista da Christie’s em 1990, quando houve o leilão, afirmou que não sabe quem o adquiriu em 1998, mas mandou um recado para aqueles que acham que solucionaram o mistério de seu paradeiro. “Várias pessoas chegaram aqui dizendo saber onde ele se encontra, mas acho que estão todas enganadas. De fato, ouvi dizer que provavelmente foi vendido de novo desde 1998”, declarou durante entrevista concedida na galeria da qual é diretor, em Nova York, recusando-se a dar mais detalhes.

(Nina Siegal contribuiu com a reportagem e Alain Delaquérière, com a pesquisa.)

c. 2024 The New York Times Company

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.