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Anthony, a redução de danos e a história de superação que marcou a minha memória

“É uma estratégia de saúde pública que busca a redução do uso de substâncias, em vez de simplesmente cortar o acesso à droga completamente”

Bloco de Notas com Gabriel Graciano|Gabriel GracianoOpens in new window

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Anthony era um “case” de sucesso do programa Arquivo pessoal

Era um dia qualquer de trabalho, desses calorentos. Eu nem esperava muito: a maioria deles tem pautas corriqueiras, mas este episódio foi marcante.

Cheguei por volta das 15 horas e, no papel que me foi dado, havia um resumo descrito como “Redução de Danos”. Guarde bem este nome!


Eu, como trabalhador da liberdade e da democracia, aprendi que existe a vida real e a vida imaginária. Na vida real, que eu vejo todos os dias, o direito de existir é uma luta para muitos.

O local era próximo da TV, ficava em uma esquina onde havia grande movimentação de pessoas em condição de rua. Nessas situações, a gente destoa muito. Eu trabalho com televisão e tenho que estar apresentável sempre: roupas passadas, cabelos alinhados e, geralmente, fico incomodado em cenários assim. Gostaria de passar despercebido, sem gerar comparações ou contrastes. Sou um repórter que se interessa mais pela experiência do que por aparecer nela.

O local era aberto. O portão não tinha trancas, estava esperando quem quisesse entrar. Na porta, uma pessoa muito simpática me recebeu. Disse que a responsável estava descendo.


Era uma pauta que envolvia a Universidade Federal de São Paulo. Os alunos cumpriam aulas práticas de uma disciplina ali, mas não era um campus — era um espaço social da prefeitura.

Fiquei curioso para entender como aquilo funcionava. Um cafezinho simples, umas bolachas… É nesse momento que o usuário deixa de viver o vício e retoma a consciência do presente. (…) Nos grupos de redução, o acolhimento ameniza a dor do presente e cria espaço para os planos

A mulher chegou — não vou lembrar o nome. Ela não é crucial nessa história. Começou a falar do termo que pedi que guardasse: a tal da “Redução de Danos”.


Uma junta universitária de psicólogos, assistentes sociais, acadêmicos e outros estudantes trabalhava em um programa que acolhia pessoas em situação de rua e lhes oferecia um tratamento. É uma estratégia de saúde pública que busca a redução do uso de substâncias, em vez de simplesmente cortar o acesso à droga completamente.

O meu texto hoje é um relato do que observei. Eu passeei com a professora por vários espaços. Tinha uma mesinha com café e umas bolachinhas. Em outra sala, uma arara com algumas roupas, um local para tomar banho. Não vi nada além disso.


O público era, em sua maioria, negro, algumas pessoas transexuais e alunos. Eu passava despercebido. Muitos não ligaram para a minha presença; outros evitaram o contato. Quem esteve sempre ao meu lado, o tempo todo, me explicando tudo, foi a pessoa que me recebeu lá no início, além da professora.

Ele nunca me pediu nada, só queria conversar. Ficava curioso com meu trabalho. Tinha dia que nem balbuciava as palavras, falava em código. Eu me esforçava para entender; às vezes conseguia, outras não. (…) Voltei do mercado com um pacote de bolacha e deixei ao lado. Antes de entrar no prédio, olhei e ele estava comendo. Foi nosso último contato

Na prática, o espaço acolhia gente em vulnerabilidade. Muitos chegavam alcoolizados, dopados de droga. Outros, em abstinência das toxinas. A eles era oferecido um café e umas bolachinhas, além de uma roda de conversa.

Achei pouco, achei mesmo! Senti falta de uma ambulância, de médicos, de carros para internar gente, como manda o figurino das tratativas quando pensamos em lidar com um usuário de droga.

Eu nunca consegui vê-los com superficialidade. Uso sempre uma pracinha no Canal 1, aqui em Santos, para minhas entradas ao vivo. Ela é verde, tem paisagem bonita. E sempre que ia no final da tarde, havia um homem sentado nela. De meia-idade e com sinais de vício.

Ele nunca me pediu nada, só queria conversar. Ficava curioso com meu trabalho. Tinha dia que nem balbuciava as palavras, falava em código. Eu me esforçava para entender; às vezes conseguia, outras não. Mesmo assim, tínhamos uma relação mínima de amizade. Sempre lamentava não ter nada para lhe dar, mas ele não pedia realmente. E, em algumas vezes, tive que cortar os assuntos para poder sair a tempo de outra gravação. Coisa que odiava fazer.

Ele sumiu, nunca mais o tinha visto. Até que, em um dia qualquer, acordo e vou ao mercado cedo comprar meu café da manhã. Havia um homem deitado na calçada do prédio: era ele. Voltei do mercado com um pacote de bolacha e deixei ao lado. Antes de entrar no prédio, olhei e ele estava comendo. Foi nosso último contato.

Era a primeira vez que ele usava o nome que escolheu. E super combina! Antony era o sucesso em pessoa. Jornalistas mais antigos aqui me contaram as condições tristes em que ele já foi avistado. Agora estava de pé!

Naquele espaço que estava aberto havia gente que se recuperou do vício e gente em tratamento. Lembro bem de uma moça que viveu nas ruas muito tempo e, através do programa de redução de danos da Unifesp, conseguiu interromper o vício e restabelecer a vida. Ela estava, inclusive, cursando Serviço Social na faculdade federal. Uma vitória que assinava a eficácia do tratamento.

Fiquei curioso para entender como aquilo funcionava. Um cafezinho simples, umas bolachas… É nesse momento que o usuário deixa de viver o vício e retoma a consciência do presente.

Geralmente, ele passa dias tapando as feridas da alma com a droga e vive alucinado porque, se retoma a consciência repentinamente e vê a situação em que está, tem chance de sucumbir.

Passam dias acordados, sem comer, sem dignidade. Vivem apenas para o consumo químico e pequenos minutos de um prazer provocado por substâncias. A pouca felicidade que sentem é em doses. Quando não aguentam mais, dormem e dormem. É uma vida desumana.

Nos grupos de redução, o acolhimento ameniza a dor do presente e cria espaço para os planos. A pessoa pensa e alimenta esperanças. Aprende técnicas para reduzir o uso da droga e cria laços.

Aquela pessoa que me abordou na porta era um “case” de sucesso do programa. Quando descobri isso, fiz questão de entrevistá-la. Falava bem, era comunicativa. O meu produto principal é gente. Eu vivo registrando a vida. Quando lhe perguntei o nome, ele me respondeu:

— Pode ser o nome social?

Muita gente vai parar essa leitura aqui e pensar em camadas e camadas de discussão. Eu, como trabalhador da liberdade e da democracia, aprendi que existe a vida real e a vida imaginária. Na vida real, que eu vejo todos os dias, o direito de existir é uma luta para muitos. O personagem dessa história sorriu e respondeu quando eu disse que o nome dele seria usado:

— Anthony! Meu nome é Anthony!

Anthony era um “case” de sucesso do programa Arquivo pessoal

Era a primeira vez que ele usava o nome que escolheu. E super combina! Antony era o sucesso em pessoa. Jornalistas mais antigos aqui me contaram as condições tristes em que ele já foi avistado. Agora estava de pé! Cabeça erguida e tinha o maior poder que um ser humano pode segurar nas mãos: o propósito!

A redução de danos era uma realidade positiva na vida dele e eu me apaixonei por essa história. Trocamos contato e, desde então, nos conhecemos.

Voltei outras vezes ao programa da Unifesp. Ele, sempre lá. Já o encontrei em uma pauta de uma instituição que oferece tratamento psiquiátrico com cannabis medicinal. Ele também estava lá.

Nosso último contato recente foi pelo celular. Desta vez, ele me deu a notícia: foi aprovado no vestibular para fazer Serviço Social. Fiquei muito feliz!

Anthony era um “case” de sucesso do programa Arquivo pessoal

As lentes da RECORD mostraram uma história de sucesso que envolve seres humanos em condições desumanas e o poder do afeto e do acolhimento na vida difícil que empurra parte da sociedade ladeira abaixo. Vi poucas coisas parecidas na vida. Na Igreja Universal, há exemplos fortes disso também. Tem grandes ações que aproximam, em vez de separar.

Este texto quer fazer você refletir, para que, na próxima vez que ver uma pessoa em situação de rua sorrir e te olhar, leitor, retribua! Talvez esse gesto mude a vida dela.

Um abraço.

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