Música, teatro e crochê: projetos humanizam presídio de São Paulo
Detentos participam de oficinas na Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo
São Paulo|Plínio Aguiar, do R7
“A oficina de teatro transformou a minha vida. Sei que agora o meu caminho será diferente”, disse Gabriel Martins Mendes, de 26 anos. O jovem está preso pelo artigo 33 (tráfico de drogas) na Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Mendes mais 24 companheiros irão encenar o clássico “O Auto da Compadecida” no próximo 29 de agosto. Na obra do paraíbano Ariano Suassuna, João Grilo e Chicó são dois nordestinos pobres que sobrevivem às custas de golpes. “Na peça, eles são salvos por uma benção divina. Nós, pelo teatro”, conta.
Com a voz tímida e um olhar desconfiado, Mendes senta-se em uma cadeira posta sob os raios quentes do sol de quarta-feira (20). E ele fica na área externa da antiga sala de ambulatório da penitenciária. “O teatro é uma maneira de esquecer o mundo. Esquecer as coisas ruins. É como dizem, mente vazia oficina do cão”, ri.
“A oficina de teatro transformou a minha vida"
Do outro lado do pátio, os 24 companheiros de Mendes observam atentos aos passos da reportagem do R7. Enquanto isso, os olhares do professor Evandro Batista não saem de seus pupilos. “É gratificante poder aprender e repassar algo. E estou fazendo por meio do teatro”, diz. Neste semestre, ele leciona duas vezes por semana, cerca de duas horas e meia cada aula. “A expectativa para o dia 29 é grande. Todos nós estamos muito nervosos” — o evento será aberto ao público.
O professor recorda que o aprendizado de encarar um personagem, de entender a história deles, bem como o processo de decorar as falas foi algo simples. “Eles chegam com vontade, com entusiasmo. Dessa forma, não tem tantas complicações, né?” justifica.
No semestre passado, o detento Mendes atuou pela primeira vez em um palco. A peça era Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.“Foi uma experiência legal. O teatro é muito legal”, explica. “Estou aqui de novo, é uma forma de olhar diferente e transforma as pessoas.”
Minutos antes, Atila Douglas da Silva leite, de 37 anos, conversou com o R7. Privado da liberdade pelo artigo 121 (homicídio), Leite deve sair da penitenciária em dois anos e já sabe qual rumo irá tomar: “quero seguir no teatro”, revela. Ele conta que começou na oficina há mais de um ano e meio e, desde então, teve uma mudança de comportamento. “Hoje eu sou mais tranquilo. Tenho várias coisas para fazer e me concentro nelas.”
Com olhar tímido e com as mãos entrelaçadas, Leite fala sobre a oficina de música a qual também participa. “É uma espécie de liberdade aqui na cadeia.” Ele se junta, duas vezes por semana, com outros 31 detentos. No dia 29 de agosto, cantarão Another Brick In The Wall, de Pink Floyd; Biko, de Peter Gabriel; Só Os Loucos Sabem, de Charlie Brown Jr.; Carmina Burana (o Fortuna), de Carl Orff e Amazing Grace, de Celtic Woman — sim, os detentos irão performar em inglês e latim.
Questionado sobre como os presos aprenderam inglês e latim, o professor de música e agente penitenciário Mário Jorge Antunes comenta que “a vontade de fazer algo grandioso era maior do que qualquer coisa”. “O aprendizado, dessa forma, foi mais natural do que forçado”, argumenta.
Quatro meses antes, o professor levou sugestões de músicas que, segundo ele, poderiam se encaixar de alguma forma com a história de cada um. “Eles (presos) também levaram canções e entramos em um consenso sobre quais músicas cantaríamos”, lembra. “O processo se deu de uma forma orgânica. O aprendizado, o timbre das vozes, o tempo certo de cada frase. Tudo aconteceu naturalmente.”
Humanizando o cárcere
Outra proposta, feita há quase três anos, também foi recebida de braços abertos pela SAP. E ainda foi parar no principal desfile de moda da América do Sul: o São Paulo Fashion Week, realizado de 21 a 26 de abril deste ano. O designer e artesão Gustavo Silvestre leciona desde outubro de 2015 crochê para os presos da Adriano Marrey. No início, apenas três alunos sabiam aplicar as técnicas: “eles vieram de outros presídios e por lá aprenderam o artesanato”.
Hoje, a turma é composta por 14 detentos — todos fazem muito mais que um simples ponto baixo cruzado. “Eles produzem roupas, brinquedos, tapetes, toalhas, e muito mais”, comenta Silvestre. “Para eles, é uma forma de liberdade. Para mim, é uma forma de humanizar o cárcere”, diz.
Enquanto a reportagem conversa com o artesão, Fabiano Braz da Silva, de 35 anos, está sentado na outra ponta da mesa, cabisbaixo e com as mãos em repetitivos movimentos. A reportagem do R7, então, aborda o detento.
Questionado sobre o que estava produzindo, Silva diz, com a voz baixa: “um brinquedo que vou mostrar para a minha família mês que vem”. Tímido, Silva levanta os olhos e encara o repórter. “Já mandei mais de 30 para eles. Assim, imagino que ficam feliz em saber que estou fazendo algo de útil por aqui. Que estou tentando me endireitar”, diz.
Condenado por tráfico de drogas, Silva lembra da primeira vez que entrou na penitenciária: 14 de maio de 2014. “Não esqueço do primeiro dia. Não tem como, né?” indaga. “Não é onde alguém quer estar.”
As oficinas, segundo ele, são uma forma de a pessoa “consertar a vida” e, consequentemente, diminuir a pena na prisão e minimizar a mente vazia que tem quando está dentro da cela de nove metros onde dorme com mais 14 presos.
“Não é onde alguém quer estar”
Para o 29 de agosto, Silvestre promete entregar novas peças feitas pelos presos. “São personagens de desenhos, são tapetes com técnicas diferentes, casacos e vestidos”, antecipa. “É muito importante que eles possuem voz, uma vez que são os protagonistas de toda essa história.”
O sucesso das oficinas vai além de um desfile na SPFW, como aponta o professor Antunes. “No teatro, já passaram mais de mil alunos. Destes, apenas cinco voltaram ao sistema carcerário”, diz. “Claro que eu queria salvar todo mundo, mas infelizmente a vida não é um conto de fadas.”
O coordenador das oficinas, o agente penitenciário Igor Rocha, recorda que a história começou em 2010. “Eu sempre tive vontade de pôr em prática uma efetiva sociabilização”, diz. “Junto com dois amigos, também agentes, abrimos vagas para o teatro. Apenas nove detentos participaram.” Mas, para Rocha, foi o suficiente para decidir que deveria seguir com as aulas. De lá para cá, implementou o coral, o sarau e o crochê. “Eu posso dizer, com 100% de certeza, que eu tirei mais gente com o teatro do que com o presídio em si”, sorri. “O meu maior sonho é poder fazer um presídio somente com a função de sociabilização cultural.”