A carta do despejo: mãe e filha encontram o milagre na reportagem que mudou tudo
Mais uma história que comprova a força da televisão

Eu tenho um talento para interpretar pessoas. Sei em poucos minutos de observação com quem estou lidando. Nessa história, não errei, eram gente boníssima esperando por um milagre.
São Vicente é uma cidade peculiar. Essa história se passa no primeiro município do Brasil, fundado em 1532. A primeira marca de como as coisas funcionariam na nossa terra. Um português herdeiro desembarcou na região para pegar o que era dele, embora mal coubesse nos braços, tampouco pudesse carregar.
Quem é abastado, segura as pontas com o sangue azul; nós navegamos no mar aberto rezando por um milagre. Guarde bem essa palavra, ela é muito importante nessa história!
Várias centenas de quilômetros quadrados de Mata Atlântica pura lhes havia sido oferecido pela coroa portuguesa. Quem estava aqui há muito mais tempo, teve que aprender a conviver na marra. Era terra por usucapião de centenas de milhares de anos.
Estive, mais de uma vez, nos Sambaquís. São aglomerados de conchas feitos por ancestrais nossos na faixa dos 12 mil anos. Depois vieram os indígenas até que este lugar fosse denominado novo mundo à base de muita violência e crueldade europeia.
Uma casa garantida a suor, com porta-retratos, pintura, limpeza, organização. Era o lar sagrado daquela família, cuidavam da casa com propriedade.
Mais de 500 anos se passaram e o esquema foi preservado, mas ao invés da brutalidade física, a desigualdade impera. Os herdeiros das capitanias ainda conservam terras a perder de vista ou bens que hoje nem são mais palpáveis. Já a maioria da população coleciona dívidas.
Cristina e Áurea são uma dupla inseparável do lado prejudicado desse comparativo. Mãe e filha dividem o mesmo teto: um apartamento oriundo de um programa de habitação adquirido e deixado pelo pai como presente para a filha em São Vicente.
Um espaço pequeno, acessível por muitas escadas, sem luxo, tampouco vista para o mar. Pago aos poucos com a facilidade do programa de habitação do estado.
A Áurea ficou viúva há alguns anos e, com problemas de saúde, decidiu morar com a Cristina e a neta no apartamento. O pai comprou o imóvel há bastante tempo de uma pessoa contemplada no programa e deu para a filha que havia casado.
Era um espaço que foi vendido para que o comprador assumisse a dívida, assim foi feito. A técnica de enfermagem pagou religiosamente os boletos do carnê a perder de vista até a página dois. Nem tudo são flores, caro leitor.
A essa altura do campeonato, você já deve ter percebido. O pai da Cristina deixou essa vida, mas partiu com a certeza de ter amparado a família. A morte dele foi um baque e desestabilizou a todos.
Com a doença da mãe e a rotina atarefada da filha em hospitais, a situação ficou difícil. Cristina teve que abandonar o emprego para conseguir levar a mãe ao médico, cuidar da filha.
Foi tudo de repente e os boletos tiveram que esperar. A dívida chegou a alguns milhares de reais. Cristina e a família passaram a viver com o auxílio-doença da Áurea.
Ela pediu licença do trabalho para tratar o problema de saúde. Mal conseguia andar, até hoje está nessa. A renda, que era feita de três trabalhadores, caiu apenas para um. Claro que a conta não fechou!
É a parte complicada da vida dos reles mortais como eu e você. Estamos sujeitos a intempéries de todos os tipos. Cair na rua, adoecer, perder os alicerces... Quem é abastado, segura as pontas com o sangue azul; nós navegamos no mar aberto rezando por um milagre. Guarde bem essa palavra, ela é muito importante nessa história!
O bonito nessa história era a garra dele. O caso ganhou o coração do advogado. Era a primeira vez que eu acompanhava uma relação jurídica missionária.
Os ventos primaveris foram-se embora e o tempo fechou. Cristina e Áurea, sem o guarda-chuva do patriarca e sem o sangue azul, precisaram conviver com o maior pesadelo que já enfrentaram: a carta do despejo.
O tempo foi passando e a dívida foi crescendo. Chegou a três vezes o valor devido. Junto com a última cobrança, uma ameaça! Caso o pagamento não fosse feito, elas teriam que deixar o apartamento. Quer saber o valor? R$ 13 mil à vista, fizesse chuva ou sol, felicidade ou tristeza.
Conheci as meninas no apartamento. Cheguei por volta das 15h no local. Eram muitos prédios e muita gente morando. A Cristina me recebeu e me levou escada acima para ver o imóvel.
Aprendi nessa vida e na carreira que as pessoas podem enganar pelo que dizem, mas nunca pelo que fazem. E o apartamento era exatamente igual ao discurso delas. Uma casa garantida a suor, com porta-retratos, pintura, limpeza, organização.
Era o lar sagrado daquela família, cuidavam da casa com propriedade. Em um dos sofás estava um homem. Calma! Não era um espírito. Era o advogado da causa.
Cristina é jovem e antenada, quando tentou negociar com o programa de habitação por conta própria, recebeu a notícia do despejo e um boleto único como saída para o problema.
Ela e a mãe tentaram fazer empréstimos, pedir a parentes e amigos... Como não conseguiram, Cristina buscou a defensoria pública. O advogado fez o mesmo, trabalhou pelo parcelamento e conseguiu no máximo um desconto de R$ 2 mil. Agora o valor era de R$ 11 mil.
O tempo espremia a situação. Faltava menos de 10 dias para a data limite do boleto, depois disso, a qualquer momento, ambas poderiam ser despejadas.
O homem sentado no sofá buscou ajuda na RECORD, era uma última saída. No apartamento ele me mostrou documentos, a troca de titularidade, a negociação e a negativa...
O bonito nessa história era a garra dele. O caso ganhou o coração do advogado. Era a primeira vez que eu acompanhava uma relação jurídica missionária. Paulo estava indignado e depositou em mim as poucas esperanças que detinha.
Pulei em casa como se fossem minhas parentes, o advogado Paulo me deu a notícia. É nessas poucas chances que meus olhos lacrimejam assinando a vocação nossa de exercer o jornalismo.
Gravamos a reportagem e exibimos. Mal dormi aquela noite. Fiquei muito preocupado. A família era cativante e não era justo que ficassem sem moradia, afinal, quem teria R$ 11 mil? Eu não tenho até hoje.
Quando mostramos casos assim, precisamos ser imparciais. O espaço dado ao assunto na televisão tem que contar o que houve e dar a oportunidade de ambos falarem. Tanto as vítimas, como os responsáveis.
Nosso time de produtores buscou o programa de habitação, que foi irredutível: não iria parcelar. Por conta da mudança de titularidade, a dívida pertencia ao antigo dono. O advogado conseguiu fazer a documentação para esse ajuste, mas não adiantou pedir a transferência.
Você lembra que o título possui a palavra milagre? Pois bem! Uma alma bondosa assistiu ao jornal, ficou comovida com o caso e anonimamente ligou no escritório que administrava a dívida e fez o pagamento integral do valor.
Pulei em casa como se fossem minhas parentes, o advogado Paulo me deu a notícia. São nessas poucas chances que meus olhos lacrimejam assinando a vocação nossa de exercer o jornalismo.
Abraço!















