Golpe do amor: investigações travam por falta de comunicação de empresas de aplicativos
As transferências bancárias via Pix e a criação facilitada de contas em bancos digitais também atrapalham o trabalho da Polícia Civil
São Paulo|Letícia Dauer, do R7
Tudo começa com um simples match. Um homem encontra uma mulher em um aplicativo de relacionamento e, após dias de conversa, decide vê-la pessoalmente. A caminho do ponto escolhido, a jovem afirma que teve um problema e muda o endereço do encontro, geralmente para sua suposta residência. Ao chegar ao local, uma surpresa. A vítima é rendida por criminosos armados e levada para um cativeiro, onde a conta bancária será esvaziada por meio de transferências via Pix.
O golpe do amor não é mais novidade entre os paulistanos e é notícia quase diariamente. Desde o surgimento dessa nova modalidade de sequestro, no início de 2021, a Divisão de Antissequestro de São Paulo prendeu mais de 420 pessoas e instaurou quase 190 inquéritos policiais.
Para o delegado Eduardo Bernardo Pereira, titular da 1ª Delegacia de Antissequestro, há três fatores que atrapalham o combate às quadrilhas de sequestradores:
• a falta de colaboração das empresas de aplicativo de relacionamento
• as transferências via Pix
• a facilidade na abertura de contas nos bancos digitais
O Tinder, o Happn e o Inner Circle foram apontados pelas investigações como os principais aplicativos usados pelos criminosos para atrair as vítimas de golpes do amor. Ao R7, Pereira afirma que, como as empresas são estrangeiras, é muito difícil estabelecer um diálogo.
"A grande dificuldade é que não temos a colaboração dessas plataformas, e a gente depende deles. O Marco Civil da Internet deixa claro que eles têm que ter sede no Brasil e são obrigados a fornecer informações, como os dados dos cadastros", explica o delegado.
Entre as empresas citadas, o Inner Circle é o único que mantém um diálogo com a polícia, porém nunca forneceu "nenhuma informação produtiva", de acordo com a Divisão de Antissequestro.
Uma das fragilidades dos aplicativos de relacionamento apontadas por Pereira é o fato de as quadrilhas criarem, facilmente, perfis falsos com fotos de mulheres retiradas da internet para ludibriar as vítimas. Os especialistas ouvidos pelo R7 recomendam que essas empresas aprimorem os mecanismos de segurança e desenvolvam meios para verificação da identidade dos usuários.
Outra dificuldade enfrentada pela polícia é o uso do Pix como uma ferramenta fundamental nos golpes do amor, já que permite transferências instantâneas em valores exorbitantes. Para o advogado Daniel Bialski, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o Pix deveria deixar de ser automático, pelo menos por um período, para frear esse tipo de crime, enquanto a polícia aperfeiçoa os métodos de investigação e monitoramento.
O Ministério Público e o Poder Judiciário, segundo o advogado, também têm que oferecer apoio logístico para descobrir como as quadrilhas estão se articulando, operando as contas das vítimas e, por fim, para localizá-las. “Antigamente, nos sequestros-relâmpago clássicos, em poucos minutos a polícia conseguia rastrear o telefone da vítima com autorização judicial”, relembra Bialski.
100% das vítimas são homens
Todas as vítimas dos casos de golpe do amor investigados pela Divisão de Antissequestro de São Paulo são homens, têm entre 30 e 65 anos e costumam ter alto poder aquisitivo ou estabilidade financeira, segundo o delegado Eduardo Bernardo Pereira.
Apesar dos diversos alertas, muitos homens continuam caindo nessa modalidade de sequestro. Em 2021, quando os golpes começaram a ser praticados, foram instaurados 83 inquéritos e 138 pessoas foram presas na capital e na região metropolitana de São Paulo. No ano passado, o número aumentou para 115 e 303, respectivamente. Neste ano, já há 33 presos e dez casos em investigação.
Em 24 de janeiro, por exemplo, um gerente comercial de 50 anos foi libertado após ser sequestrado e perder R$ 90 mil em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. No dia, sete homens e duas mulheres, envolvidos no crime, foram presos em flagrante.
A ingenuidade, a autoconfiança e a falta de informação são apontados por especialistas em segurança pública como os principais elementos que levam os homens a sofrerem esse tipo de golpe combinado com o "sequestro Pix".
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De acordo com Alan Fernandes, membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), os criminosos usam várias artimanhas para enganar as vítimas. As quadrilhas, por exemplo, costumam escolher fotos de mulheres bonitas e jovens para a criação das contas falsas. No perfil, ainda é descrito que elas estão em busca de um grande amor ou que sofreram desilusões amorosas recentemente.
Após cair no golpe do amor, muitas vítimas não compartilham a informação com os amigos por vergonha. Alguns, inclusive, têm relacionamento estável ou são casados, e por isso não querem que a família descubra o uso dos aplicativos de relacionamento.
"Na própria delegacia, eles não falam a verdade. É difícil extrair informações. Eles começam contando outra história, que foram encontrar uma garota e acabaram sendo abordados [antes de chegar ao ponto de encontro], quando foram abastecer o carro. Entretanto, a gente sabe que não é isso que acontece", conta Pereira.
Evolução do modus operandi
Desde o surgimento dos golpes por aplicativos de relacionamento, os sequestradores vem aprimorando o modus operandi com o intuito de despistar as autoridades. Confira as fases dessa modalidade, segundo o delegado titular da 1ª Delegacia de Antissequestro:
1ª fase: A vítima é arrebatada pela quadrilha após marcar um encontro por aplicativo e levada para um cativeiro. No local, a conta bancária é esvaziada por meio de transferências via Pix. Os criminosos ainda praticam extorsão, ligando para a família e amigos do sequestrado.
2ª fase: Os sequestradores abandonam a extorsão e adotam um novo método para extrair mais dinheiro da vítima. Fingem ser o sequestrado e mandam mensagens a familiares ou amigos em que pedem dinheiro emprestado, por exemplo, para consertar o carro.
3ª fase: Os criminosos deixaram de entrar em contato com familiares e amigos para não atrair a atenção da polícia.
O delegado também explica que, além das transferências via Pix, as quadrilhas criam várias contas em bancos digitais em nome da vítima e fazem empréstimos pré-aprovados. "Depois de liberar a vítima, continuam manipulando essas contas 'laranjas'. Às vezes a pessoa só descobre que uma conta foi aberta quando o banco cobra o empréstimo", relata.
Cuidados
O especialista em segurança pública Alan Fernandes e o advogado Daniel Bialski apontam duas dicas principais para não cair no golpe do amor: verificar se a mulher do perfil de aplicativo realmente existe, consultando outras redes sociais, e marcar encontros em locais públicos.
Outro lado
Questionada sobre a colaboração com a polícia, a Inner Circle afirmou que "quando recebemos uma solicitação oficial de dados feita pela polícia, nós compartilhamos com eles todas as informações cruciais que darão suporte à investigação policial".
"Conseguimos reduzir ao mínimo essas solicitações graças ao nosso processo de triagem híbrido que, ao lado da detecção automatizada de golpes, possui detecção humana para impedir que perfis falsos e golpistas entrem no Inner Circle. Nós inovamos constantemente esta área com novos sistemas de segurança para aumentar a barreira de entrada dessas pessoas no app e somos o único aplicativo de relacionamentos fazendo isso atualmente", ainda declarou a empresa.
Enquanto, o Happn alegou que "as autoridades locais podem sempre entrar em contato com o atendimento ao cliente, direcionando a solicitação diretamente para nossa equipe jurídica. Nesse cenário, o serviço jurídico solicitará informações importantes para identificar e investigar a situação diretamente com a polícia. Todas as informações que compartilhamos com as autoridades são totalmente protegidas, pois as compartilhamos por meio de um processo altamente seguro para garantir que tudo permaneça confidencial".
A plataforma também compartilhou algumas dicas de segurança aos usuários como dar preferência a perfis certificados, conversar com o crush no aplicativo o máximo possível, marcar encontro em local público e entrar em contato com o suporte do Happn caso alguém esteja violando as regras do aplicativo.
Procurado, o Tinder não respondeu aos questionamentos da reportagem.