Mães que vivem em favela contam como enfrentam estereótipos
Antropóloga aponta julgamentos enfrentados por mulheres periféricas. 'Vulgares' e 'irresponsáveis' estão entre os principais estereótipos
São Paulo|Isabelle Amaral*, do R7

"Guerreiras e amorosas." No Dia das Mães, são esses os adjetivos mais usados para fazer referência às mulheres que batalham por seus filhos. Em outros momentos, no entanto, julgamentos sociais é que acabam ganhando espaço. E as mais afetadas pelos estereótipos são as mães que vivem em favelas de todo o Brasil.
Comentários como "preguiçosas", "vulgares", "nervosas" e "irresponsáveis por terem filhos sem condições financeiras estáveis para mantê-los” estão entre os principais estereótipos, segundo a análise da antropóloga Camila Fernandes, publicada em seu livro Figuras da Causação.
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A jovem Kailane Rodrigues, de 19 anos, moradora da comunidade conhecida como Favela do Pó, na zona norte, foi mãe aos 15 anos. Hoje, ela afirma que julgamentos como esses não a incomodam como antes. “Eu sempre sonhei em ser mãe. Então, por que para mim esse sonho tem que ser diferente do que para as mulheres que têm melhores condições? Não escolhi ser pobre e ter nascido na favela”, desabafou.
Kailane é outra mãe que se tornou alvo de discriminações sociais. O livro Figuras da Causação aborda o processo de marginalização da mulher, mãe e moradora da favela e divide essa parcela em três grupos mais citados por uma parcela da sociedade: as “novinhas”, mulheres que começam a vida sexual muito cedo e tiveram filhos; as “nervosas”, tachadas como agressivas e "descontroladas" com os filhos; e, por fim, as que abandonam as crianças e deixam que elas sejam criadas por terceiros.
A escritora disse à reportagem que sempre ouvia esse tipo de comentário sobre mães e decidiu tentar entender a história por trás dele. Para isso, foi às ruas. No livro, Camila ainda traça o perfil social dessas mulheres. A região onde moram com a família, o perigo, a escassez de recursos e até a falta de vagas em creches influenciam a maneira como elas criam os filhos.
Para Karina Andrade, de 31 anos, mãe de duas filhas e moradora da Favela da Ilha, na zona leste de São Paulo, essas condições com certeza impactam a criação das pequenas. A mulher, que hoje é empresária, conta que é viúva há cinco anos e que o marido foi assassinado na mesma região onde ela mora com a família. “É um choque viver aqui.”

A mulher afirma ainda que, ao ter a primeira filha, aos 17 anos, no último ano da escola, precisava deixar a menina com a avó para seguir com os estudos, e isso gerou comentários na vizinhança. Hoje, com 13 anos, a filha primogênita de Karina tem traumas após o assassinato do pai de criação.
Karina diz que a falta de segurança, lazer e educação em regiões como a dela afeta a criação dos filhos. “Morar em uma comunidade é diferente, aqui não tem muitas opções de lazer, não tem quadra, parques para as crianças. A segurança aqui também não é das melhores, a gente fica sempre preocupada. A educação, que é algo que eu prezo muito... Não há escolas que são realmente referência. Se eu pudesse, colocava minhas filhas em uma escola particular”, relatou.
Karina, que foi criada pela avó, afirma, ainda, que a vida é uma batalha diária. “As pessoas julgam muito a decisão que a gente toma, mas tudo o que eu faço, toda a minha força vem das minhas filhas. Hoje eu tenho meu próprio negócio e planejo crescer ainda mais”, finalizou.
Outra mãe, que mora e trabalha na região do Morumbi, na zona sul da capital, e preferiu não ser identificada, defende a educação, inclusive a sexual, nas escolas, como forma de conscientizar meninas que moram em regiões periféricas.
“A filha da mulher que trabalha lá em casa teve filho com 16 anos, e desempregada. Aí sobrou para a mãe dela. Eu sei que tem toda uma questão por trás, uma estranha cultura criada não só em regiões de favela, mas que vemos também em vários lugares, famílias, isso acontece. É praticamente uma criança tendo outra, não dá para achar normal. Muita gravidez indesejada na adolescência não aconteceria se esse assunto fosse mais abordado”, opinou.
Sexualidade
A coordenadora pedagógica Claudia Fer, de 47 anos, afirma que, apesar de uma parcela dos adolescentes estar munida de informações, o sexo é algo que, tecnicamente, é estimulado nas redes.
“Acredito que pela internet a sexualidade seja mais aflorada. Os adolescentes acham que têm que ter vida sexual ativa desde muito cedo e acabam se esquecendo de se proteger. É quando ocorre a gravidez indesejada e, em pior caso, acontecem doenças sexualmente transmissíveis.”
Para a psicanalista Sheila Murari, não são apenas as dificuldades financeiras e questões sociais que interferem na criação dos filhos, mas a emocional também. “Em casos de mães solo, por exemplo, elas são as únicas responsáveis pelo sustento, segurança, educação, amor e tudo o que uma criança precisa ter, e ainda são apontadas. Isso traz uma sobrecarga enorme."
De acordo a antropóloga Camila Fernandes, autora do livro sobre os estereótipos enfrentados pelas mães, é necessário que se fale sobre esse assunto mais abertamente. “Vamos aproveitar o Dia das Mães ou o da Mulher para tentar realizar exercícios que façam a sociedade se colocar no lugar delas, com um olhar diferente. Falar sobre algo que não é o meu local de fala, que eu não conheço a história, só vejo externamente, é fácil demais”, relatou.
Novinhas, nervosas e as mães que abandonam
No livro, a antropóloga conta a história de Laura, mãe de dois filhos e que era agredida pelo marido, que “não aceitava o fim da relação”. Na última briga do casal, a mulher optou por sair de casa, não aguentava mais levar pancada, mas não tinha como levar os filhos.
Após encontrar um local para morar, Laura voltou para buscar as crianças, mas o ex-marido não permitiu que ela levasse os meninos. Enquanto ela trabalhava, o ex-companheiro espalhava boatos de que ela teria abandonado as crianças, e foi assim que ela ficou conhecida na comunidade.
Além dessa, há histórias de mães que precisaram deixar os filhos sob cuidados de terceiros por conta de condição financeira, segurança, e até por medo de o Estado levá-los para um abrigo. “Sempre com muita dor e tristeza. São casos de mães que falam que não abandonaram os filhos, mas que tiveram que abrir mão deles”, avalia a antropóloga.
No caso das mulheres mais jovens, as "novinhas", muitas vezes consideradas sem maturidade, são julgadas pela maneira como se vestem, por comportamentos que reproduzem nas redes sociais e pela forma como decidem criar os filhos.
Nesses casos, boa parte dessas mulheres engravida inesperadamente. É o que aconteceu com a dona de casa Ligiane Barbosa, hoje com três filhos. Ela, que mora na Brasilândia com a família, diz que passou por “poucas e boas”, principalmente durante a gravidez do segundo filho, com o marido preso.
Ligiane teve seu primeiro filho, Pedro Henrique, aos 17 anos, enquanto ainda estava no ensino médio. Devido à gravidez inesperada, a mulher precisou abandonar os estudos para se dedicar à maternidade. Ela conta, ainda, que foi muito julgada, tanto por terceiros quanto por pessoas da família. No início, o pai de Ligiane não aceitou a gravidez.

Uma pesquisa da farmacêutica Bayer, publicada em abril, revelou que 62% das mulheres no Brasil tiveram gestação inesperada. Segundo o relatório, a gravidez não planejada se dá principalmente por dificuldades relacionadas ao uso de contraceptivos. “Entre os problemas, as entrevistadas apontaram não fazer uso de método (34%), falha do método (27%) e uso de maneira errada (20%).”
Para a psicanalista Sheila Murari, os casos de gravidez precoce podem ocorrer também por “uma possível repetição de um padrão familiar e falta de ações políticas sociais que olhem para os jovens entendendo suas necessidades sociais e psicológicas”.
Na pesquisa, Camila Fernandes afirma que as jovens da categoria “novinhas” com quem conversou criticam os julgamentos que recaem sobre as meninas em relação à sexualidade.
Por fim, há as mães consideradas “nervosas”, que são aquelas conhecidas por serem “agressivas” e pela “má criação da criança”. No livro, a pesquisadora explica que percebeu que muitas mães viam nas agressões, como surras, uma forma de educação. Entre os relatos que Camila escutou, este foi um: “Se a gente não educar em casa, quem vai educar amanhã? Vai estar aí apanhando de polícia, de bandido. Essa lei é maluca. Mais tarde vai estar até batendo na gente”.
Para esse grupo de mães, existem gradações daquilo que pode ser realizado ou não, o que transita entre o necessário, o justificável e o abuso. “Uma palmada educativa não faz mal, não. Nós crescemos com umas palmadas, e isso fez bem para a nossa formação”, relatou uma mãe à antropóloga Camila Fernandes.
“Precisamos tentar diminuir a carga das mães”, diz antropóloga
Não há uma forma considerada “certa” de exercer a maternidade. Cada mãe oferece aquilo que pode, e, de acordo com a antropóloga e escritora do livro Figuras da Causação, a sociedade, em geral, tem o dever de tentar diminuir a sobrecarga das mães. “A mãe acha que pode tudo e que não precisa receber nada em troca”, analisa.
Além de cuidarem de casa e de trabalharem, elas muitas vezes carregam outros pesos sozinhas. Entre eles: suportar relacionamentos abusivos acreditando ser o melhor para o filho; ser malfalada; não ser julgada com os mesmos parâmetros que os homens; carregar sozinha a responsabilidade de ter que oferecer tudo à criança, desde amor e carinho até a presença; e receber opiniões constantes de terceiros sobre a “maneira certa” de criação dos herdeiros.
Um horizonte para isso, segundo Camila, é entrelaçar os homens no processo, fazendo com que eles entendam qual o lugar deles e que a mãe não pode ser a única responsável pelos filhos. Além disso, a antropóloga afirma que a participação pública é de extrema importância, sendo necessários o apoio e a disponibilidade de vagas em creches e escolas, para que elas não se sintam sozinhas nesse processo.
“Escrever este livro foi muito forte para mim. Isso mudou, inclusive, como eu me relaciono com a minha filha, como ensino ela, como mulher, ativista, feminista. Vivemos uma ideologia de uma maternidade muito compulsória. Entendi, inclusive, as minhas limitações como mãe, e, com esse livro, espero que muitas mulheres entendam também”, desabafou Camila ao R7.
*Estagiária sob supervisão de Fabíola Perez














