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"Fui testemunha viva da brutalidade do Ustra", diz vereador torturado na Ditadura

Coronel que comandou centro de tortura em SP foi homenageado na Câmara dos Deputados

São Paulo|Giorgia Cavicchioli, do R7

Quando tinha 19 anos, o vereador Gilberto Natalini (PV-SP) foi levado para o DOI-Codi da rua Tutóia para ser torturado
Quando tinha 19 anos, o vereador Gilberto Natalini (PV-SP) foi levado para o DOI-Codi da rua Tutóia para ser torturado Quando tinha 19 anos, o vereador Gilberto Natalini (PV-SP) foi levado para o DOI-Codi da rua Tutóia para ser torturado

Aos 19 anos, o então estudante de medicina e hoje vereador pelo PV-SP, Gilberto Natalini, foi uma das pessoas torturadas pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que voltou a ser destaque após ser homenageado durante a votação do impeachment. Ele foi preso para que informasse sobre o paradeiro de uma amiga que fazia parte da guerrilha. O próprio Natalini nunca fez parte da luta armada, mas era oposição à ditadura militar.

— O DOI-Codi era um centro de horror. Ustra era um ser monstruoso. Ele maltratava com as próprias mãos. Eu fui testemunha viva da brutalidade do Ustra. Eu digo tudo isso e provo. A tortura e o genocídio são as práticas mais hediondas da espécie humana.

Natalini diz que Ustra bateu “pessoalmente” nele, dando também choques elétricos. A violência foi tanta que o vereador sofre as consequências físicas e psicológicas das torturas até hoje. Formado em medicina, o grande sonho dele era ser cardiologista. Porém, ele é deficiente auditivo por conta dos choques que levou dentro do ouvido e não consegue ouvir o coração dos pacientes com muita precisão. O sonho teve que ser deixado de lado.

— Ele era muito violento, era um doente mental. Ninguém pode, em sã consciência, torturar uma pessoa. Uma pessoa assim não é um humano normal. O Ustra era um ser desse tipo. Ele passava da serenidade máxima para a demência máxima.

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Natalini lembra que Ustra bateu nele durante uma noite toda com um pedaço de madeira. Porém, mesmo tendo sido vítima direta das atrocidades do coronel, ele diz que não tinha como bater pessoalmente em todos os presos e que, por isso, coordenava tudo o que acontecia dentro do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo.

— Ele comandava tudo. Ele entrava e saía, mandava bater e dizia quando devia parar.

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Outra militante torturada pessoalmente por Ustra foi Amelinha Teles. Em entrevista à Rádio Nacional da Amazônia ela disse que foi espancada por ele ainda no pátio do DOI-Codi. O coronel era conhecido também por um método de tortura bem particular em que ratos eram colocados nas vaginas de presas. Ele também levava filhos de mulheres para vê-las durante a tortura.

— Ele levou meus filhos para uma sala, onde eu me encontrava na cadeira do dragão [instrumento de tortura utilizado na ditadura militar parecido com uma cadeira em que a pessoa era colocada sentada e tinha os pulsos amarrados e sofria choques com fios elétricos atados em diversas partes do corpo], nua, vomitada, urinada, e ele leva meus filhos para dentro da sala? O que é isto? Para mim, foi a pior tortura que eu passei. Meus filhos tinham 5 e 4 anos. Foi a pior tortura que eu passei.

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Ustra durante depoimento na CNV
Ustra durante depoimento na CNV Ustra durante depoimento na CNV

Depois de anos, Natalini presidiu a Comissão da Verdade de São Paulo. Em 2013, ele e seu torturador foram colocados frente a frente durante depoimento na CNV (Comissão Nacional da Verdade). O vereador diz que o reencontro “foi impactante”. Na ocasião, ele foi chamado de “terrorista” por Ustra.

— Ele era o assassino. Ele era a monstruosidade em pessoa. Eu nunca tirei sangue de ninguém, a não ser operando os meus pacientes.

Mesmo lembrando com tristeza da época em que sofreu no centro de tortura, o vereador diz que “nunca teve ódio desse tipo de pessoa”.

— Eu tenho desprezo. Eu tenho piedade da alma deles por serem tão pouco evoluídas. Nunca tive ódio, mas em alguns momentos tive dó por conta da baixeza dos atos deles.

Ustra morreu em 2015 por falência múltipla dos órgãos provocada por uma grave pneumonia sem nunca ter sido punido pelos seus atos durante a Ditadura Militar. Porém, ele foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como um torturador.

Recentemente, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) homenageou Ustra durante votação pelo prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados dizendo que seu voto era “em memória” do militar. Natalini diz que a fala é “abominável e lastimável”.

— Ou ele está muito desinformado, e isso é grave vindo de um deputado, ou está informado e é cumplice das atitudes do Ustra. Eu acho que impossível ser ignorância. O mais provável é que, se ele tiver oportunidade, ele vai torturar também.

A própria presidente Dilma Rousseff foi torturada por Ustra, assim como outros tantos militantes da época. Durante sua votação na Câmara, Bolsonaro também disse que o coronel era o "terror de Dilma". Em entrevista à jornalistas estrangeiros, a presidente disse que "é terrível ver alguém votando em homenagem ao maior torturador que esse País já conheceu".

— Acho lamentável. Eu, de fato, fui presa nos anos 70, de fato conheci bem esse senhor ao qual ele se refere. Ele foi um dos maiores torturadores do Brasil.

A reportagem do R7 pediu uma visita ao local onde funcionava o centro de tortura. Ela foi agendada diversas vezes e depois desmarcada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, sem explicações.

Natalini em foto com outros médicos voluntários em 1975
Natalini em foto com outros médicos voluntários em 1975 Natalini em foto com outros médicos voluntários em 1975

“Mãos de ouro”

Natalini também lembra que, depois de cinco anos que saiu do DOI-Codi, estava em seu estágio de ortopedia e apareceu um homem com o pé quebrado em seu consultório. Segundo ele, assim que o paciente entrou no local, ele o reconheceu como um de seus torturadores.

— Ele não me reconheceu. Eu fiz a anestesia, reduzi a fratura e ele não sentiu nada. No final ele falou: “Você tem mãos de ouro. Eu não senti nada”. Quando eu estava fazendo a receita, perguntei se ele reconhecia. Ele disse que não. Aí eu disse: “Mas eu lembro de você. Eu sou aquele estudante que você torturou barbaramente”. Ele se levantou, deixou tudo e saiu pulando pelo hospital. Ele desapareceu.

Antes de o homem sair, Natalini lembra que disse: “Eu tratei você como um ser humano, não como você me tratou”. Segundo o vereador, a reação do homem foi de “surpresa, vergonha e terror”.

— Ele deve ter pensado: “Esse cara pode se vingar de mim aqui”. Mas eu nunca faria isso. Meu espírito e minha mente superam essas coisas porque tenho um humanismo muito grande. Eu nunca tive ódio de ninguém.

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