Servir o Exército, dar casa à mãe e cantar: os sonhos na Fundação Casa
Adolescentes internados no Centro Juquiá, no Brás, conversaram com R7
São Paulo|Kaique Dalapola, do R7
Ajudar à mãe a construir uma casa, conseguir emplacar suas composições gospel cantando na igreja e servir o Exército. Esses são sonhos de três adolescentes de 16 anos que foram internados na Fundação Casa do Brás após cometeram atos infracionais entre o final de outubro e início de novembro deste ano.
O R7 esteve, no dia 24 de novembro, no Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente Juquiá, onde os jovens passam os primeiros 45 dias depois de serem apreendidos, e conversou com os jovens sobre seus sonhos, medos e planejamentos. Confira os depoimentos.
Pedro*, 16 — 22 dias internado
"Aqui dentro eu acordo às 6h da manhã e vou para sala tomar café. De lá, vamos todos para sala de aula. Depois tem café na escola e vamos ao banheiro. A gente fica na escola até 16h. Depois ainda tem comida e vamos dormir.
A [Fundação Casa] do Brás é melhor do que a [Fundação Casa] Topázio. Não é bom, porque estou preso, mas aqui é melhor do que lá. Na Topázio era um pouco mais oprimido do que aqui. Lá você ficava sentado no chão, para assistir televisão. Não podia esticar a perna direito.
A minha passagem pela Topázio, em novembro do ano passado, foi injusta. Eu estava em um baile funk com a minha namorada [15 anos] e o irmão dela — meu cunhado — e tinha uns caras fugindo da polícia. Os caras foram para o baile que a gente estava e se misturaram na hora que os policiais chegaram.
Um dos caras conseguiu fugir e o outro ficou no carro, lá no baile. Os policiais me pegaram, porque eu estava com uma camiseta da mesma cor que o cara que fugiu usava. O cara do carro, preso também, ainda disse que eu não tinha nada a ver, mas o polícia não quis saber.
Dessa vez agora eu fui pego com meu amigo, porque furtamos um carro. A gente estava de rolê e uma viatura veio atrás. Eu falei para o meu amigo parar, não dar fuga. Ele parou e hoje estou aqui.
Eu sinto muita saudade da minha família [chora]. Eu moro com a minha mãe, o meu irmão, que tem 18 anos, minha irmã, de 14, a minha cunhada — namorada do irmão —, que tem 16, e minha sobrinha pequena, filha dos dois. Eu sou muito apegado a todos eles, principalmente minha sobrinha e minha irmã. Às vezes eu dormia na mesma cama que minha irmã. Sinto saudade disso.
A minha mãe é doméstica. Ela trabalha na Vila Carrão [bairro próximo ao Brás] e passa em frente à Fundação todos os dias. Quando ela vem me visitar, todos domingos, ela diz que sempre que passa aqui em frente fica pensando em mim e com saudade.
Minha mãe é da igreja e todos os dias ela faz uma oração por mim. A pastora também vai lá em casa orar. Eu acredito muito em Deus. Até pouco tempo eu também ia na igreja. Como eu gosto de música, eu ia com o pai da minha namorada e tocava na bateria da igreja.
Acho que isso que aconteceu foi um livramento de Deus, porque esses dias morreram dois moleques que andavam comigo, e eu ficava na casa deles. Poderia ser eu morrendo, se não estivesse preso.
Na vida eu já trabalhei de vender tapete, de vender bala no trem, vender triturador de alho e saco de lixo nas casas. Eram jeitos que a gente dava para ganhar dinheiro e ajudar a mãe dentro de casa.
Quando sair daqui quero arrumar um trabalho, ajudar minha mãe a construir a casa dela, que ela sempre sonhou, e ajudar meus irmãos. Hoje em dia eu vejo meu irmão fazendo faculdade para ser professor de educação física, quero ser um dia igual a ele. Mas eu quero ser bombeiro.
Quero comprar as coisas para minha namorada com dinheiro justo, não dinheiro do crime. Meu sonho é construir uma família, sair da Cidade Tiradentes, e ser alguém na vida. Tenho medo de um dia morrer sem dar orgulho para a minha mãe. Quando eu morrer, eu quero que ela fale que o filho dela fez coisas boas. Não quero que minha mãe fique ouvindo as pessoas dizendo que fui mais um bandido."
Lucas*, 16 — 34 dias internado
"Já saí do crime. Agora estou compondo músicas e quando eu sair daqui vou exercer meu dom. Vou para igreja com a minha coroa [mãe], minha mina [namorada], e sair dessa vida que não é para ninguém. Eu estou compondo músicas gospel e sertanejo. Aqui dentro fiz uma para minha namorada, e ela nem ouviu ainda.
Nasci dentro da igreja, sempre confiei muito em Deus. Desde quando eu era pequeno, foi revelado na igreja que eu ia ser pastor e que tenho o dom de cantar. No decorrer do tempo fui vendo isso mesmo. Não sei muito bem o motivo para eu cair nesse mundão errado e acabei parando aqui.
Eu pedia as coisas para a minha mãe, tipo roupas e tênis caros, e ela não podia dar naquele momento, mas ia dar. Só que eu estava na obsessão querendo, tinha vontade de ostentar as coisas, e acabei cometendo os atos infracionais. Acabou gerando isso.
Nos últimos três anos eu acabei vindo para Fundação Casa quatro vezes. A primeira vez, fui pego no porte ilegal de arma de fogo, quando eu tinha 13 anos. A segunda vez, com 14 anos, foi 157 [artigo de roubo no Código Penal]. E a terceira vez, estava no tráfico com a molecada lá da quebrada, que cresceu comigo.
Dessa última vez foi 157 de novo. Roubei duas motos e estavam lá dentro de casa. Alguém denunciou e a polícia chegou lá, entrou na minha casa e achou as motos e um revólver.
Do primeiro ato infracional até o último, eu trabalhei com o meu tio, como ajudante de pedreiro. Também ajudei minha mãe por um tempo, vendendo cosméticos da Hinode. A gente se virava com o que dava. Ela tem o emprego fixo, em uma escola particular, complementava renda com as vendas, e eu tentava ajudar vendendo também.
Como eu sou filho único, moramos só eu e minha mãe, a gente troca bastante ideia. Sequer conheci meu pai, que abandonou minha mãe. Por causa do trabalho dela, eu ganhei uma bolsa no colégio particular. Estudei lá a quarta, quinta e sexta séries. Na sétima eu não consegui porque era avançado demais e eu não acompanhei os outros, então voltei para a escola pública.
Quando fui para escola pública, não queria ir todos os dias. Às vezes eu ia e fazia tudo direitinho, mas tinha dia que não dava vontade de ir. Nesses dias eu e o pessoal lá entrávamos e depois pulávamos o muro para ir jogar bola. De tanto fazer isso acabei repetindo.
No ano que eu repeti, na oitava série, minha mãe trabalhava das 7h às 17h. Quando ela soube que repeti por causa de falta mudou de horário, passou a trabalhar das 15h às 22h, para me levar para escola [sorri]. Eu dava muito trabalho. Mesmo ela me levando, eu entrava, pulava o muro e chegava em casa dizendo que saí mais cedo.
Uma das coisas que me marcou na escola foi estar com a minha namorada. Ela fecha comigo já faz três fundações [três passagens em Fundação Casa]. Ela vai na igreja e escola que eu também vou. A gente começou a conversar na escola e estamos juntos há dois anos.
Eu vou confiar no que foi dito e vou exercer o dom que eu tenho. Agora eu só tenho vontade de me tornar cantor, porque não é todo mundo que tem esse dom."
Tiago*, 16 — 24 dias internado
“O que eu mais quero é sair daqui, voltar a estudar, arrumar um trabalho para ajudar minha família e, mais para frente, servir o Exército, que é um negócio que eu acho bacana.
Quando eu era criança, meu sonho era ser jogador de futebol. Tive várias oportunidades para isso, fui chamado duas vezes para testes bons, na Portuguesa e no Corinthians, mas não aproveitei. Fui pela cabeça dos outros nas situações erradas, achei bom no momento. Agora passou meu tempo e a casa caiu.
Hoje estou preso por tráfico. Estou na Fundação Casa pela segunda vez. A primeira vez foi em setembro do ano passado, por um sequestro forjado. Foi um caso que aconteceu em Taboão da Serra [região metropolitana de São Paulo] e eu acabei sendo absolvido, porque não estava.
Dessa última vez eu estava mesmo. Fui pego em frente da minha casa, que é um ponto de tráfico. Eu estava trabalhando lá, junto com um maior. quando a polícia chegou e abordou a gente. Pegou o dinheiro com o maior e tinha umas drogas no meu bolso. Eles começaram a procurar o resto das drogas e acharam. No dia ainda tinha um cara que não tinha nada a ver, estava construindo umas barracas lá e acabou rodando também.
Eu estava trabalhando com isso já fazia um tempo. Esse ano todo praticamente. Lá eu trabalhava das 8h às 20h, quando era de manhã. E quando trabalhava à noite era das 20h até umas meia-noite, ou até a madrugada, dependia. Por dia eu recebia mais ou menos uns R$ 200, mas isso também dependia do dia.
Já roubei também, mas tinha parado com isso faz tempo. A única coisa de errada que estava fazendo era vender drogas. Nunca trabalhei por muito tempo em outra coisa. Só fiquei por um tempo em um lava-rápido, mas era só nos finais de semana. Recebia uns R$ 30 reais por dia.
Eu fazia essas coisas erradas porque queria ostentar umas roupas caras e essas coisas. Até que meus pais me davam algumas coisas, mas a gente sempre quer mais e mais. Agora eu vejo que tinha que me contentar com o que meus pais me davam.
Eu nunca guardei dinheiro. Só gastava com essas coisas e com outras coisas erradas também. Eu fumo maconha. Nem estava saindo muito, só saía alguns finais de semana para baile funk. E, de vez em quando, ia no shopping com as minas e já era. Nos últimos tempos estava desanimado para sair, então ficava mais em casa mesmo, jogando vídeo game com meus irmãos e trabalhava vendendo droga.
A minha vida era sempre na mesma rua. Ou estava dentro de casa ou em frente, traficando. Moro com a minha mãe, meu padrasto e três irmãos menores do que eu. Eu ainda tenho outros três irmãos, que são maiores e casados.
Minha mãe é empregada doméstica em uma casa no Morumbi. Meu padrasto é encanador, mas a gente não conversa muito, então eu nem sei muita coisa da vida dele. A gente não é brigado, só não dialogamos muito por não ter muito assunto. Às vezes ele puxa conversa comigo, eu respondo e já era.
Já o meu pai é segurança de uma firma lá na região mesmo. Com meu pai eu converso um pouco mais, e a falta de diálogo na casa dele acaba sendo com a minha madrasta. Meus pais se separaram há uns oito anos, e desse tempo todo eu sempre fiquei com a minha mãe. Quando eu sair daqui, vou morar com meu pai, para pegar o dinheiro da pensão e mudar de vida.
A minha mãe sabia que eu fazia essas coisas erradas, e ficava mandando eu sair dessa. Ela tentava me colocar de novo na escola — porque depois que eu perdi a vaga, não voltei mais a estudar. Mas eu não queria. Ela chegou até conversar com o gerente da boca [ponto de venda de drogas], e ele me brecou de trabalhar lá.
Mesmo com o gerente tentando impedir, eu continuei trabalhando escondido. Quando ele descobria, vinha falar comigo, dizendo que ia me bater. Ele não podia fazer muita coisa, porque tinha um outro cara lá que trabalhava comigo e virou irmão [integrante do PCC] que não deixava ele me bater. Conversavam entre eles.
O dinheiro que eu pegava comprava umas roupas, uns tênis, uns bonés. Mas não compensa, não. Os meus pais me davam essas coisas, só que eu comecei a fazer coisa errada e eles cortaram. Eles sempre se esforçavam para conseguir dar as coisas que eu pedia.
Meu pai tem um pouco mais de condição para se esforçar e dar uns tênis e as coisas mais caras. Minha mãe consegue no máximo dar umas roupas. Hoje não dou mais tanto valor para essas coisas. Sigo as regras aqui dentro para sair daqui logo. Quando estiver na rua de novo vou seguir uma vida diferente.”
* Os nomes dos adolescentes são fictícios.