'Invisíveis', pessoas com deficiência sofrem com violência doméstica
Subnotificação nas agressões dentro de casa é comum a todos os problemas sofridos por pessoas com deficiência para acessar direitos básicos
São Paulo|Gabriel Croquer*, do R7
Aos 12 anos, Ana**, que é cega, diz ter começado a ser molestada sexualmente pelas mãos do homem que a adotou e a levou do estado da Paraíba, onde nasceu, para a cidade de São Paulo. Foram seis anos lidando com toques indevidos e o medo de se despir. Na maioridade, Ana teve a coragem de expor a violência à esposa do agressor que, a princípio, não acreditou.
Alguns meses depois, a mulher passou a reconhecer parte dos abusos, mas não o culpado: 'você que tirava a roupa, você que se exibia', dizia ela à filha adotiva. "Ela deu um jeito de me expulsar de casa arrumando um casamento - eu não diria que foi forçado, mas foi um casamento arranjado", relembra a vítima.
Para garantir o silêncio, a esposa do agressor recorreu a um homem que era "obediente" às suas ordens, nas palavras de Ana. Ele não a ajudava a denunciar os abusos sofridos na adolescência e a mantinha presa em casa.
A cegueira total e o isolamento não impediram a paraibana de buscar por Justiça. Com a ajuda de um homem que havia conhecido por amigos em comum na internet, ela planejou sua fuga por meses enquanto estava presa em casa. Em maio deste ano, a dupla enganou o marido da vítima, dizendo que Ana precisava ir à UBS (Unidade Básica de Saúde) mais próxima, enquanto acionavam a polícia para o resgate.
"Eu falei: 'Tá, eu faço BO (Boletim de Ocorrência), denúncia, faço tudo'. Mas eu impus uma condição: 'eu não volto mais para casa depois de hoje'", repete a vítima, sobre as últimas palavras aos policiais dentro do posto de saúde.
No dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência, 21 de setembro, a reportagem do R7 conversou com especialistas, ativistas e pessoas que lutam pelos direitos de quem tem deficiência para discutir a violência doméstica, que se soma a outras inúmeras formas de agressão sofridas por este grupo no dia a dia.
Os direitos destas pessoas, já garantidos por lei, não são amparados pela estrutura de serviços públicos, segundo especialistas. Para as pessoas com deficiência vítimas de discriminação, violência ou desta falha de estrutura, a denúncia é o único caminho para garantir igualdade.
Múltiplas barreiras
A proximidade com os agressores - que geralmente vivem na mesma casa, como no caso de Ana - e a falta de autonomia de algumas pessoas deste grupo são fatores que atrapalham as denúncias e geram subnotificação alarmante.
"Para cada caso que tem de boletim de ocorrência estima-se que entre quatro e seis pessoas que também sofreram violência de alguma forma, não foram até a delegacia, não fizeram alguma queixa, não fizeram BO, não pediram orientação ou não pediram socorro", diz a secretária dos Direitos da Pessoa com Deficiência do estado de São Paulo, Célia Leão.
A pandemia do novo coronavírus aumentou ainda mais a subnotificação.
Nos meses de março, abril e junho, que marcaram o auge do isolamento social no estado, o número de atendimentos a pessoa com deficiência caiu mais de 75%em comparação com o início do ano, segundo dados da 1º Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência, na cidade de São Paulo. A partir de julho, o índice voltou ao patamar médio, de cerca de 120 denúncias por mês de pessoas com deficiência.
A denúncia por meios não-especializados - seja 190, Ministério Público ou Defensoria Pública - é possível, mas oferece barreiras que podem impossibilitar o socorro. Outros fatores de acessibilidade, como a mobilidade urbana, também são cruciais dependendo da deficiência da vítima.
O supervisor do CAT (Centro de Apoio Técnico) à 1ª Delegacia da Pessoa com Deficiência, Clayton Borges, diz que pessoas surdas, por exemplo, provavelmente terão dificuldades para denunciar algum caso nos espaços usuais de denúncia.
"Os órgãos públicos no geral não garantem o direito do intérprete de libras. Aqui [Delegacia da Pessoa com Deficiência], a presença do intérprete de libras já é um diferencial para que a mulher surda agredida tenha essa possibilidade", explica.
Além disso, a vulnerabilidade inerente a certas deficiências gera "violências invisíveis", que só são constatadas com acompanhamento psicológico especializado. "Às vezes a pessoa comdeficiência intelectualestá sendo abusada sexualmente e nem sabe disso", diz a psicóloga Daniela Faria, que também trabalha no CAT, atendendo as vítimas que chegam à delegacia.
A 1ª Delegacia da Pessoa com Deficiência de São Paulo oferece apoio multissetorial e acompanhamento das vítimas após a denúncia, o que faz a unidade ser procurada por pessoas de áreas distantes até 94 km da capital. Por enquanto, é a única do estado especializada em atendimento às pessoas com deficiência.
Até o final da gestão Doria, em 2022, o governo estadual pretende implantar a estrutura especializada ao atendimento de pessoas com deficiência em dez Delegacias no interior de São Paulo.
A invisibilidade da pessoa com a deficiência veio à tona mais uma vez na pandemia
As denúncias podem ser feitas de forma remota e gratuita, por telefone no Disque 181, Disque 100 ou diretamente para a 1ª Delegacia da Pessoa com Deficiência de São Paulo, pelo número (11) 3311-3380.
A delegacia também tem dois canais de denúncias no Whatsapp. Pessoas surdas são atendidas pelo (11) 94528-9710 e pessoas com outras deficiências podem procurar o (11) 9918-8167.
Direito Básico
Além da vulnerabilidade para a violência doméstica, as pessoas com deficiência - que somam mais de 3 milhões só no estado de São Paulo e 45 milhões em todo o Brasil - historicamente lidam com baixo acesso ao mercado de trabalho, à mobilidade urbana e à educação.
A promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência só em 2015 demonstra o atraso na garantia, por lei, de direitos básicos de inclusão no trabalho, na saúde, nas escolas, no lazer e na mobilidade.
O advogado especializado em direito das pessoas com deficiência Marcelo Valio diz que a militância é fundamental para conseguir a igualdade e o cumprimento destes direitos.
"Quando você inicia uma demanda judicial, vem mais uma demanda, mais outra demanda, sobre a mesma matéria. Nós temos um órgão que pode defender toda essa coletividade, que é o Ministério Público ou a Defensoria Pública, e então estes órgãos podem agir de forma coletiva para que essa situação não ocorra mais", explica Válio.
É a mesma avaliação da militante Ivone de Oliveira, que criou em 2012 o blog "Gata de Rodas", em que divide com seus seguidores a sua rotina como mulher com deficiência motora.
"A gente precisa estourar bolhas. Falta ativismo dentro do nosso segmento. Ainda vejo muito isso em redes sociais - que é o lugar onde a gente mais aparece. As pessoas ainda só reclamando: 'falta acessibilidade em tal lugar. Eu não saio porque não tem acessibilidade', mas ainda falta aquele grupo de pessoas cobrar isso. É um direito nosso, nós não estamos pedindo nada a ninguém", defende.
Outros casos de violência não explícita, como a recusa de matrículas de crianças com deficiência por parte de escolas e a falta de acessibilidade a locais públicos também podem e devem ser denunciados e cobrados nos órgãos públicos, inclusive em delegacias, dependendo do caso.
Valio também citou a Lei nº 14.020, publicada em julho, que proíbe a demissão de pesssoas com deficiência sem justa causa durante o estado de calamidade pública, e a volta das aulas em São Paulo como exemplos das diversas transgressões aos direitos das pessoas com deficiência.
"Até o governo do estado de São Paulo, com o plano de retorno as aulas, esqueceu das pessoas com deficiência. Eu falo que, infelizmente, são os invisíveis [pessoas com deficiência]", conclui.
Nova vida após a denúncia
Enquanto aguarda o resultado da investigação contra o homem que a adotou, Ana** trabalha para conquistar independência financeira e ajudar outras pessoas com deficiência. Em depoimento à Polícia Civil, o agressor, a esposa dele e o ex-marido de Ana negaram ter ciência dos abusos.
Tem que denunciar%2C sem medo. Você não pode deixar que isso afete você%2C seu psicológico e seu corpo
Agora isolada por causa da quarentena, Ana, que também é cantora, aproveita que o amigo é produtor musical para se concentrar no lançamento de seu segundo disco, de música gospel. O primeiro foi gravado quando ela tinha 15 anos. "Eu vim pra cá para seguir a vida", diz.
Ela também trabalha para idealizar seu próprio projeto de ajuda as vítima de violência doméstica, que pretende colocar em prática assim que a pandemia acabar.
*Estagiário do R7, sob supervisão de Clarice Sá
**A identidade da vítima foi protegida. O nome é fictício