O dia em que conheci Dona Helena, filha do ex-escravizado mais longevo que se tem notícia
Na cidade de Santos vivia a filha de um escravizado. Estava lúcida, com 99 anos, e eu precisava conhecê-la

Santos tem quase a idade do Brasil, é a abertura para o mundo há 5 séculos. Foi aqui onde os navios negreiros desembarcaram os escravizados, onde desceram os primeiros imigrantes japoneses do navio Kasato Maru, onde recebemos os italianos, onde desembarcou a primeira emissora de televisão.
As esquadrias dessa janela ainda são preservadas, existem centenas de monumentos arquitetônicos, prédios, casarões. É lindo de ver!
“Dói no coração saber que nosso país foi o que mais comprou escravizados? Que aqui devem ter sofrido quase 5 milhões de negros africanos e descendentes? Cada uma dessas pessoas viveu pesadelos reais que estão muito próximos da gente.”
No meio de tantas chegadas e partidas, as histórias ficam impessoais. Dói no teu coração saber que nosso país foi o que mais comprou escravizados? Que aqui devem ter sofrido quase 5 milhões de negros africanos e descendentes? Sei que incomoda, mas cada uma dessas pessoas viveu pesadelos reais que estão muito próximos da gente e que não aparecem nessas equações.
Lembra da cidade com a história viva? Hoje vou te contar como percebi que o pior momento da história moderna é algo recente e respingante. Que no meio da soma milionária de registros, que chega a ser difícil de processar, uma história fez o que era número virar real e provocar uma reflexão que transformou meu olhar sobre a vida e ativou minha vigilância.
Aqui viveu a última pessoa descendente direta de um escravizado em todas as Américas. Foram 100 anos de existência simbolizados em um nome: Helena. Era um dia de semana qualquer, eu estava no início da minha carreira de repórter e volta e meia corria atrás de uma pauta interessante para gravar. Nessa busca a gente lê de tudo com faro para a notícia.
Você sabe que o que transforma uma fofoca em verdade é a técnica, né? Fazemos universidade para isso. Sempre que me ponho em um dilema ético para o exercício da reportagem, lembro de um nome que conheci na faculdade: Perseu Abramo. Ele é famoso pelo trabalho como jornalista e como teórico e desenvolveu muita literatura que hoje é usada nas faculdades.
Uma teoria que é destaque tem o nome de “critérios de noticiabilidade”. São uma série de regras que determinam o que é notícia e o quanto ela é importante ou urgente.
Relevância social, interesse público, ineditismo, proximidade, proeminência (quando é alguém importante), conflito (como crimes, por exemplo) ou anormalidade, algo que é muito diferente.
Uma história em uma matéria de jornal impresso gritou a minha atenção. Na cidade de Santos vivia a filha de um escravizado. Estava lúcida, com 99 anos, e eu precisava conhecê-la. Não tem 200 anos em que esse terror foi dissipado.
Na minha família, a terceira geração foi escravizada. Por parte de mãe, meus bisavós provavelmente foram. Dizem que os documentos e registros foram destruídos para não ser possível retomar esse período horroroso da nossa história. Tanto, que meus antepassados desapareceram no tempo. Sei quase nada deles, enquanto dos meus familiares brancos tenho dados até o ano de 26 depois de Cristo.
Era uma oportunidade e tanto. Mas onde vivia essa mulher? Quem era o pai dela?
Fui atrás da pessoa que assinava a reportagem. Sente-se na tua cadeira mortal, a informação é forte!

A matéria foi escrita por Lilia Moritz Schwarcz, uma antropóloga, professora, escritora e estudiosa no assunto. Tem vários livros publicados e detinha o tesouro nas mãos que eu tanto buscava: o contato da família de Dona Helena.
Ela me ajudou com tudo, pouco tempo depois ocupou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Juro que não influenciei a decisão (risos).
E de repente essa história fica poética. Consegui contato com a família. Em pouco tempo minha visita estava organizada.
Dona Helena morava na rua Liberdade. Em uma casa azul-petróleo, simples, e o local era dividido com familiares. Ela sempre foi livre, mas carregou nas veias o sangue do pai: Anízio José da Costa. Ele morreu em 1940 com 110 anos. Até os 108 trabalhou como carregador de sacas de café, era famoso por carregar duas por vez.
Foi sequestrado em Angola ainda criança, chegou ao Brasil em um navio negreiro e passou a vida como escravizado em uma fazenda de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba.
Depois foi enviado a São Paulo, onde seria vendido como escravo doméstico, mas fugiu para um quilombo na cidade de Santos, no bairro Jabaquara. Em 1888 o país coloca fim à escravidão e Anízio passa a trabalhar no Porto de Santos. Já viúvo, aos 90 anos, se casa novamente com uma moça de 25 anos e tem mais 7 filhos. Um deles é Helena Monteiro da Costa, que cresceu já na casa azul de janelas verdes construída no terreno doado da rua Liberdade.
É o fruto da Lei Áurea, do trabalho de abolicionistas e de todas as gotas salgadas que saíram dos olhos e escorreram pelas peles negras ao longo dos três séculos desse crime brutal.

Assim que cheguei, fui recebido por ela. Estava idosinha, mas sorridente. Foi então que percebi que todo esse peso não existia em Dona Helena. Ela era leve e a felicidade irradiava. Estava com um livro na mão, usava um suéter bonito e chinelos. Simples, mas de uma beleza histórica.
Nossa conversa foi muito prazerosa, ela falava pouco do passado, estava preocupada em viver. Falava dos amigos, dos presentes que ganhou no aniversário. Que gostava de cantar, que adorava crianças. Eu fui encontrar a filha de um ex-escravizado, conheci uma avó disposta a adotar qualquer neto que aparecesse.
Eu perguntava da história, mas as falas rendiam no presente. Depois me peguei pensando, quem foi que disse que o povo negro sobrevivente da escravidão quer falar desse horror?
Dona Helena viveu mais um ano e pouco. Viu o nome do pai dela virar rua e deixou o planeta comemorando a marca de 100 anos de existência. Me parece que o número foi redondo para selar mais um século da luta do povo negro para que mais temporãs como Helena povoem o país com sorrisos e cantorias.
Uma boa semana para você!
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