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Escolas públicas e privadas de SP registram um caso de maus-tratos a cada dois dias

De 2002 a maio de 2023, segundo levantamento exclusivo do R7, a SSP registrou 3.862 boletins de ocorrência desse tipo de crime

São Paulo|Letícia Dauer, do R7

Donas da escola Colmeia Mágica foram condenadas
Donas da escola Colmeia Mágica foram condenadas

Nos últimos 21 anos, o estado de São Paulo registrou um caso de maus-tratos que aconteceu em escolas a cada dois dias. De 2002 a maio de 2023, a SSPSP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) contabilizou 3.862 boletins de ocorrência dessa natureza.

Os dados exclusivos foram obtidos pelo R7 via LAI (Lei de Acesso à Informação).

O levantamento considera episódios de violações em instituições de ensino públicas e privadas. Para não permitir a identificação dos casos, que envolvem crianças e adolescentes, a pasta não informou o nome das escolas nem o tipo de relação entre as vítimas e os autores.

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Uma situação é considerada maus-tratos, segundo o Código Penal, quando uma pessoa sob responsabilidade do agressor tem a vida ou a saúde exposta ao perigo, sendo submetida à privação de refeições ou cuidados essenciais, submissão a trabalhos excessivos ou inadequados ou abuso dos meios de correção ou disciplina.


Fernando Castelo Branco, advogado criminalista e professor de processo penal da Faculdade de Direito da PUC-SP, explica que, para um episódio ser configurado como maus-tratos, é necessário existir uma relação hierárquica entre as partes mediante a situação de autoridade, guarda ou vigilância com a finalidade de educação, ensino, tratamento ou custódia.

"Se um adulto agredir uma criança na rua, por exemplo, e não existir esse vínculo de autoridade com a criança, de guarda ou custódia, ele estaria praticando uma lesão corporal e não maus-tratos", esclarece Castelo Branco.


Um exemplo é o caso do menino de apenas 2 anos flagrado preso em uma "jaula" no CEI (Centro de Educação Infantil) 7, em Sorocaba, interior de São Paulo, em junho. Na época, a instituição informou à mãe do aluno que ele foi colocado no "cantinho da reflexão", após supostamente ter quebrado um brinquedo. O Ministério Público de São Paulo (MPSP) abriu um inquérito para investigar o episódio.

Outro caso de grande repercussão é o da escola Colmeia Mágica, localizada na zona leste da capital paulista. Em março de 2022, viralizaram nas redes sociais imagens de alunos com os braços amarrados, sendo alimentados dentro de um banheiro enquanto choravam. As duas proprietárias e uma funcionária da instituição foram condenadas, em fevereiro deste ano, por torturar e maltratar nove crianças.

Crianças são as principais vítimas

De acordo com o levantamento, 3.299 das 3.862 vítimas de maus-tratos nas instituições de ensino são crianças de até 11 anos, o equivalente a 85,4% das ocorrências. O grupo mais vulnerável pertence à primeira infância, período que vai do nascimento do bebê até os 6 anos, com 2.005 vítimas.

Analisando o local das denúncias, os berçários e as creches registram o maior número de casos (1.735), com quase 45% do total. Em segundo lugar do ranking está o ensino fundamental, com 1.547 ocorrências, e, na sequência, o ensino médio (152).

Criança amarrada na escola Pequiá, em São Paulo
Criança amarrada na escola Pequiá, em São Paulo

Para a psicóloga infantil Raquel Manzini, que é doutora em psicologia clínica, o contexto escolar é uma extensão do contexto familiar e onde a criança deveria encontrar um espaço de proteção. "Se esse ambiente oferece violência, hostilidade ou maus-tratos, vai gerar consequências como a insegurança ou o sentimento de culpa", afirma.

Em determinados contextos, o autor da agressão pode fazer uma inversão de papéis. De acordo com Manzini, a criança é posta como a "causadora da violência" em razão de algum tipo de comportamento e, por consequência, acredita ser "merecedora" daquela ação, enquadrada como maus-tratos.

Como identificar um episódio de maus-tratos?

Uma vítima de maus-tratos pode apresentar mudança de comportamento ou marcas pelo corpo. Por isso, é importante que os pais e responsáveis dos alunos fiquem atentos a esses sinais. Lesões, arranhões, dores de cabeça, autolesões e dificuldade de respirar — um sintoma da ansiedade — são alguns possíveis indicadores físicos de violações, de acordo com Manzini.

Se uma criança, que normalmente apresenta um temperamento alegre, demonstrar pavor diante da possibilidade de retornar à escola, ter uma quantidade expressiva de pesadelos ou crises de choro, existe a possibilidade de ela ter passado ou estar passando por uma situação de maus-tratos.

Para a psicóloga infantil, é essencial que os pais e responsáveis mantenham um diálogo em casa com as crianças a partir de perguntas amplas como "o que você fez na escola?" ou "o que você viveu na escola?”. O objetivo é estimulá-las a descrever o cotidiano.

Manzini ainda sugere a criação de uma rede de proteção entre os pais dos estudantes para compartilhar as vivências e os problemas dos filhos nas escolas.

Motivo da violência

A violência é um evento multicausal. Por isso, não é simples explicá-la, especialmente dentro das escolas. Uma das razões para a existência do crime de maus-tratos é "a cultura e tradição de violência no trato de crianças que vigora historicamente na sociedade brasileira", de acordo com Ariel de Castro, advogado e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Castro também afirma que as principais vítimas são crianças que costumam apresentar dificuldade em se expressar e revelar aos pais ou responsáveis uma possível violência. Há muitas vítimas que ainda são desacreditadas em razão da idade, o que consequentemente atrapalha o registro da denúncia. Para o advogado, esses fatores criam uma sensação de impunidade.

A falta de fiscalização e supervisão das instituições, principalmente das particulares, por parte das secretarias de educação ainda é elencada pelo advogado como um fator que contribui para a composição desse cenário violento.

Ao R7, a psicóloga infantil Raquel Manzini alerta para a tendência negativa de culpabilizar apenas os profissionais da educação pelos casos de maus-tratos. Segundo a especialista, também é necessário levar em consideração as condições de trabalho e a formação profissional deles, que muitas vezes é incompleta.

Os educadores podem estar expostos a vários fatores estressantes, como sobrecarga de trabalho, falta de orientação e suporte da direção para a mediação de conflitos entre alunos e falta de apoio especializado, como acompanhamento psicológico.

A diretora do SinproSP (Sindicato dos Professores de São Paulo), Sandra Caballero, afirma que a saúde mental dos profissionais de educação está fragilizada e não é oferecida uma rede de apoio psicológico a eles, principalmente após a pandemia de Covid-19.

Segundo Caballero, o confinamento dos alunos em casa no período pandêmico trouxe consequências. "Eu senti que eles voltaram imaturos. Não aceitam mais limites e se comportam como bebês. Eles foram superprotegidos pelos pais", relata.

Divisão por municípios

Com a maior população do estado, a capital paulista concentra a maior quantidade de casos de maus-tratos, segundo o levantamento realizado a partir dos dados da SSP. De 2002 a maio de 2023, foram registradas 1.020 ocorrências, ou seja, mais de um quarto do total.

Em segundo lugar está Campinas, no interior do estado, com 134 casos. Em seguida, vêm os municípios de Guarulhos (85), Santos (82), Mogi das Cruzes (78), São José do Rio Preto (77), Santo André (58), São Bernardo do Campo (57) e Osasco (53).

Como denunciar?

O Disque 100 é um serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos que funciona 24 horas, todos os dias, inclusive nos fins de semana e feriados. A ligação é gratuita e sigilosa.

O serviço, coordenado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, atende a graves situações de violação que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante.

O denunciante ainda pode procurar outros canais de denúncia, como o aplicativo Direitos Humanos, o Telegram e o WhatsApp, no número (61) 99611-0100.

Também é possível registrar um boletim de ocorrência online pelo site da SSP ou presencialmente, em um distrito policial da cidade.

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