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Por favor, não atrapalhe o repórter!

O drama da reportagem de rua e a importunação disfarçada de brincadeira

Bloco de Notas com Gabriel Graciano|Gabriel GracianoOpens in new window

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Repórter enfrenta três adolescentes invadores ao vivo Inteligência artificial/ Chatgpt

Caso você me conhecesse e tivesse a ideia de elaborar um slogan sobre mim, provavelmente seria algo do tipo: Gabriel Graciano, o repórter gente boa!

Nem sei dizer quais são os motivos. Acredito que seja a hospitalidade mineira, a educação familiar, a inteligência emocional que eu pratico muito ou a falta de pulso firme (reconheço). O fato é que atendo e dou atenção aos mais diversos perfis de gente, que vão dos que sofrem de saúde mental aos que apenas querem conversar. Tenho trato para dialogar com um bilionário, um pobre emergente e um paupérrimo; ambos vão sentir proximidade, é um dom que carrego.


“Sou um verbo transformado em substantivo. Repórter vem do verbo reportar: aludir, referir-se, remeter-se. Sou veículo de informação enquanto trabalho.”

Essa semana conheci um idoso na cidade de Guarujá. Ele bateu no vidro do carro dizendo que queria me falar algo. Foram 15 minutos ininterruptos de devaneios e muitos nomes. 99% deles eu não tinha ideia de quem eram.

O homem disse que era coronel da PM. Eu não discuto: deixo a pessoa ser quem deseja, apenas concordo e ouço. No fim, combinei com o homem que passaria na casa dele para pegá-lo quando o Governador estivesse na cidade. Ele queria alertar o Tarcísio de Freitas sobre os perigos da cidade.


Foi a maneira que encontrei de despistar a ansiedade dele em querer contato. O homem ficou atrás de mim feito uma sombra, mas, apesar dos pesares, não me incomodou enquanto eu gravava.

Passo boa parte do dia conhecendo e lidando com pessoas e depois apareço na televisão para reportar essas histórias. É normal ser abordado, embora não seja uma celebridade. Muitos mal sabem meu nome; vez ou outra, notam ou decoram quem eu sou, mas a grande verdade é que famosa mesmo é a Record e, muitas vezes, sou a personificação dela.


Comigo a notícia vem na frente, é o que aprendi na ética jornalística. Não acho certo aparecer por aparecer. De todas as minhas ocupações, essa é a que menos me abastece. Meu negócio é viver o existente, fiz essa faculdade por isso.

O texto que você lê agora, por exemplo, foi feito à noite após um dia estressante de trabalho. Passei a tarde toda em uma comunidade de palafitas que foi incendiada. Falei com gente que perdeu tudo o que tinha. Isso, apesar da desgraça, é motor para minha profissão. Uma matéria desse assunto pode ajudar a motivar o poder público a transformar aquela realidade.


A gente tem que viver a profissão no propósito final, que é servir ao interesse público e dizer o que é necessário, mesmo que doa.

“Não discuto: deixo a pessoa ser quem deseja, apenas concordo e ouço.”

Sempre no fim do dia eu recebo um papel ou uma demanda com informações checadas pela produção. É nesse momento que viro vetor imediato. Costumo entrar ao vivo para milhões de residências.

Não sei se você percebeu, mas eu sou um verbo transformado em substantivo. Repórter vem do verbo reportar. No dicionário, o significado é aludir, referir-se, remeter-se. Sou veículo de informação enquanto trabalho. Isso é muito sério!

Você provavelmente descobriu a COVID-19 por um repórter. Percebeu ser preciso usar máscara, que a vacina havia chegado, que as mortes cresciam, que o saudoso Paulo Gustavo morreu na luta contra essa doença. Os repórteres são instrumentos da liberdade. São eles que anunciam as grandes mudanças, catástrofes, novidades, alegrias coletivas, cometas, dias de eclipse, dias ensolarados, tempestades fortes.

Por isso somos aos montes, espalhados por todos os cantos. Sempre existe alguém que conhece um repórter, assim como quase todas as residências do Brasil possuem algum produto da China.

E por que eu estou falando disso? Os pregos que se destacam são martelados. Aos montes e amplamente observados, os repórteres da notícia precisam ser cirúrgicos no que falam. Precisam ser verdadeiros e amparados naquilo que a checagem revelou. Eu não posso opinar, não posso dizer o que parece, nem o que acredito que seja.

Eu só posso reportar, repassar o que foi apurado. Por isso, vez ou outra, me pego falando igual um doido na calçada, repetindo vezes e mais vezes o que preciso dizer, calculando o tempo e os dados, ruas, nomes, horários, órgãos governamentais. Repito e repito até que fique orgânico. Até que reduza ao máximo a chance de errar.

Os materiais gravados são mais tranquilos, eu controlo as emoções e reduzo os riscos porque são textos escritos e lidos. Mas nas entradas ao vivo, a vida é dura, caro leitor. Eu me lembro da minha primeira gafe. Vivi a maior parte da minha existência na cidade de São José dos Campos. É uma região próspera, lindíssima e próxima de tudo. Na Record Vale do Paraíba, onde fiz estágio e fui produtor, falei inúmeras vezes os nomes das cidades do litoral norte de São Paulo, que fazem parte da cobertura lá:

Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião e Ilhabela.

Isso estava na minha memória pronto para entrega, já que fazia muitas pautas naquelas cidades diariamente. Quando me mudei para Santos na condição de repórter, o litoral mudou também. Eu vivia à beira-mar e as cidades eram outras: Santos, São Vicente, Guarujá, Praia Grande...

Minha primeira entrada ao vivo era uma reforma da orla do Gonzaguinha, uma praia de São Vicente, revitalizada pelo prefeito recém-eleito.

“Todas as vezes que gravo em locais populosos, dificilmente tenho paz. As pessoas passam e gritam, dançam atrás de mim; caminhoneiros buzinam e chegam a tentar falar ao mesmo tempo que eu. Mas o tempo me preparou para lidar com as situações mais adversas, e cada desafio me ensina algo sobre comportamento humano e profissão.”

Vou tentar reproduzir o diálogo do ao vivo:

— Oi, Valéria (apresentadora), boa noite para você e para o telespectador que assiste a gente. Pois é! A reforma acabou e a orla está novinha e com acessibilidade. Foram gastos milhões de reais, mas quem vai contar para a gente os detalhes é o prefeito de São Sebastião, Kayo Amado...

Percebeu o erro? Ouça também a música de tensão que meu estado de incômodo sentiu... O prefeito é um jovem político que acabei criando uma admiração por muitos motivos, um deles é a gentileza e a educação, predicados raros em pessoas públicas, percebendo que confundi, responde:

— Olá, Gabriel, boa noite. Pois é! Aqui em São Vicente...

Muitos fatores podem atrapalhar um repórter. O nervosismo é um deles, e passei por perrengues enormes por conta disso. Mas o tempo elabora técnicas que te fazem controlar os efeitos dessa adrenalina de estar ao vivo para milhões de pessoas. Mas um fator me é presente e que até encontrei literatura a respeito.

Para Freud, o pai da psicanálise que viveu no século XX, o erro não é acidental. O cérebro sabe o que é o certo, mas nos lapsos, esquecimentos e ações, o inconsciente se manifesta e toma partido. E é nessas horas que ele manda recados. Na rédea, ele fez com que eu dissesse o nome da cidade errada no ao vivo. Mas o lado bom é que, vivenciando essas manifestações, aprendemos quem nós realmente somos.

Deu para entender a complexidade do meu trabalho? Essa curva romântica toda chegou ao fim, ela existe para amparar uma reclamação diária que tenho: a importunação.

Todas as vezes que gravo em locais populosos, em rodovias cheias de caminhões ou centros comerciais, dificilmente tenho paz. As pessoas passam e gritam, dançam atrás de mim, caminhoneiros buzinam e já chegaram ao ponto de tentarem falar ao mesmo tempo que eu, em uma tentativa de me desestabilizar. Volta e meia, um pai passa com o filho e o incentiva a atrapalhar o repórter.

“Os pregos que se destacam são martelados. Repórteres precisam ser cirúrgicos e verdadeiros, apoiados na checagem. Vez ou outra, me pego repetindo palavras e nomes até que tudo saia orgânico, reduzindo ao máximo a chance de errar.”

Sabemos que é uma profissão que gera curiosidade, eu mesmo, em outra condição, teria um comportamento parecido, embora seja totalmente irracional e inconveniente.

O tempo me preparou para lidar com situações das mais adversas. Esses dias fui com um profissional da prefeitura de Santos na orla de uma praia após uma ressaca muito forte. A areia invadiu a cidade e quebrou muretas, abriu buracos e crateras nas calçadas. A prefeitura, obviamente, estava arrumando tudo e era nosso papel mostrar os locais e as interdições todas.

No meio do ao vivo, uns três adolescentes entraram no meio da nossa conversa, gritaram e tentaram pegar meu microfone. Por sorte o assunto era fácil, então contornei me afastando enquanto o cinegrafista mostrava a cratera no chão. Esse episódio é só o demonstrativo de um comportamento cultural, que vê o jornalista da televisão como um entretenimento. Claramente não somos, embora reportemos alegrias também.

Na próxima, caso me encontre por aí, espere eu me desocupar. Sou mesmo o repórter gente boa e vou adorar fazer uma foto e uma piada para você.

Obrigado até aqui e boa semana!

Ah! Esse aqui é o MC China, apareceu esses dias há alguns minutos para a minha entrada ao vivo. Por sorte, deu tudo certo!

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