Justiça manda soltar trabalhadores confundidos com ladrões e presos quando iam pedir ajuda para PMs
Um quarto amigo, Lenilton de Oliveira, 30, foi morto a tiros por militares, que são pai e filho
São Paulo|Julia Rezende, Cissa Moreira e André Caramante, da TV Record
Cinco meses após terem sido presos quando, ao tentarem pedir informações para dois policiais militares foram confundidos com ladrões, três trabalhadores foram libertados nesta quarta-feira (06/07) por ordem da Justiça.
O ajudante de pedreiro Diego dos Santos Silva, o marceneiro Cledimir Queiroz de Souza e o pedreiro Alex Sandro Chagas Mendes Costa estavam na prisão desde 31/01, quando se perderam no caminho para uma festa de samba, na zona leste de São Paulo.
Um quarto amigo deles, o auxiliar de refrigeração Lenilton Marcos de Oliveira, 30 anos, foi morto a tiros pelos dois PMs, que são pai e filho, a quem pretendiam pedir informações. O caso foi revelado pelo R7 e pela TV Record em fevereiro.
A juíza Isaura Cristina Barreira, da 30ª Vara Criminal de São Paulo, foi a responsável por deferir o pedido de liberdade provisória do advogado de defesa dos três trabalhadores, Wendel Bernardes Comissário. O promotor do caso, André Pascoal da Silva, era contra a libertação dos amigos.
Apesar de o amigo deles ter sido vítima fatal dos dois PMs, os três trabalhadores, todos sem antecedentes criminais, eram acusados de latrocínio (roubo seguido de morte), mas a magistrada desqualificou a acusação contra o trio para roubo qualificado tentado.
A próxima audiência do caso será em 12 de agosto, às 14:30, também no Fórum da Barra Funda (zona oeste de São Paulo), onde familiares e amigos de Diego, Cledimir e Alex Sandro realizaram um protesto ontem (06/07) pela libertação do trio.
O DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, investiga se Lenilton foi executado pelos policiais militares Kaio César Chani de Freitas, 26 anos e integrante da Força Tática (grupo especial de cada batalhão) do 10º Batalhão da PM de SP, e seu pai, Sérgio Freitas, 57, policial militar da Reserva. O soldado Kaio estava em horário de folga quando a morte de Lenilton aconteceu.
Lenilton e os três amigos, moradores de Mauá, no ABC paulista, iam para uma festa de samba em São Mateus, na zona leste de São Paulo, quando o grupo se perdeu e resolveu pedir informações sobre como chegar ao endereço procurado.
Na rua Phobus, distante apenas 1,5 quilômetro do 49º Distrito Policial (São Mateus), os quatro amigos, divididos em três motocicletas, tentaram se aproximar de pessoas à frente de uma casa, onde havia acontecido uma festa.
Sozinho em sua moto, uma Honda Titan em seu nome e totalmente legalizada, Lenilton ia um pouco à frente dos amigos Diego dos Santos Silva, ajudante de pedreiro, e Cledimir Queiroz de Souza, marceneiro, que estavam na moto de Diego, também legalizada. Atrás deles, o pedreiro Alex Sandro Chagas Mendes Costa e o quarto do grupo. Ele também estava com moto própria e registrada conforme a lei.
Ao tentar chegar perto do grupo de pessoas à frente da residência na rua Phobus, sem ter tempo de dizer nenhuma palavra, os quatro amigos foram surpreendidos com uma sequência de tiros, segundo relataram Diego, Cledimir e Alex Sandro aos investigadores do caso.
Como era o mais próximo do grupo de onde partiram os tiros, Lenilton foi o primeiro dos quatro amigos atingido. Foram dois tiros: um no peito e outro no braço.
Ao mesmo tempo em que Lenilton desabava da sua moto, Alex Sandro também foi ferido e caiu na rua Phobus. Socorrido pelo Resgate do Corpo de Bombeiros, Alex Sandro foi levado para o Hospital de Santo André, no ABC paulista.
Os outros dois amigos, que vinham um pouco atrás de Lenilton e de Alex Sandro, também foram atingidos pelos disparos de pistolas .40, mas conseguiram pular das motos e correr pelas ruas de São Mateus.
A bala contra Diego ficou parada no capacete usado por ele no momento dos tiros. Na fuga, Diego correu por quase 600 metros até encontrar um prédio, na rua Antares, onde pediu ajuda ao porteiro. Ao ser autorizado a entrar, Diego pediu para que a PM fosse chamada para socorrer seus amigos.
Mesmo atingido por tiros no pé e no braço, Cledimir correu por 300 metros até que, na rua Deinos, perdeu as forças e teve de se sentar na calçada, onde ficou até a chegada de um carro da Polícia Militar. Ele também foi levado para o Hospital de Santo André pelo Resgate dos Bombeiros.
Quando a PM chegou ao prédio onde havia buscado abrigo, Diego contou o que havia ocorrido com ele e os três amigos e que o local dos tiros era bem próximo de onde estava.
Enquanto seguia para a rua Phobus, Diego e os militares ouviram pelo rádio do carro da Polícia Militar que “dois PMs haviam baleado ladrões que tentaram roubá-los”.
Ao chegar à rua, Diego viu o amigo Lenilton morto e, para sua surpresa, ao se identificar como um dos que haviam fugido dos tiros, passou a ser acusado de tentar roubar os PMs Sérgio de Freitas e o filho dele, Kaio César Chani de Freitas, responsáveis pelos tiros contra os quatro amigos.
Sem ter chance de explicar que ele e os três amigos não eram ladrões, Diego foi colocado no compartimento para presos de um dos carros da PM que, incialmente, haviam sido chamados para socorrê-lo e acabou acusado de tentativa de roubo.
Internados no Hospital Santo André, Cledimir e Alex Sandro também receberam voz de prisão e passaram a ser escoltados por policiais militares do 10º Batalhão, o mesmo batalhão onde trabalha o soldado Kaio Freitas, um dos responsáveis pelos tiros contra o quarteto de amigos.
Quando foi comunicado sobre a morte de Lenilton e sobre os tiros contra os três amigos, ainda na madrugada de 31/01, o delegado Charlie Wei Ming Wong, do Geacrim (Grupo Especializado em Assessoramento de Local de Crime), do DHPP, foi para São Mateus para investigar a versão dos PMs Sérgio e Kaio Freitas para os tiros.
Segundo pai e filho, os quatro amigos queriam roubar um carro no qual eles e familiares se preparavam para entrar ao sair da festa e, assim que chegaram perto, em cima das três motos, um dos quatro amigos atirou contra os PMs, que revidaram e acertaram Lenilton, Diego, Cledimir e Alex Sandro.
Pai e filho militares não foram feridos pelo suposto tiro disparado contra eles.
Quando vasculhavam a região da rua Phobus atrás de dois dos quatro amigos que fugiram correndo, mesmo baleados, policiais militares chamados pelo Copom (centro de operações da PM) disseram ter encontrado um revólver calibre 38 na rua Deinos, onde Cledimir estava sentado, à espera de socorro.
Perto do corpo de Lenilton, pai e filho PMs disseram ter achado uma réplica de arma de fogo e que ela teria sido usada pelos quatro amigos para tentar roubar o carro.
Sem permitir contato entre Cledimir, Alex Sandro e Diego, o delegado Charlie Wong interrogou os amigos e constatou a mesma versão para a ida deles com Lenilton até São Mateus: são todos trabalhadores, sem antecedentes criminais e iam para um samba, em suas motos totalmente legalizadas.
“Observe-se que os três envolvidos: Cledimir, Diego e Alex deram a mesma versão [sobre o caso] sem ouvirem cada um a versão do outro. Também verifica-se que a moto utilizada por Diego está em seu nome e que a placa estava de forma regular, sem estar suprimida ou dissimulada, o que não é normal por parte de quem pretende praticar um roubo. Além do mais, nenhum dos supostos envolvidos na prática da tentativa de roubo é reincidente. Estes detalhes causam uma certa perplexidade no espírito desta autoridade policial [o próprio delegado Charlie Wong] e devem ser consignadas”, escreveu o delegado Wong no registro do caso.
O analista de sistemas Roger Júlio dos Santos, 25 anos, e o desempregado Márcio Braz dos Santos, 44, amigos dos PMs Sérgio e Kaio Freitas, disseram ao delegado que a versão apresentada por pai e filho era a verdadeira. Eles acompanhavam os dois no momento dos tiros, assim como também outro PM, identificado apenas como Thiago e que não foi interrogado pelo DHPP porque foi embora do local da morte de Lenilton.
Reconhecimento duvidoso
O sargento Hélio Souto, um dos responsáveis pela ação da PM que prendeu Diego, Cledimir e Alex Sandro, afirmou ao delegado Charlie Wong que os militares Kaio e Sérgio, ao serem colocados frente a Diego, ainda na rua Phobus, disseram não ter certeza de que ele havia participado da suposta tentativa de roubo contra eles porque “todos os ladrões estavam com capacete”.
Mesmo com essa afirmação da impossibilidade de reconhecer os supostos ladrões, dois PMs levaram os militares Kaio e Sérgio Freitas ao Hospital de Santo André e os colocaram na sala onde Alex Sandro recebia atendimento médico. Lá, pai e filho não se lembraram de que os quatro supostos ladrões estariam com capacetes e o reconheceram como criminoso.
Cledimir não foi submetido ao questionável reconhecimento por parte dos policiais militares, que não têm função de realizar investigação, porque era operado enquanto Kaio e Sérgio Freitas circulavam com outros PMs dentro do Hospital de Santo André.
Ao final de sua investigação inicial, o delegado Charlie Wong resolveu prender Diego, Alex Sandro e Cledimir.
“Assim, apesar das anomalias, é certo que neste primeiro momento, de cognição sumária, diante dos depoimentos testemunhais obtidos e do encontro do revólver e do simulacro de arma, há indícios suficientes da prática do crime de tentativa de roubo por parte dos ora indiciados (repita-se: nesta fase de cognição sumária), razão pela qual suas prisões cautelares se impõem. De toda sorte, instaurado, como foi, o inquérito policial respectivo, os fatos poderão ser melhor apurados e totalmente esclarecidos”, escreveu o delegado Charlie Wong.
Nesta quarta-feira (06/07), a reportagem solicitou esclarecimentos sobre o caso e aguarda resposta por parte da Secretaria da Segurança Pública da gestão de Geraldo Alckmin (PSDB).
Foram feitas duas perguntas ao governo paulista:
- A investigação já foi encerrada pela Corregedoria da PM?
- Os dois PMs (pai e filho) foram absolvidos do homicídio de Lenilton?
A nota oficial da Segurança Pública:
"O DHPP informa que o inquérito foi relatado à Justiça com o indiciamento de Diego dos Santos Silva (27 anos), Cledimir Queiroz de Souza (24 anos), Alex Sandro Chagas Mendes Costa (23 anos) por tentativa de roubo a dois policiais, um na ativa e um reformado. Os policiais reagiram e atiraram nos suspeitos. Um acusado morreu. Assim como em todos os casos de morte decorrente de intervenção policial, a Corregedoria da PM acompanhou as investigações."