Acesso à Justiça não é um privilégio: o passageiro não pode ser abandonado
Artigo de Gustavo Guerra*

A aviação é uma atividade complexa, sensível à instabilidade do clima, a questões de segurança e a fatores operacionais que nem sempre são previsíveis.
Cancelamentos e atrasos fazem parte desse cotidiano – algo reconhecido, inclusive, em cartilhas oficiais: a do Senado Federal afirma que “imprevistos acontecem” sendo “uma ocorrência muito comum” no transporte aéreo.
O que não pode ser comum é deixar os passageiros sem nenhuma informação e sem assistência, negligenciando os direitos básicos previstos na legislação brasileira. Quando o apoio falha, um simples imprevisto se transforma em prejuízo real.
A Resolução 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) prevê obrigações objetivas. Entre elas, estão o repasse de informações atualizadas a cada 30 minutos em atrasos e assistência material conforme o tempo de espera: comunicação após uma hora, alimentação após duas e hospedagem em caso de pernoite.
Além disso, estão previstas alternativas como reacomodação, reembolso integral e transporte adequado. Esses deveres aparecem de forma detalhada, por exemplo, no Guia de Direitos do Passageiro da Anac e em materiais de educação do consumidor amplamente divulgados.
O desamparo, portanto, não se explica pela carência de normas. O que vem acontecendo é a falta de cumprimento do que estabelece a nossa legislação.
Esse descompasso leva muitos passageiros a buscarem reparação. Os números mostram que isso não ocorre por impulso. Segundo levantamento encaminhado pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) ao Supremo Tribunal Federal (STF) no início de outubro, mais de 90% dos passageiros tentam acordo com a companhia aérea antes de acionar a Justiça.
O documento do Brasilcon foi enviado ao ministro Dias Toffoli, do STF, relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.560.244/RJ, que trata da prevalência das normas sobre o transporte aéreo em relação às normas de proteção ao consumidor.
O julgamento no Supremo terá repercussão geral com o Tema 1.417, e discute ainda a responsabilidade civil das companhias por cancelamento, alteração ou atraso de voo por motivo de caso fortuito ou força maior.
Outro dado importante é que entre os passageiros que precisam recorrer ao Judiciário, 74% nunca haviam ingressado antes com ação judicial. Sinal de que litigância não é hábito, mas um recurso extremo diante de problemas concretos.
As situações enfrentadas no dia a dia confirmam essa percepção. Episódios como o fechamento emergencial do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, provocado por um vazamento de óleo de um veículo de inspeção, mostram que imprevistos acontecem – e é exatamente por isso que existem regras de proteção aos passageiros.
O inaceitável é que, durante esses acontecimentos inesperados, famílias com crianças, pessoas idosas e profissionais que dependem de horário sejam deixados sem orientação, sem alimentação adequada, sem opção de reacomodação e sem o amparo mínimo previsto em lei.
O acesso à Justiça, portanto, não é um privilégio. É o mecanismo que resta ao cidadão quando a solução administrativa acaba falhando. E esse direito de buscar a reparação na Justiça precisa ser preservado.
Suspensões processuais, que são instrumentos legítimos e necessários em determinadas circunstâncias, precisam vir acompanhadas de critérios claros para não interromper o andamento de outros processos que nada têm a ver com esses casos de força maior.
Quando há descumprimento de direitos básicos, como falta de assistência ou de informação, impedir o passageiro de buscar reparação significa deixá-lo sem alternativa.
Garantir um caminho seguro para a reparação não cria um conflito com a atividade aérea, nem com a análise que o STF realiza sobre a melhor interpretação das normas aplicáveis ao setor.
Trata-se apenas de proteger um princípio essencial: nenhum passageiro pode ser desamparado quando enfrenta um problema que pode (e deve) ser mitigado por regras que já existem e são de conhecimento público.
É isso que mantém a confiança no sistema: a certeza de que, mesmo quando o voo atrasa, o passageiro não será abandonado.
*Gustavo Guerra é formado em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2010. Pós-graduado na Fundação Getúlio Vargas em 2016 em Direito Econômico. Pós-graduado em Processo Civil na Escola Superior do Ministério Público em 2020.
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