Minas Gerais MPF questiona 'provações psicológicas e físicas' durante seleção para repúblicas da UFOP

MPF questiona 'provações psicológicas e físicas' durante seleção para repúblicas da UFOP

Calouros denunciam assédio e coação para garantir vaga nas casas da universidade, que são administradas por alunos

  • Minas Gerais | Pablo Nascimento e Ana Gomes, do R7

Alunos relatam cultura 'republicana' marcada por coação

Alunos relatam cultura 'republicana' marcada por coação

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O MPF (Ministério Público Federal) tenta na Justiça, desde dezembro de 2019, obrigar a UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) a adotar apenas critérios socioeconômicos para a seleção de novos moradores para as repúblicas estudantis federais.

O órgão questiona as "provações psicológicas e físicas" que são impostas aos calouros que tentam vagas nas quase 60 casas da universidade, que são administradas pelos próprios estudantes. A ação, assinada pelo procurador Helder Magno da Silva, classifica o modelo chamado de autogestão como "extremamente injusto e nocivo".

A ação enviada à Justiça traz depoimentos de universitários que denunciam coação, preconceito e exposição a situações vexatórias durante a fase de teste nas repúblicas, tradicionalmente conhecida como "batalha". Nesse período, os calouros são chamados de "bixos".

"Todos os dias havia tarefas exaustivas como lixar o chão da casa e ir às festas quase que todos os dias para servir os moradores. Era quase impossível chegar no horário das aulas. Se você questiona isso, dizem que 'seu primeiro objetivo deve ser a batalha e não a faculdade'",

Relato de uma estudante ouvida pelo MPF

Pais e alunos também relataram ao MPF que os moradores recém-chegados são coagidos a consumir bebidas alcoólicas em excesso, mesmo contra a vontade própria. Eles também precisam se responsabilizar pelas atividades domésticas e de manutenção das casas.

"Esse período deveria ser utilizado para que o novo morador avaliasse se a república lhe agrada, mas, na realidade, serve para que os veteranos avaliem o candidato, o testem, em geral, desrespeitando os limites legais e razoáveis de conduta, para que decidam, com seus poderes de autogestão, se o candidato merece ficar ou se será rejeitado, 'vetado'", pontuou o procurador na ação.

Veja abaixo outros relatos registrados no documento:

A minha filha foi recentemente informada pelas colegas de república que a prioridade dos calouros é cuidar da casa e frequentar as festas como garçonetes. Que o curso ao qual ela está matriculada não é prioridade e é esperado do estudante ser reprovado em todas as disciplinas.

Relato de mãe de universitária ao MPF

Nessas festas, o "bixo" é obrigado também a beber. Beber o quanto os moradores quiserem que ele beba. Não é o bixo que decide a hora de começar e a hora de parar. Enquanto isso, ele é o garçom da festa. Eles dizem: "Ah, bixo, você não irá fazer amizade bebendo leitinho" ou "se você não beber, ficará difícil ser escolhido para morar com a gente"

Relato de universitário ao MPF

E sabem o que acontece se você não faz o que eles querem? À noite você recebe um castigo: além se ser sempre humilhado dentro da casa, os 'semi-bichos' vão até seu quarto e reviram tudo o que te pertence. Reviram sua cama, colchão, guarda-roupa, jogam suas roupas no chão, dão nó em suas roupas - teve colegas meus cujas roupas foram parar em cima de árvores.

Relato de universtiário ao MPF

Um colega foi obrigado a desistir da UFOP por não ser aceito e sofrer preconceito nas repúblicas por ser gay, e o mesmo não tinha condições de pagar um aluguel de uma casa. Os abusos são muitos, a pressão psicológica é constante, e há uma tentativa de justificar tudo pela tradição.

Relato de universitário ao MPF

Padrão cultural

Ao abrir a ação, o procurador mencionou que as imposições feitas pelos veteranos afastam os calouros das repúblicas federais, mesmo quando eles precisam da moradia devido à falta de renda. Segundo o representante do MPF, os poucos apartamentos administrados pela universidade e que usam seleção por critério socioeconômico sempre enfrentam falta de vagas. Por outro lado, nas casas com autogestão dos alunos, o espaço ocioso é recorrente.

"A realidade atual, então, é que para atender aos alunos do campus Ouro Preto a UFOP disponibiliza, no total, 264 vagas em moradias para alunos de baixa renda (os Apartamentos Bauxita e a Vila Universitária, ambos localizados em Ouro Preto e ocupados mediante seleção por critério socioeconômico) e quase 800 vagas nas repúblicas federais, em que a seleção não considera a condição socioeconômica do estudante que pleiteia a vaga", detalhou.

Além de pedir a adoção de critérios socioeconômicos, o procurador solicitou que a UFOP "retire dos moradores veteranos o poder de veto e de expulsão dos novos moradores".

Inicialmente, o juiz responsável pelo caso optou por não obrigar a UFOP a mudar o modelo de seleção imediatamente, já que o sistema de autogestão é considerado uma tradição antiga entre a comunidade estudantil, conforme alegou a universidade na ação.

Segundo o MPF, a "UFOP destacou que o sistema de autogestão das moradias (repúblicas) é anterior à própria criação da Universidade e que optou-se, no momento da sua criação e incorporação ao seu patrimônio, manter o sistema pela tradição democrática que permeia o ambiente universitário e, 'principalmente', por não ter condições financeiras de arcar com a manutenção de 61 (sessenta e uma) casas".

O MPF recorreu da decisão, e o caso ainda é analisado na Justiça.

A cultura das "batalhas" é tão normalizada na região que o comportamento dos veteranos também se repete entre os moradores das repúblicas privadas. A jornalista Ana Amélia Maciel, de 32 anos, contou ao R7 que escolheu uma casa particular com a intenção de não se submeter às humilhações relatadas pelos colegas das federais, mas o cenário encontrado foi outro.

"Eu me lembro de, muitas vezes, querer descansar, ler alguma coisa ou estudar, e os colegas chegavam lá e falavam assim: 'Você não vai estudar agora. Vai lá para a sala porque chegou visita'", conta.

"Certo dia, fizeram uma troca de 'bixos' em que eu fui literalmente obrigada a ir para outra república. Era uma república masculina. Todas as meninas novatas da casa foram para essa república masculina, e os meninos foram para nossa casa. A gente teve que ficar uma semana  sem poder entrar lá na república", recorda-se.

Resposta

Procurada, a UFOP não comentou especificamente sobre a ação do Ministério Público Federal. A universidade declarou que o regimento da instituição impõe regras para as repúblicas federais. Entre elas, que o "o ingresso de moradores nas residências estudantis será realizado diretamente por meio de cada residência, devendo-se priorizar os estudantes de graduação em vulnerabilidade socioeconômica provenientes de municípios distintos de Ouro Preto e Mariana”.

A instituição destacou que todos os gastos com manutenção, benfeitorias, pagamentos de impostos e taxas da moradia ficam por conta dos moradores. A UFOP ainda reafirmou que os comportamentos ligados aos chamados "trotes" são proibidos.

"Assegurado os princípios da ampla defesa e do contraditório, quando chega ao conhecimento da UFOP que qualquer república, seja ela federal ou privada, há sempre o devido processo legal para que possamos coibir tais comportamentos delitivos no âmbito da Universidade", concluiu a instituição.

Aluno da UFOP relata "trote" que o levou a coma:

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