Dez anos após os ataques que deixaram mais de 500 mortos, duas pessoas estão condenadas
Dados do MP mostram que a maioria dos casos nem passou da fase de investigação policial
São Paulo|Ana Ignacio, do R7*
Há exatos dez anos, São Paulo vivia um dos momentos mais sombrios de sua história. Uma facção criminosa que domina os presídios do Estado colocava suas tropas na rua com a estrita ordem de implantar o terror. As forças de segurança sofreram pesados ataques, ônibus foram queimados e, dentro das cadeias, explodiam rebeliões. Os líderes do ainda pouco conhecido Primeiro Comando da Capital (PCC) conseguiram fazer a maior metrópole do País baixar suas portas em pleno dia. E a resposta do Estado não foi menos violenta.
A semana de 15 de maio de 2006 foi marcada por sangue escorrido nas ruas, principalmente na periferia. Ao menos 30 municípios do interior e do litoral registraram chacinas e mortes com características de execução, cometidas por encapuzados. Foram dias de excesso que jamais passaram pelo crivo da Justiça.
De acordo com levantamento do MP (Ministério Público) de São Paulo, 508 pessoas morreram durante os ataques de maio (dados de outras entidades indicam número ainda maior). Desse total, 198 casos foram arquivados, suspensos ou extintos e para mais de 270 casos nada consta para o MP, o que indica que as investigações continuam em aberto, mas não tiveram desdobramentos.
Além disso, dos mais de 500 registros, somente 31 foram denunciados para a Justiça, segundo o MP — quatro chegaram ao Tribunal do Júri e estão em fase de recurso; três foram impronunciados (quando o juiz conclui que não há provas contra o acusado pelo crime em questão); quatro foram julgados e os réus, absolvidos; dois foram suspensos, um arquivado; dois tiveram os réus condenados e os demais ainda estão em aberto. Nota do MP indica que foram denunciados 30 casos, mas análise da tabela com os registros da época enviada ao R7 pelo órgão indica que 31 chegaram a fase de denúncia.
Invisíveis: um raio-x da impunidade no Brasil
As marcas de sangue foram apagadas do asfalto e a população lembra vagamente daqueles dias de medo. Mas quem perdeu um familiar não esquece. E não desiste.
“O governo do Estado de São Paulo diz que está em guerra [contra o crime] e que tem que vencer uma batalha todo dia. Só que o governo tem que explicar que quem morreu nesta batalha eram alunos da escola”, diz João Inocêncio Correia de Freitas, pai de Mateus Andrade de Freitas, morto no dia 17 de maio de 2006, aos 21 anos, junto de Ricardo Porto Noronha, de 16 anos. Ambos cursavam o terceiro ano do ensino médio no período noturno em um colégio a três quadras da casa de Matheus.
Naquele dia, eles tinham ido até a escola, mas devido a um toque de recolher na região, a escola dispensou os alunos. Na volta para casa, foram mortos por homens encapuzados em motos.
— Eles querem que o povo esqueça o que aconteceu, querem que não se saiba a verdade, porque é um escândalo o que aconteceu. E depois continuou acontecendo [com outras famílias].
Antonio Jose Maffezoli Leite, defensor público que acompanha mortes ocorridas nesta época na Baixada Santista, explica que a maioria dos inquéritos foi arquivado por falta de provas. Em nota, o MP confirma que “a complexidade dos fatos, em especial a dificuldade de apuração da autoria dos delitos e a ausência de testemunhas, culminou com o arquivamento da maioria dos inquéritos policiais instaurados a respeito, por falta de indícios probatórios”. Maffezoli assumiu casos (que envolvem nove mortes) ligados ao movimento Mães de Maio e critica a forma como as investigações foram conduzidas.
— São arquivados por falta de prova, mas as investigações são toscas.
Uma das histórias mais marcantes do descaso das investigações foi a morte do gari Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, filho de Débora Maria da Silva, fundadora e líder do movimento Mães de Maio. Ele foi morto em 15 de maio de 2006 quando buscava um posto de gasolina aberto para abastecer sua moto. Rogério foi abordado duas vezes por homens sem farda. Na primeira, foi espancado. Na segunda, quando os homens já estavam encapuzados, recebeu cinco disparos. Ele foi enterrado com um dos projéteis alojados na coluna cervical.
"Há sim evidências [de falhas nas investigações], senão o corpo do meu filho não seria exumado em 2012 para a retirada do projétil", conta Débora, indignada.
— Vê só, uma peça fundamental pra fazer um exame de balística e desvendar um crime contra a vida. E o IML alega que quebrou os instrumentos e não teve como recuperar o projétil.
Desarquivamento e federalização dos casos
"Quando os casos chegaram [para mim] em 2008, todos os inquéritos estavam arquivados", relata o defensor.
— Na esfera criminal o que fizemos foi pedir federalização para que os casos fossem investigados pela PF e julgados pela Justiça Federal.
Esse pedido foi encaminhado ao Procurador-Geral da República em 2010. Para ele, como há suspeita de envolvimento de policiais nas mortes, uma investigação na esfera federal poderia ajudar já que a Polícia Civil não estaria à frente dos trabalhos — hoje, isso intimida testemunhas e familiares das vítimas.
— Nesse pedido a gente aponta as falhas nas investigações, o que deixou de ser feito, mostramos que não havia interesse da polícia em focar nos inquéritos. Faz dez anos e ninguém foi indenizado, ninguém teve reparação emocional, apoio psicológico, nem andamento na investigação. Essas pessoas, essas mães, têm o direito à justiça e isso não ocorreu.
Já procurador do MP Márcio Sergio Christino, explica que o grande número de casos sem resolução é reflexo da forma de atuação dos criminosos nessa ocasião.
— Ao contrário dos ataques do PCC [que aconteceram antes das mortes dos civis], você não tem um comando ou uma diretriz que ligue todos os homicídios ou todos os fatos. As ações foram muito mais locais, foram muito mais episódicas, sem uma coordenação. Uma coisa é investigar uma ação de uma organização que tem começo, meio e fim, você pode responsabilizar uma liderança pelas ordens dadas e ações cometidas em vários locais. Outra é você apurar crimes individuais em vários locais sem nenhuma correlação exceto a motivação.
Para Christino, a resolução de um crime ocorrido na capital, por exemplo, não ajudaria na resolução de um assassinato ocorrido no Guarujá.
— Você tem mortos por organização criminosa e aqueles que suspostamente foram mortos por policiais, que foi a reação que todo mundo fala. Essas duas coisas não se confundem.
Maffezoli Leite, no entanto, não acredita que os assassinatos de civis tenham sido tão isolados assim.
— Aconteceram essas mortes em várias partes do Estado, datas próximas, tudo indicava que eram os mesmos grupos, coordenados. Eles foram investigados como se fossem isolados e isso atrapalha as investigações. O certo seria reunir isso em uma força tarefa e investigar conjuntamente.
A proposta de Leite também foi defendida pela comissão especial criada em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os trabalhos do grupo foram concluídos em 2013 com a elaboração de um relatório. Entre as recomendações está a de se “criar força tarefa para levantamento e análise de todos os Boletins de Ocorrência relacionados aos ‘Crimes de Maio de 2006’, a fim de que sejam verificados os andamentos (inquéritos, diligências realizadas, pedidos de arquivamento, eventuais denúncias, entre outros), adotando as medidas cabíveis”.
A comissão concluiu, ainda, que ocorreu um número de mortes maior que o registrado pelo MP. De acordo com o relatório, “no período de 12 a 21 de maio de 2006, com base nos boletins de ocorrência e laudos periciais de mortes causadas por armas de fogo, constata-se o universo de 564 mortos e 110 feridos. Com relação às vítimas de homicídio, estas podem ser identificadas como civis (505 mortes) e agentes públicos (59 mortes)”.
Ivana Farina, atual vice-presidente do CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos), participou da comissão e comenta o resultado do relatório do grupo.
— O relatório apresenta várias recomendações. A comissão recomendou o desarquivamento de inquéritos, criar uma força tarefa para analisar os BOs, reiterar a ausência dessas ações para o MP e a SSP e também que priorizasse o pagamento de indenização das vítimas para os familiares.
Outra medida que o grupo recomentou foi a instauração do IDC (Incidente de Deslocamento de Competência) que é o pedido de federalização dos casos feito por organizações da Sociedade Civil, como explicou o defensor dos casos das Mães de Maio. Segundo conclusão da comissão, “diante da omissão estatal em investigar os crimes cometidos na Baixada Santista, diversas entidades solicitaram ao Procurador-Geral da República a instauração de um IDC, a fim de que as investigações e o processo relativos às graves violações aos direitos humanos sejam deslocadas para o âmbito federal”.
Até hoje, não houve posicionamento da PGR sobre o tema. O pedido segue em análise. Os inquéritos arquivados, assim permaneceram, como confirma o procurador do MP que diz “desconhecer” algum caso que tenha sido reaberto e as outras recomendações da comissão também não saíram do papel.
Impunidade e luta
Após as mortes em maio de 2006, muitas famílias de vítimas se juntaram para lutar por justiça e apoiar uns aos outros. O movimento Mães de Maio surgiu dessa forma. Segundo Maffezoli, os parentes continuam procurando o MP para saber de possíveis novidade sobre as mortes de seus filhos e sempre ouvem que não há fatos novos.
— Mas como vai ter prova nova se não tem investigação? O Estado transfere para a família a responsabilidade de ir atrás de prova? Se expor a riscos? Principalmente no começo, as famílias faziam isso e elas eram ameaçadas.
Ivana concorda que do jeito que os processos foram conduzidos e, com o tempo que passou, a situação das famílias fica cada vez mais complicada.
— [Os casos] foram documentados de forma precária tanto que as investigações não foram pormenorizadas, isso dificulta muito e o tempo desfavorece qualquer investigação que não tenha sido iniciada de forma pormenorizada.
Apesar de as chances de desfecho serem cada vez menores, Maffezoli diz que as mães ainda acreditam que é possível conseguir um desfecho para toda essa história.
— Elas têm esperança. Por isso que continuam essa luta incansável, que é desgastante, e a impunidade desses crimes acaba servindo de estímulo para chacinas que aconteceram depois. Todos os números de letalidade policial nos anos seguintes mostram isso. Uma investigação e atuação mais duras naquela época teriam servido para mostrar que tem risco, que não há impunidade.
No último dia 9 de maio, um pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu nova esperança para os familiares. Janot pediu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) a federalização de cinco homicídios que aconteceram em 14 de maio de 2006 em São Paulo. Na ocasião, cinco homens foram assassinados no Parque Bristol, na capital paulista, após serem baleados por pessoas encapuzadas. De acordo com nota da PGR (Procuradoria Geral da República), “posteriormente, houve alteração da cena do crime, sugerindo a forma de atuação similar a uma série de outros assassinatos que vinham acontecendo no Estado por parte de grupos de extermínio composto por policiais militares”.
A procuradoria, apesar de a Polícia Civil de São Paulo ter instaurado inquéritos para apurar os fatos, “concluiu pela ausência de elementos suficientes de autoria, encaminhando os autos ao Ministério Público do Estado, que pediu o arquivamento do caso”. Segundo a PGR a apuração policial do caso foi prematuramente interrompida, como defende Janot em seu pedido: “O que se constata é que falhas e omissões gravíssimas permearam todo o procedimento investigatório, que não levou em consideração o papel fundamental que a Polícia Militar desempenhou no episódio, muito menos o contexto de represália por parte dos órgãos de segurança pública”. Para Janot, “manter o arquivamento do inquérito, sem a investigação adequada, seria ratificar a atuação institucionalmente violenta de agentes de segurança pública e, consequentemente, referendar grave violação de direitos humanos”.
Ainda de acordo com a nota, segundo o procurador da República Ubiratan Cazetta, coordenador da Assessoria Jurídica de Tutela Coletiva da PGR, a federalização dessas mortes não significa que demais pedidos serão aceitos, mas pode ser um começo. O pedido para federalizar as mortes ocorridas na Baixada Santista citado nessa reportagem ainda tramita na área de Tutela Coletiva do Gabinete do Procurador-Geral.
— O foco é nestes cinco homicídios. Não se discute a análise de todas as mortes dos Crimes de Maio, mas sim de algumas específicas, e estas poderão puxar o novelo das demais.
Débora afirma que os familiares estão diante de uma "revolução".
— Nós temos o dever de fazer essa resolução e dizer 'Basta'. Essa segurança pública não nos pertence. Não podemos aceitar que pagamos a bala que matou os nossos filhos com nossos impostos. Eu pago um imposto caro pra pagar o mandante da morte dos nossos filhos, pra pagar quem aperta o dedo e pagar quem pede o arquivamento com a canetada.
O que dizem Ministério Público de SP e governo de SP?
Em nota, o MP informou que em maio de 2015 sediou uma audiência pública “com o objetivo de colher novos subsídios que pudessem levar à identificação dos autores dos crimes”. Após esse encontro, o MP-SP instaurou um inquérito civil na Promotoria de Direitos Humanos da capital, com o objetivo “de colher o maior número possível de subsídios sobre aquelas mortes. O inquérito civil, ainda em andamento, tem como foco a obtenção de mecanismos para o ressarcimento de caráter individual aos familiares das vítimas”. Além disso, também foi instaurado outro inquérito civil na Promotoria de Direitos Humanos com a finalidade “promoção de mecanismos para a redução da letalidade policial”.
O órgão informa também que assinou recentemente termos de cooperação com o Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) para recebimento de informações sobre mortes envolvendo agentes do Estado, e com a Prefeitura de São Paulo para recebimento de informações sobre “atos de violência praticados contra a juventude, instrumentos que possibilitam que movimentos sociais e órgãos públicos encaminhem ao MP-SP notícias sobre crimes praticados por policiais”.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública informou que se posicionaria sobre os casos apenas com uma nota, sem divulgação de dados e de outras informações solicitadas pela reportagem como, por exemplo, possível indenização recebida por parentes de policiais mortos e número de condenações.
A SSP não admite erros nas investigações. No texto, a pasta “esclarece que as mortes ocorridas em maio de 2006 foram investigadas pela Polícia Civil e pela Corregedoria da PM. As investigações foram acompanhadas pelo Ministério Público e relatadas à Justiça. Todas as ocorrências de morte foram apuradas, à época, com rigor, assim como as denúncias de eventuais homicídios que poderiam ter policiais como autores”.
* Colaboraram Diego Junqueira e Victor Labaki
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