Como se articula um grupo de sommeliers de vacina em SP
Agilidade e dinâmica bem arranjada marcam os espaços virtuais. Prática atrasa e desregula imunização no país, avisam especialistas
São Paulo|Guilherme Padin, do R7
"Estou na fila da Indianópolis. Falaram astrazenica aqui." Assim acordou, às 6h44 da terça-feira (27), um grupo formado por cerca de 3.500 pessoas que pretendem escolher a marca do imunizante que vão tomar contra covid-19 na cidade de São Paulo. Apelidados de sommeliers de vacina, começam cedo a procura pela dose desejada. A troca de mensagens movimenta o espaço virtual pouco antes da abertura das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) paulistanas, às 7h.
A prática, segundo especialistas, atrasa e desregula os cronogramas de vacinação das cidades. Tanto que acabou enquadrada por uma lei da capital paulista, que manda para o fim da fila quem se recusa a receber um determinado imunizante. Outros municípios da região também criaram regras parecidas.
A nova regra, no entanto, não intimidou o grupo. "Alguém sabe região zona sul Pfizer?", pergunta uma participante às 6h46 de uma quarta-feira (28) de frio e chuva na cidade, dia seguinte à sanção da lei.
Por dentro dos grupos
A reportagem do R7 entrou em grupos do Telegram dedicados a fazer a busca em diferentes regiões e, por dois dias, acompanhou conversas que compartilham em tempo real informações sobre quais vacinas estão sendo aplicadas em cada local da cidade.
As listas com dezenas de postos e as respectivas marcas disponíveis são atualizadas a todo momento.
Por vezes, os membros publicam até dados da quantidade de doses que ainda restam em cada local. "Tem Pfizer, mais 200 doses", informa um dos participantes que aguarda sua vez na fila de uma UBS na região central. Nem todos, no entanto, estão dispostos a recusar a vacina oferecida. "A preferência era Pfizer, mas ia tomar a que tivesse", afirma uma participante.
Nos conglomerados de sommeliers, movimentados com centenas de mensagens por dia, os perfis mais comuns se dividem basicamente entre os informantes e os que querem saber onde encontrar a vacina preferida.
A campeã de procura nos grupos é a Pfizer. Quando quem estava em dúvida finalmente encontra a agulhada que queria, logo vai à rede social avisar aos colegas na comunidade online.
“Onde tem Pfizer na zona sul?” e “Que vacina tem na Vila das Mercês?” são exemplos de questionamentos comuns, que se repetem a cada hora, sobre as mais variadas UBSs e bairros da capital paulista - e da Grande São Paulo.
Mensagens com demonstrações de solidariedade e gratidão por contarem com a agilidade, organização e companheirismo dos grupos também são constantes. "Ainda é Pfizer. Boa sorte viuuu. Torcendo", deseja uma participante após dar a dica de um posto da zona leste às 13h07 de quarta-feira.
À medida que o dia se aproxima das 19h, quando as UBSs fecham as portas, as indicações de onde encontrar cada imunizante dão lugar aos agradecimentos efusivos. “Foi por você que consegui! Obrigado pela dica”, registrou um membro do grupo focado na zona sul na tarde desta terça-feira (27).
Outros membros enviavam recados parecidos ao longo da noite. "Graças à cooperação deste enorme grupo eu e alguns amigos conseguimos escolher e por isso eu sou muito grato", declara um dos 2.527 membros de um grupo focado na zona norte.
Após as 21h, junto às informações sobre a vacinação no dia seguinte, o espaço também se abre para os relatos de efeitos colaterais. “Meu braço está pesado, dolorido. E meu marido estava mole à tarde, tomou dipirona e melhorou”, diz uma participante de um grupo da zona norte. Dor de cabeça, febre e dores no braço são todas reações previstas pelas autoridades sanitárias.
Por que atrapalha a vacinação?
O teor de apoio mútuo vindo de pessoas que compartilham até informações pessoais e dados das carteiras de vacinação pode apontar para uma boa intenção, mas não exclui o fato de que o comportamento contribui para uma maior duração da pandemia e, pela lógica, mais mortes. Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a prática pode ser danosa, uma vez que não somente atrasa o cronograma de imunização como desregula o planejamento de cada cidade.
Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica o problema: “o município tem um número X de habitantes e recebe um número X de doses. O governo vai distribuindo aos estados e o estado aos municípios pela população. Mas imagina se chega a vacina A para 50 mil pessoas, e elas não querem tomar porque preferem a B. Isso vai desregulando e atrasando a cobertura vacinal. As vacinas ainda podem ficar estocadas e as pessoas querendo uma próxima que nem se sabe quando virá”.
Petry relembra ainda que a questão se agrava porque há uma pressa adicional pela imunização em massa, devido à chegada de novas variantes e o risco de adoecimento de quem não se vacinou.
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“Todo o processo de vacinação é coletivo. As pessoas têm que ter essa consciência. Ao escolher uma e esperar por outra, esse período com a pessoa sob risco, ela compromete o coletivo. O vírus continua circulando. Se a pessoa estivesse imunizada, o vírus iria perdendo a sua capacidade de se reproduzir”, destaca o professor.
O fundamental das vacinas, relembra Paulo Petry, é evitar que a doença seja grave, que leve a uma internação e ao óbito, “e todas elas conferem essa proteção com grau bastante elevado. Não há razão para escolher vacinas”.
O médico sanitarista e infectologista Gonzalo Vecina Neto, fundador e ex-diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), faz os mesmos apontamentos. “Se todas as vacinas chegarem a todos nós, independentemente de quais sejam, produzirão o efeito esperado: a imunidade coletiva, uma efetividade alta, como foi em Serrana, com as quedas de 95% das mortes e 86% das internações”, diz Vecina.
"Meu corpo%2C minhas regras!"
Vecina diz que tentar escolher vacinas “atrapalha todo o processo de vacinação e retira alguém da fila, quando você diz que não quer e a pessoa não foi convocada. É uma bobagem”. A única opção aceitável, segundo ele, são os casos de gestantes que receberam a primeira dose da AstraZeneca e terão a segunda com a CoronaVac ou Pfizer – algo já permitido entre as autoridades sanitárias.
Nos grupos, no entanto, o pensamento é o inverso. A nova regra da prefeitura contra quem escolhe a primeira dose da vacina é, na verdade, o que atrapalha. "Todos querem se vacinar, mas todos tem o direito de escolher. Meu corpo, minhas regras!", defende um participante. Um outro rapaz, entre vários que entraram nos grupos para conscientizar as pessoas e tentar convencê-las a tomar a vacina disponível, respondeu a mensagem: "se vacinar é um acordo coletivo, não importa qual seja a vacina".
Ainda que o foco seja a distribuição de dose pelos postos, os comentários também passam pelos questionamento da validade das vacinas e pelas justificativas pela qual estão fazendo a escolha. "A gente é cobaia de todas essas vacinas, se eu pudesse eu nem tomaria nenhuma. Mas como não tenho outra opção, eu escolho sim qual vai ser melhor pra mim. O corpo é meu e eu quem sei o que posso tomar ou não", afirma uma participante.
Veja como é o dia de um grupo de sommeliers de vacina
“Estava a fim da dose única”
Um dos milhares de membros dos grupos, em condição de anonimato, contou que inicialmente não tinha a ideia de selecionar a vacina. “Mas o pessoal aqui do escritório comentou que existiam esses grupos. Eu tinha receio de tomar CoronaVac e estava a fim de tomar aquela que é uma dose só, a Janssen. Por isso entrei no grupo”, comenta.
Ele conta que, se chegasse a um posto que aplicasse CoronaVac, pensaria em procurar por outro lugar com imunizantes da Pfizer, AstraZeneca ou Janssen. Mas não precisou. "No fim das contas, nem procurei. Fui ao posto mais próximo de casa e tomei AstraZeneca."
Apesar da presença nos grupos, o rapaz considera correta a decisão da prefeitura de mandar ao fim da fila quem se recusa a receber algum imunizante.
Críticas à prefeitura por lei contra sommeliers
"A lei já tá valendo ne, mas espero que só pergunta não pegue nada", diz um dos membros do grupo que troca informações sobre a zona leste. Comentários receosos e críticas à nova lei se misturam às recomendações para escapar da punição ao tentar conferir os imunizantes disponíveis para a primeira dose em cada posto. “Vamos manter a liberdade”, conclui o autor de um dos recados.
A SMS (Secretaria Municipal de Saúde) informou que a adesão à vacina contra a covid-19, até o momento, está em cerca de 98%, e que atuará nos postos de maneira a informar a população a respeito dos riscos de não se imunizar, buscando convencer os munícipes a não desistirem devido à marca do imunizante.
À reportagem do R7, o secretário da saúde da capital, Edson Aparecido, também destacou a alta adesão à imunização em diferentes faixas etárias com a primeira dose. “Não é momento de escolher vacina, mas sim de tomar vacina", afirmou.