Alunos relatam cultura 'republicana' marcada por coação
FliparO MPF (Ministério Público Federal) tenta na Justiça, desde dezembro de 2019, obrigar a UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) a adotar apenas critérios socioeconômicos para a seleção de novos moradores para as repúblicas estudantis federais.
O órgão questiona as "provações psicológicas e físicas" que são impostas aos calouros que tentam vagas nas quase 60 casas da universidade, que são administradas pelos próprios estudantes. A ação, assinada pelo procurador Helder Magno da Silva, classifica o modelo chamado de autogestão como "extremamente injusto e nocivo".
A ação enviada à Justiça traz depoimentos de universitários que denunciam coação, preconceito e exposição a situações vexatórias durante a fase de teste nas repúblicas, tradicionalmente conhecida como "batalha". Nesse período, os calouros são chamados de "bixos".
Pais e alunos também relataram ao MPF que os moradores recém-chegados são coagidos a consumir bebidas alcoólicas em excesso, mesmo contra a vontade própria. Eles também precisam se responsabilizar pelas atividades domésticas e de manutenção das casas.
"Esse período deveria ser utilizado para que o novo morador avaliasse se a república lhe agrada, mas, na realidade, serve para que os veteranos avaliem o candidato, o testem, em geral, desrespeitando os limites legais e razoáveis de conduta, para que decidam, com seus poderes de autogestão, se o candidato merece ficar ou se será rejeitado, 'vetado'", pontuou o procurador na ação.
Veja abaixo outros relatos registrados no documento:
Padrão cultural
Ao abrir a ação, o procurador mencionou que as imposições feitas pelos veteranos afastam os calouros das repúblicas federais, mesmo quando eles precisam da moradia devido à falta de renda. Segundo o representante do MPF, os poucos apartamentos administrados pela universidade e que usam seleção por critério socioeconômico sempre enfrentam falta de vagas. Por outro lado, nas casas com autogestão dos alunos, o espaço ocioso é recorrente.
"A realidade atual, então, é que para atender aos alunos do campus Ouro Preto a UFOP disponibiliza, no total, 264 vagas em moradias para alunos de baixa renda (os Apartamentos Bauxita e a Vila Universitária, ambos localizados em Ouro Preto e ocupados mediante seleção por critério socioeconômico) e quase 800 vagas nas repúblicas federais, em que a seleção não considera a condição socioeconômica do estudante que pleiteia a vaga", detalhou.
Além de pedir a adoção de critérios socioeconômicos, o procurador solicitou que a UFOP "retire dos moradores veteranos o poder de veto e de expulsão dos novos moradores".
Inicialmente, o juiz responsável pelo caso optou por não obrigar a UFOP a mudar o modelo de seleção imediatamente, já que o sistema de autogestão é considerado uma tradição antiga entre a comunidade estudantil, conforme alegou a universidade na ação.
Segundo o MPF, a "UFOP destacou que o sistema de autogestão das moradias (repúblicas) é anterior à própria criação da Universidade e que optou-se, no momento da sua criação e incorporação ao seu patrimônio, manter o sistema pela tradição democrática que permeia o ambiente universitário e, 'principalmente', por não ter condições financeiras de arcar com a manutenção de 61 (sessenta e uma) casas".
O MPF recorreu da decisão, e o caso ainda é analisado na Justiça.
A cultura das "batalhas" é tão normalizada na região que o comportamento dos veteranos também se repete entre os moradores das repúblicas privadas. A jornalista Ana Amélia Maciel, de 32 anos, contou ao R7 que escolheu uma casa particular com a intenção de não se submeter às humilhações relatadas pelos colegas das federais, mas o cenário encontrado foi outro.
"Eu me lembro de, muitas vezes, querer descansar, ler alguma coisa ou estudar, e os colegas chegavam lá e falavam assim: 'Você não vai estudar agora. Vai lá para a sala porque chegou visita'", conta.
"Certo dia, fizeram uma troca de 'bixos' em que eu fui literalmente obrigada a ir para outra república. Era uma república masculina. Todas as meninas novatas da casa foram para essa república masculina, e os meninos foram para nossa casa. A gente teve que ficar uma semana sem poder entrar lá na república", recorda-se.
Resposta
Procurada, a UFOP não comentou especificamente sobre a ação do Ministério Público Federal. A universidade declarou que o regimento da instituição impõe regras para as repúblicas federais. Entre elas, que o "o ingresso de moradores nas residências estudantis será realizado diretamente por meio de cada residência, devendo-se priorizar os estudantes de graduação em vulnerabilidade socioeconômica provenientes de municípios distintos de Ouro Preto e Mariana”.
A instituição destacou que todos os gastos com manutenção, benfeitorias, pagamentos de impostos e taxas da moradia ficam por conta dos moradores. A UFOP ainda reafirmou que os comportamentos ligados aos chamados "trotes" são proibidos.
"Assegurado os princípios da ampla defesa e do contraditório, quando chega ao conhecimento da UFOP que qualquer república, seja ela federal ou privada, há sempre o devido processo legal para que possamos coibir tais comportamentos delitivos no âmbito da Universidade", concluiu a instituição.
Aluno da UFOP relata "trote" que o levou a coma: