Edições Pirata: colocando o sonho em prática
O movimento literário que sacudiu o Recife entre 1979 e 1983 marcou nossa produção cultural
Folha de Pernambuco|Do R7
Utopia coletiva, sonho concretizado, resistência cultural. Há quarenta anos, um grupo de escritores (alguns com livros já editados, outros com suas produções pulsando nas gavetas) criou as Edições Pirata, que entre 1979 e 1983 publicaram nada menos que 248 novas obras, promovendo também lançamentos que se tornaram célebres no Recife e para além da cidade, dando voz a autores de todo tipo - de dona Zita Alves, vendedora de picolé em Petrolina que se alfabetizou com o intuito de escrever seu livro, a nomes consagrados como Rubem Braga e Gilberto Freyre, que apoiaram a ideia da editora, apesar de já terem publicação garantida pelos meios tradicionais.
A criação
A "semente" da Pirata surgiu dentro do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (atual Fundação Joaquim Nabuco), onde trabalhavam diversos escritores, vários deles membros do movimento literário "Geração 65". "Um dia, a gente foi tomar uma cerveja lá no bar Mangueirão. Os meninos todos reclamando, porque não tinham chance de publicar. Além de pouco acesso às editoras, tudo tinha que passar por não sei quantos censores da ditadura, para ver se não tinha nenhuma mensagem cifrada. Aí eu, que sou muito ousada, disse: 'tanta gente aqui, sabem escrever e não sabem fazer um livro? Fazer um livro é mais fácil que escrever'. Eles riram, disseram que eu era doida. Mas eu insisti,'é só ter uma pessoa que entenda das máquinas, e a gente faz uma cota pra comprar papel e tinta'. A conversa passou das quatro da tarde, todo mundo meio bêbado, sem almoçar. O pessoal da gráfica estava lá, e eles que entendiam do assunto disseram que eu tinha razão", relembra Eugênia Menezes, que junto com Jaci Bezerra, Alberto da Cunha Melo, Myriam Brindeiro, Nilza Lisboa e Andréa Mota, entre outros, compunha o grupo inicial da Pirata.
O nome da editora faz referência ao primeiro livro produzido por eles - "Pomar", de Arnaldo Tobias. A obra foi rodada às escondidas na gráfica do Instituto. Na sequência, compraram uma máquina off-set manual de segunda mão, que ficou rodando por um tempo entre vários espaços improvisados, incluindo uma vacaria, até encontrar seu lugar numa casinha na rua de Dois Irmãos.
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As atividades da editora, porém, eram democraticamente espalhadas pelas casas dos diversos apoiadores do movimento. Celina de Holanda, poeta da "Geração 65", cedeu o endereço de seu apartamento na rua Betânia, no bairro do Derby, para que os textos originais fossem entregues, pessoalmente ou pelos correios. No primeiro andar da casa de Myriam Brindeiro, na rua dos Apipucos, montou-se uma mesa gigante onde, das 14h às 23h, os voluntários "colecionavam" os pequenos livros, página a página. O processo era chamado pelo grupo como "roda-roda": eles literalmente giravam ao redor da mesa, diante das pilhas impressas, numa linha de produção que congregava também os filhos, sobrinhos e quantos quisessem ajudar. Cada um chegava, comia um sanduíche e partia para o trabalho.
"Pomar", de Arnaldo Tobias, foi o primeiro livro editado pela Pirata - Crédito: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco
A proposta
A ideia da editora era "colocar em letra de forma a voz das gerações engavetadas". Embora parte dos integrantes do grupo questionasse se essa liberdade de critérios editoriais não resultaria na publicação de obras de pouca qualidade, a vontade de Jaci Bezerra era democratizar o acesso de todos à Pirata. Isso era algo inovador e libertário, especialmente diante do fato de que a editora surgiu em plena abertura política, em meio a fortes resquícios de ditadura militar. "Nós éramos muito observados", admite Myriam Brindeiro, que recorda inclusive de uma figura suspeita que veio do Rio de Janeiro, a título de participar do processo, e sondou todas as etapas de produção da Pirata.
Uma forma muito esperta de se proteger era fazer barulho: Eugênia Menezes marcou hora com Gilberto Freyre, então presidente do Conselho Diretor do IJNPS, e pediu a ele um livro inédito para publicar. "Ele falou, 'era só o que faltava'. E eu respondi, 'é porque está faltando que eu estou pedindo'", gargalha Eugênia. Então, Freyre abriu uma gaveta, tirou um original e disse, "amanhã telefono para saber se você gostou do livro".
Além de mesclar nomes famosos aos de completos desconhecidos, a Pirata promovia inusitados lançamentos coletivos com sete, onze, trinta livros de uma só vez, sempre em lugares-chave para a vida cultural da cidade, como a Livro 7; a Faculdade de Direito do Recife; o Pátio de São Pedro; a rua da Aurora; a praça do Derby; o Clube Português; e até a sede da Fundação Nacional de Artes (Funarte), no Rio de Janeiro.
Para publicar na Pirata, o escritor precisava apenas participar da vaquinha para compra de material e colocar a mão na massa, diagramando, colecionando, divulgando e vendendo os livros. Todos os envolvidos, aliás, faziam um pouco de tudo. A produtora cultural Nilza Lisboa cansou de datilografar, numa máquina elétrica IBM, vários textos escritos à mão. Autêntico faz-tudo dentro da editora, Jaci Bezerra foi o criador do logotipo da editora e o desenhista de várias gravuras das capas. Chegou a quase perder um dedo numa prensa, sendo levado para o pronto-socorro em plena tarde de sábado.
Já Andréa e Nilza, verdadeiros tratores para organizar a produção, conseguiam tablados, barraquinhas e outros materiais necessários para os dias de lançamento. "Mas não abríamos mão do lado lúdico. Na hora do fazer artístico, dos recitais, eu mandava ver lá em cima dos caminhões", relata Nilza, que considera a experiência na Pirata como "um passaporte para a vida". "Foi ali eu comecei a me tornar atriz", pontua.
Myriam Brindeiro mostra os exemplares do primeiro lançamento das Edições Pirata, em agosto de 1979 - Crédito: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco
O fim e os recomeços
As Edições Pirata fizeram tanto sucesso que acabaram não dando conta da demanda. "A gente não teve perna nem vontade de virar uma empresa de fato", explica Eugênia. O movimento finalizou em 1983, tendo lançado diversos escritores locais, como a premiada Luzilá Gonçalves Ferreira. "Fiquei entusiasmada quando vi aquilo. Foi uma época de muita efervescência. Era um tempo duro, as demais editoras não abriam para qualquer pessoa. Grandes editoras publicavam livros de grandes autores, e o resto de nós ficava caladinho. Aí, veio essa loucura maravilhosa da Pirata de lançar dez livros de uma vez só. Era muita coragem, e eles me deram esse empurrão, o pontapé para produzir outros livros", confessa Luzilá.
A experiência da Pirata também inspirou uma série de editoras independentes que surgiram na sequência e funcionam até hoje em Pernambuco, num movimento que vem se firmando cada vez mais.
O frenesi das Edições Pirata deixou marcas na vida cultural do Recife. Alguns de seus participantes já não estão vivos, como Alberto da Cunha Melo e Celina de Holanda. Jaci Bezerra encontra-se doente. Mas Myriam Brindeiro, Eugênia Menezes, Nilza Lisboa, Andrea Mota, Salete Rego Barros e Juhareiz Correia estão organizando um ano inteiro de ações comemorativas, que já se iniciaram em agosto, no dia 17 - data oficial do primeiro lançamento, com obras de Arnaldo Tobias, Alberto Cunha Melo, Celina de Holanda, Sérgio Bernardo, Domingos Alexandre, Almir Castro Barros e Montez Magno.
A ideia é reunir os sete livros num só tomo, e relançá-lo em agosto de 2020. Até lá, diz Juhareiz, as Edições Pirata vão estar presentes numa exposição na Bienal Internacional do Livro, em outubro, no Centro de Convenções de Pernambuco, com a presença e depoimento de vários escritores, e vão ser celebradas através da reocupação dos espaços onde os lançamentos originais ocorreram. "Vamos criar novos encontros coletivos, trazendo alguns dos autores para participar desses momentos", descreve.
Os membros das Edições Pirata falam do movimento com saudade e gratidão. "Eu acho que foi um verdadeiro milagre, porque ninguém tinha dinheiro, mas a coisa ia acontecendo", lembra Myriam Brindeiro, que musicou algumas das poesias da coleção da editora dentro de oito de seus álbuns. "Era uma coisa muito verdadeira, e todos nós tínhamos a crença de que ia dar certo, e dava. Era uma convicção inexplicável. Foi uma das coisas mais bonitas que vivi em minha vida", completa, emocionada, Eugênia Menezes.