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A lasanha de jiló e a cozinheira que sepultava moscas

Uma receita, mil insetos e um cinegrafista que fez malabarismos

Bloco de Notas com Gabriel Graciano|Gabriel GracianoOpens in new window

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O fruto é um mero coadjuvante quando um inseto está no prato Inteligência artificial

Pauta boa é pauta próxima. Essa era melhor ainda, já que ficava apenas a alguns quarteirões da TV. Fui incumbido (me sinto Matusalém escrevendo este tipo de jargão) de fazer mais uma receita pós-pandêmica para o quadro semanal de culinária do jornal.

Eu sempre tenho sorte e cumpro uma meta fundamental para o relacionamento dentro de uma TV: voltar para a redação com comida.


Isso tudo acontecia dentro da minha cabeça, já que a cozinheira estava acostumada com as inquilinas. Na outra ponta da história, estava o cinegrafista Luiz, que se dividia entre acompanhar o preparo e evitar mostrar o pior que aquela cozinha possuía

Jornalistas são um tipo de “humanidade” que sempre precisa de algo para comer. Como passam o dia pensando, gastam muitas calorias nisso. São capazes de fazer qualquer coisa por um prato de comida, preferencialmente doce.

Mas nesse dia, especialmente, o recado era indiretamente claro: nem se preocupe com isso! O motivo eu vou revelar daqui a pouco. Segure vossa ansiedade.


A poucas quadras, o desafio era estacionar o carro, levamos uns bons minutos. Nessa pauta o cinegrafista era o Luizinho, ele é do tipo que fala com os olhos, mas só para quem o entende.

Ele preparou os equipamentos rapidamente e caminhamos até o prédio. Em poucos minutos a cozinheira chegou. Era muito sorridente, do tipo de pessoa que você gosta nos primeiros minutos de convivência.


Ela foi nos guiando pelo prédio que era longo e todo de uma cor clara que não é branco. Era do tipo onde o sol bate fraco. Em outros lugares do país seria gelado, mas em Santos isso é impossível. Aqui nem existe calor humano, é calor que esquenta os humanos.

A receita que seria exibida era peculiar apenas pela existência, não era popular e tampouco apetitosa. Escolheram, digo na terceira pessoa do plural, porque a mulher e a produção decidiram juntos

Depois de um elevador e umas escadas estávamos na locação. Era o apartamento da moça que vivia vendendo marmitas caseiras. Para ela era importante aparecer na TV.


Eu vou abrir, abusadamente, uma discussão! Todos nós, ou quase, temos redes sociais e isso é oportunidade para um empreendedor caso ele saiba utilizar o que existe disponível com inteligência.

Quem possui um negócio costuma investir energia criando conteúdos na internet para alavancar as vendas, mas a faca e o queijo ainda são da televisão. Só ela tem a chancela que coloca um produto, ou uma pessoa, no hall de profissionais escolhidos a dedo pelos produtores de um programa de televisão ou um jornal. É um trunfo raro, uma notoriedade.

Essa introdução é para que você entenda como uma oportunidade dessas pesa na vida de uma pessoa. Dito isso, vamos aos fatos! Eu disfarço bem, mas entre uma palavra e outra, enquanto me interesso pela vida e a história de alguém, observo tudo. Qualquer detalhe pode ser uma maneira diferente de escrever ou abordar um assunto em um material de televisão.

A minha única preocupação não era o gosto amargo do jiló que eu desconhecia até então. Eu estava apavorado com a possibilidade de uma daquelas moscas pequeninas errar o plano de vôo

No apartamento que a cozinheira morava e trabalhava não havia luxo. Era tudo muito simples, o que é bem normal para mim que vim de origem humilde e que não tenho muitas posses.

O que destoava nessa história não era condição financeira, isso é até pequeno perto de tudo. Eu estou enrolando para dizer, sei disso. A receita que seria exibida era peculiar apenas pela existência, não era popular e tampouco apetitosa.

Escolheram, digo na terceira pessoa do plural, porque a mulher e a produção decidiram juntos: uma lasanha de jiló.

Ouço daqui os questionamentos. Eu também os fiz naquela data, mas temos que deixar as nossas opiniões de lado, o jiló existe e para ser consumido. Estou errado? Melhor que seja no formato de um prato italiano!

Para uma cozinha clássica como essa (contém ironia), é preciso escolher um recheio. A carne moída, que não sou muito fã, ficou com a missão valiosíssima de dar algum sabor à receita.

Estava com zero vontade de comer aquele prato, mas esse texto carece de incentivos, porque a memória é dura ao relembrar detalhes sórdidos que alimentam o suspense da história e o tornam divertido, antes de ser intragável.

Eu olhei cada detalhe daquela cozinha, lembra? Uma coisa chamava muito a atenção: a quantidade de moscas. Eram muitas e pequenas, como aquelas que sobrevoam um cacho de banana quando está passado.

As moscas eram tantas que deixaram a mulher incomodada a ponto de comentar enquanto abanava tudo com um pano de prato.

Nós fizemos o nosso melhor! Respeitamos a história da mulher e gravamos, com a experiência do Luizinho, sem mostrar os problemas que a cozinha tinha.

Ela chegou a me dizer que nunca havia tido essa quantidade de insetos na cozinha e que achava estranho. Mesmo exercitando o credo na humanidade, desconfiei. Elas sobrevoaram o cômodo com tanto conhecimento, difícil imaginar que vieram com a gente da rua.

Como bom investigador, comecei a escarafunchar de onde vinha a origem daquela... Qual o coletivo de moscas? Enxame? Vou ter que pesquisar na internet, só um momento... Estava certo! Enxame, mas pode ser moscaria, nuvem, praga... fique à vontade!

Em meio à vasculha, a receita era gravada. Para fazer uma receita de lasanha de jiló é preciso um pouco de coragem, o próprio jiló, queijo, presunto, molho de tomate e a carne moída.

O fruto precisa ser cozido com vinagre para retirar o amargor, acho que é isso mesmo, não me lembro ao certo. Caso tenha estranhado, o jiló é uma fruta, assim como o tomate. É originário da África e provavelmente chegou no Brasil pelas mãos do povo escravizado.

A minha única preocupação não era o gosto amargo do jiló, que eu desconhecia até então. Eu estava apavorado com a possibilidade de uma daquelas moscas pequeninas errar o plano de vôo e pousar na receita.

O fruto é um mero coadjuvante quando um inseto está no prato. Isso tudo acontecia dentro da minha cabeça, já que a cozinheira estava acostumada com as inquilinas.

Na outra ponta da história, estava o cinegrafista Luiz, que se dividia entre acompanhar o preparo e evitar mostrar o pior que aquela cozinha possuía e que participava direta ou indiretamente da receita.

Acima do fogão, por ser uma cozinha de apartamento, tinha um exaustor. Um aparelho que suga o vapor e a gordura que saem das panelas nos momentos de cozimento.

Para essa moça, com tantas encomendas de marmitas, era de grande utilidade. Para as moscas também! Com o passar dos anos, a gordura que acumulava no aparelho não foi retirada.

Como a cozinheira exercia a rotina profissional na cozinha, o ato de cocção fez que o acúmulo de óleo virassem pequenas “estalactites” no exaustor. As moscas, que com muita ousadia, sentavam no aparelho para descansar, ficavam grudadas e morriam. A cozinha da mulher era um verdadeiro cemitério e os defuntos tinham asas, antenas e 6 patas.

Muitas dúvidas surgiram na época. Ela se esqueceu de fazer uma faxina? Ou é tão normal aquele enxame que ela nem ligou? Não passou pela cabeça dela que uma equipe de TV filmaria tudo?

Nós fizemos o nosso melhor! Respeitamos a história da mulher e gravamos, com a experiência do Luizinho, sem mostrar os problemas que a cozinha tinha. Eu provei a lasanha, que realmente não era ruim, mas também não era maravilhosa.

Mostramos o passo a passo mesmo duvidando que alguém faria a receita em casa e as moscas, depositadas, não morreram em vão. São as grandes homenageadas deste texto. Cuidem da higiene da cozinha de vocês. Um abraço!

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