Logo R7.com
RecordPlus

A vida na aldeia dos Djaiko-aty e a comida sem tempero mais gostosa que comi

Uma viagem pela tradição dos indígenas da etnia tupi-guarani

Bloco de Notas com Gabriel Graciano|Gabriel GracianoOpens in new window

  • Google News
Dança receptiva da aldeia Djaiko-aty em Miracatu Arquivo pessoal

Aprendi na escola que o meu mundo começou em 1500. Que várias naus portuguesas atravessaram o oceano em busca de novos territórios e encontraram um mundo repleto de natureza, papagaios, araras e pau-brasil.

Que na ponta de uma delas estava ele, Pedro Álvares Cabral, um adulto gente boa, descabelado e aventureiro, que guiou todas as tripulações até a terra prometida em uma longa e cansativa viagem.


Na história, a navegação tinha outro rumo, as Índias, um lugar no mundo onde se compravam temperos de todos os tipos, o mercado mais forte da época, e que uma tempestade teria desnorteado a viagem até aqui.

No que me foi falado, o Brasil era uma sorte, um presente para a ousadia e coragem daquela turma portuguesa. Tudo documentado por Pero Vaz de Caminha, que escrevia cartas para a Coroa contando as belezas que via aqui.


“Ao virar o tronco de um lado para o outro, as pedras rolam e produzem um som muito parecido com a chuva... Foi muito especial, senti que fui extremamente acolhido pela aldeia.”

A maturidade é uma dádiva. As poucas leituras que fiz a respeito dessa história mais tarde revelaram detalhes que mostram outras amarrações para essa anedota brasileira.

A terra de Vera Cruz, nosso primeiro apelido, foi palco de muita maldade e desonestidade, uma relação que tem feridas abertas até hoje, presentes e ardentes nas aldeias que visitei.


Mesmo depois de 500 anos, essa gente luta por um terreno que, por direito, pertence a eles.

Até o meu trintênio não havia conhecido um indígena, só em fotos ou desenhos. Sempre aquele estereótipo marcado: um cocar na cabeça, pele vermelha, listras e linhas desenhadas pelo corpo, além de uma saia de palha na cintura tapando aquilo que é proibido de mostrar. Acreditei fielmente nesse modelo, já que nunca fui convidado a refletir ou pensar diferente.


Na minha visão limitada, era uma pauta que volta e meia tinha algum problema. Uma aldeia invadida, algo do tipo, que seria resolvido com a globalização, já que cada vez mais indígenas motivados pelo progresso seriam vistos com facilidade nas cidades.

É um pensamento pequeno, mas faz um certo sentido, já que muitos discursos por aí são motivados por vídeos ou materiais que exibem aldeias inteiras com celulares, roupas e acesso ao mundo dos brancos.

“O biju era enorme e comi todo ele em respeito ao trabalho envolvido para produzir e pela oportunidade rara.”

Em Miracatu a história é outra!

Conheci os Djaiko-aty no primeiro episódio que gravei para o programa sobre a região do Vale do Ribeira. Ficamos dois dias por lá e, no primeiro, fiz uma longa rotina de gravações que visitou a aldeia.

Foi muito cansativo. Subi a serra do Manecão, conheci um museu, desbravei a cidade e, nos últimos momentos do dia, lá estávamos nós na aldeia.

Os Djaiko-aty são da etnia tupi-guarani. Historicamente migraram das regiões amazônicas por mil anos até o litoral brasileiro. Foram eles que receberam os portugueses na chegada ao país, mas foram dizimados por doenças até então desconhecidas ou trabalho forçado.

Naturalmente comunicativos, tratam bem quem quer conhecê-los. Receberam a nossa equipe com muita música e apresentação da cultura.

Aldeia e equipe reunidas em foto final Arquivo pessoal

A etnia está espalhada. Depois que a sociedade europeia se assentou no Brasil, nunca mais foram os mesmos. Travaram uma luta enorme para possuírem um local.

No país, desde 1988, existem legislações que garantem o direito à terra para assegurar a esse povo a possibilidade de manter a cultura e a tradição preservadas. Você pode pesquisar mais sobre isso buscando na internet o termo correto para esse assunto: demarcação de terras.

A aldeia que visitamos mora em um território que está em processo de final de regularização, mas que foi conquistado por eles. Fica à beira da rodovia Regis Bittencourt. Vivem cerca de cem famílias ali. Tem escola, salões grandes e muita Mata Atlântica.

É naquele pequeno paraíso que esse povo persiste. Hoje os Djaiko-aty vivem do turismo e da venda de artesanatos, além de ajudarem na preservação ambiental e receberem uma verba do governo estadual para manterem a floresta em pé.

“Era a primeira vez que um ritual deles foi televisionado, queriam mostrar a cultura.”

A aldeia é liderada por uma mulher, raro de se ver. A cacique Nambi cuida de tudo e de todos, além de comandar os rituais indígenas, mas a porta-voz do grupo é a Sara, uma das professoras da escola.

Nascida e criada na aldeia, ela foi fazer faculdade para ajudar na educação das crianças e jovens em um programa que prepara universidades federais para formar professores étnicos. Uma maneira de evitar manchas culturais em aldeias.

Com o tempo, os indígenas aprenderam que não é possível lutar contra o sistema, que hoje é impossível viver na floresta completamente sem a influência centenária da vida cotidiana dos grandes centros ou das cidades. O trabalho é mais estratégico: manter a cultura apesar de tudo isso.

Quando cheguei na aldeia, por volta das seis da tarde, o sol desaparecia de maneira rápida entre as árvores da Mata Atlântica. A escuridão tomava conta e os animais noturnos anunciavam sua presença.

Os Djaiko-aty estavam cantando e dançando ansiosos pela nossa chegada atrasadíssima. Fomos a primeira equipe de televisão a mostrar o local e a cultura daquele povo em detalhe.

Eles eram muito afinados e estavam todos muito bem preparados, arrumados. Foi um primeiro contato impactante.

Em Miracatu, todo mundo conhece os Djaiko-aty. Estão inseridos no contexto da cidade, mas de forma paralela.

No sistema indígena tupi-guarani, as aldeias são grandes famílias. Aprendi com eles que não existe Brasil como conhecemos. O território indígena é onde o conhecimento deles alcança.

Não vivem como nós, achando que o país é aquele do mapa. Sabem que não há muros ou linhas que delimitam nossa terra. Para um tupi-guarani, todo o litoral é área dele, hoje ocupada por não indígenas. A sensação de pertencimento é mais ampla.

“Poucas vezes na vida experimentei algo tão saboroso, tão potente.”

Outra coisa que observei em aldeias é que eles recebem alguém da mesma etnia como um membro da família, mesmo sendo de outra aldeia. E essa pessoa fica o quanto quiser, já que está no próprio território.

O grande desafio é manter a língua, a maneira de se alimentar, a tradição das vestimentas e pintura em um mundo que só te vê se for um consumidor ativo. Mas um indígena faz as próprias tintas, trança as próprias vestes, come o próprio milho, a própria mandioca...

A tecnologia se encarrega de minar a tradição e oferecer histórias e narrativas que travam a luta dos caciques para proteger a aldeia e garantir que os jovens permaneçam nela.

Cacique Nambi dentro da casa de reza. Estou agachado conversando com uma indígena Arquivo pessoal

Na Djaiko-aty, a religião é essa ferramenta. Nós fomos convidados a acompanhar um ritual de agradecimento ao alimento feito em ocasiões especiais. Tudo acontece dentro da casa de reza, um salão feito de pau a pique, estacas envoltas a uma rede de madeiras preenchidas com barro. O chão é de terra batida, com bancos simples onde é possível sentar.

Dentro, uma fogueira para espantar insetos e aquecer a casa. Os Djaiko-aty são cristãos, uma relação religiosa curiosa. E adaptaram os tradicionais ritos para cultivar a fé no formato que escolheram hoje. O pouco que conversei sobre, para não ser invasivo, ouvi a palavra Tupã.

Karaí me ensinando o uso da zarabatana Arquivo pessoal

Depois da chegada dos jesuítas, os indígenas catequizados associaram Tupã a Deus, como cultuamos hoje. Na história tupi-guarani, o Deus do trovão, Tupã, criou a terra a partir de um monte na região do Paraguai e daí fez todo o restante, até as estrelas no céu.

E, em seguida, em uma cerimônia, fez a raça humana, primeiro que todos os animais, usando argila e elementos naturais em formato de bonecos que depois receberam o sopro da vida. Depois, ele deixou espíritos do bem e do mal nas pessoas e partiu.

Eu adoro conhecer as relações de povos com a espiritualidade e como, apesar de nascerem em locais diferentes, com origens diferentes, têm muito em comum. Hoje os Djaiko-aty são um povo cristão que ainda possui uma ligação com a ancestralidade e os rituais do passado. Rezam na língua original e agradecem o alimento.

“Estávamos na sala de reza e recebemos uma bênção da cacique Nambi com um sopro da fumaça do cachimbo na cabeça. Nossa produtora ficou muito emocionada.”

Estávamos na sala de reza e recebemos uma bênção da cacique Nambi com um sopro da fumaça do cachimbo na cabeça. Nossa produtora, Daniela Origuela, ficou muito emocionada.

A cerimônia foi realizada por um integrante da aldeia que se destaca: o Karaí. Ele é uma espécie de treinador. Ensina artesanato, o manejo do arco e flecha, da zarabatana. É um grande conselheiro da juventude da aldeia.

Na cerimônia, ele fez o uso do pau de chuva. Um instrumento feito com um tronco oco repleto de pedras e pequenas estacas espalhadas de forma muito precisa. Ao virar o tronco de um lado para o outro, as pedras rolam e acertam as mini estacas que produzem um som muito parecido com a chuva.

Ele agradeceu o alimento fazendo o som enquanto fechávamos os olhos em oração. Foi muito especial, senti que fui extremamente acolhido pela aldeia.

A comida chegou minutos depois, distribuída em bandejas. Era peixe pescado e assado por eles e milho crioulo, plantado e colhido ali. Nada era temperado, apenas o sabor natural do alimento.

O preparo feito à lenha, a água sem aditivos químicos, o pescado, o milho cozido com casca. Tudo dava um sabor especial ao jantar. A comida era despejada nas mãos e todos comeram a mesma coisa ao mesmo tempo em que agradeciam. Poucas vezes na vida experimentei algo tão saboroso, tão potente.

Fui convidado a segurar o pau de chuva e foi emocionante também. Achei que era pesado, mas não. É leve e, nas mãos, as pedras vibram, têm uma sensação física.

Todos agradecemos e Karaí nos disse que era a primeira vez que um ritual deles foi televisionado, queriam mostrar a cultura. A aldeia gosta de receber turismo e depositou na gente a abertura para o mundo externo.

Depois do ritual me chamaram na cozinha comunitária. Um salão aberto com um fogão à lenha a todo vapor. Uma jovem manuseava algo parecido com uma tapioca, mas que para eles tem outro nome: o biju.

A massa é feita de mandioca, plantada e colhida lá mesmo. Tem um processo trabalhoso que inclui ralar, torcer e secar a raiz em peneiras feitas à mão. O recheio era de palmito pupunha, plantado pelos Djaiko-aty. Esse tinha um tempero leve, mas era delicioso.

“Aprendi na escola que o meu mundo começou em 1500... A maturidade é uma dádiva. As poucas leituras que fiz mais tarde revelaram detalhes que mostram outras amarrações para essa anedota brasileira.”

O biju era enorme e comi todo ele em respeito ao trabalho envolvido para produzi-lo e pela oportunidade rara.

Bebi um suco curioso também, era de maná. Um fruto que só vi na aldeia, mas era fresco como a acerola, parecido com tomate e muito gostoso.

Lembro bem deles me olhando e sorrindo ao notar que eu comia mesmo. Fiz tantas perguntas, é uma maneira de mostrar respeito. Se eles permitiram nossa visita, querem que saibamos a história.

Fiz de tudo na aldeia! Atirei com arco e flecha, com zarabatana, sorri, dei risada, me emocionei e guardei essa visita na memória. Acredito que um bom jornalista escreve páginas mentais e que algumas ficam com um marca-textos até o fim. Meu dia na aldeia Djaiko-aty é um capítulo especial que merece destaque.

Obrigado por chegar até aqui! Boa semana!

O episódio da aventura está no vídeo abaixo. Aproveite!

Fique por dentro das principais notícias do dia no Brasil e no mundo. Siga o canal do R7, o portal de notícias da Record, no WhatsApp

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.