Patrimônio cultural do Rio, Largo do Boticário será revitalizado
Tombado pelo Inepac, largo sofre com abandono e foi alvo de ação do MP-RJ; rede hoteleira comprou casarões e irá construir um hostel no local
Rio de Janeiro|Thaís Silveira, do R7*
Uma pequena e silenciosa praça encrustada no caos da zona sul do Rio de Janeiro: assim pode ser definido o largo do Boticário. Aos pés do Corcovado, no Cosme Velho, o local chama a atenção pela arquitetura dos casarões que o compõe, com traços do arquiteto Lúcio Costa e paisagismo de Burle Marx. Rodeado pela Mata Atlântica, por onde passa o rio Carioca, o largo seria um refúgio na cidade, se não fosse pelo abandono que sofre há anos.
Tombadas pelo Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), as construções do século XIX apresentam rachaduras, vidros quebrados, paredes descascadas e até risco de desabamento, segundo o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). No entanto, a compra de seis imóveis do largo por uma rede francesa de hotelaria trouxe uma promessa de revitalização: um hostel será construído no local nos próximos dois anos.
O uso comercial de um bem tombado foi possível por meio da Lei Complementar nº 183, aprovada pela Câmara Municipal em março deste ano. A contrapartida é que as características arquitetônicas sejam mantidas. Até o interesse da rede, a proprietária dos imóveis de números 30, 28, 26 e 20 era uma herdeira de um jornal carioca.
De acordo com o historiador Lúcio Nascimento, o nome do local está ligado ao boticário Joaquim Luis da Silva Couto, que morou lá no século XIX. Apenas em 1870 o conjunto se tornou logradouro reconhecido pela prefeitura. Ainda segundo ele, após o dono do periódico comprar parte do largo na década de 1920, alguns edifícios foram construídos e outros reformados, o que deixou o local com as características atuais.
Nascimento citou possíveis motivos para o abandono do largo, frequentado por personalidades brasileiras nos séculos XIX e XX — o marechal Joaquim Alberto de Souza Silveira, padrinho de Machado de Assis, morou ali em 1846.
— Algumas especulações que posso apresentar são a decadência financeira dos herdeiros da família [proprietária do jornal] e a falta de investimentos nas edificações do próprio largo.
Em fevereiro, o MP-RJ entrou com uma ação civil pública para que o Governo do Estado e a então proprietária adotassem medidas para conservar o patrimônio. A ação foi fruto de anos de investigação do MP-RJ, como contou o titular 3ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural da Capital, promotor Felipe Cuesta. Com o interesse da rede hoteleira durante o processo, a empresa assumiu o lugar da antiga proprietária, por meio de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta).
— O ideal seria que o Estado tivesse recursos para desapropriar o Largo e, consequentemente, gerir e cuidar do patrimônio. Mas, infelizmente, a experiência secular que temos no Brasil é de que tudo que é tocado pelo poder público acaba sendo abandonado. Essa parceria é uma maneira interessante de tentar salvar o bem tombado.
Segundo o promotor, a rede se comprometeu a apresentar obras que evitem os riscos de desabamento dentro de 120 dias, prazo que se iniciou no dia 17 de maio. Se houver descumprimento do limite, a multa é de R$ 10 mil por dia.
A segunda etapa é a instalação do hostel, que deverá terminar no segundo semestre de 2020. Além disso, Cuesta contou que relatórios periódicos das obras deverão ser apresentados a cada 60 dias, com autorização prévia do Inepac.
— O projeto tem sérias restrições de construção. Ele terá que obeceder a todos os requisitos que foram impostos pelo Inepac e pelo MP-RJ. A proposta vai ter que se adequar ao máximo possível ao que era o largo do Boticário antigamente.
De acordo com o historiador Lúcio Nascimento, os estilos arquitetônicos mais predominantes no patrimônio são o neocolonial e o art nouveau. Além das casas serem geminadas, o imóvel rosado apresenta janelas no formato quadrado, o que indica a influência do neocolonial, inspirado pelo pensamento racional do século XIX. Já o Art Nouveau pode ser observado nas janelas quadradas do tipo guilhotina na casa amarela.
O historiador também ressaltou que, com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, vieram os vidros para compor as janelas das construções. Além disso, nas fachadas das construções verde e amarela, há azulejos portugueses e holandeses típicos da passagem do século XIX para o XX.
Para o novo empreendimento, o conceito foi criado em conjunto pela empresa Lakasa Development Empreendimentos Ltda e o escritório de arquitetura Ernani Freire & Associados, chefiado pelo próprio Freire. Segundo ele, é preciso manter a volumetria, a fachada e o telhado de bens tombados e, dependendo do nível de tombamento, o interior também deve ser preservado, incluindo até objetos de decoração.
No largo do Boticário, o arquiteto ressalta que a pavimentação e a cobertura vegetal também devem ser respeitadas. No entanto, as alterações podem ser negociadas. Freire acredita que a compra dos seis casarões seja um benefício para o patrimônio.
— A grande vantagem do negócio é que, dado o estado das casas, dificilmente um empresário compraria uma sem saber o que aconteceria ao lado. [Com a compra das seis casas], há a garantia de tratá-las como conjunto.
Ainda de acordo com o arquiteto, o único imóvel ocupado é o 32, onde mora um francês que está envolvido no negócio. A rede hoteleira informou que a compra dos imóveis custou R$ 20 milhões e que ainda investirá aproximadamente R$ 30 milhões em renovações e equipamento.
Serão 350 camas no hostel, divididas em 70 quartos e apartamentos para até dez pessoas. O estabelecimento também terá restaurante, piscina e área social, que poderão ser usados por não hóspedes.
Além disso, a empresa francesa se comprometeu a fazer um livro para contar a história do largo. Metade dos exemplares vão ser doados para a população. O promotor do MP-RJ também afirmou que há a ideia de se criar um centro cultural no local. A iniciativa não foi formalizada, mas, segundo Cuesta, seria interessante para a população conhecer a história e provocar um marketing positivo na região.
— Estamos tentatando negociar a ideia com o Inepac, para que eles entendam a importancia disso para cativar o entorno e permitir que a população usufrua daquele espaço. Seria ótimo, porque o largo do Boticário efetivamente passaria de fechado e degradado para uma situação de restaurado e utilizado pela população.
Para simbolizar o projeto de revitalização, Freire cita a expressão “metástase positiva”, do arquiteto catalão Oriol Bohigas.
— Quando se implanta um projeto desses, naturalmente ele se expande, primeiro para o entorno próximo. Certamente isso vai acontecer ali. Do outro lado do rio Carioca há o largo Silva Melo, uma praça que ninguém usa, com medo. Em frente, há o Solar dos Abacaxis, a estação do Corcovado. Essas atrações vão se juntando em uma mancha cultural.
*Estagiária do R7, sob supervisão de PH Rosa