O heliponto do palácio-sede era movimentado por ricos de todo o país
RODRIGO COCA/ESTADÃO CONTEÚDOOs "satélites" que orbitam em torno do mundo da moda no país, e todos os que gostam de uma boa história sobre o setor, estarão ligados na internet amanhã, terça-feira (7). Às 13h em ponto, com lance mínimo de exato R$ 1.411.022,00 (um milhão, quatrocentos e onze mil e vinte e dois reais), a casa leiloeira Sodré Santoro poderá anunciar o nome do vencedor de seu leilão número 22.271. O arrematante será o novo dono do que restou de valor do maior ícone da história do mercado fashion brasileiro: materiais, marcas e endereço digital da Daslu (www.daslu.com.br), apelidada em seus tempos de brilho de "Templo do Luxo" e "Meca dos Estilistas".
O verbo "poderá" tem explicação. Nesta primeira rodada, o lance vencedor deverá, necessariamente, ser igual ou superior ao mínimo estipulado. Se não houver oferta nessa condição, os lances para o segundo leilão, marcado para as 13h de 14 de junho, serão abertos imediatamente, dessa vez com valor mínimo igual ou superior à metade do atual. Se novamente não houver oferta dentro do estipulado, a terceira rodada será iniciada até 13h de 21 de junho. Nessa fase, o espólio será vendido pelo maior lance, com aprovação da Justiça. O novo dono pagará ainda 5% do total à casa leiloeira. As ofertas ainda podem ser feitas no site www.sodresantoro.com.br.
O espólio inclui, além da marca principal, as grifes Villa Daslu, Terraço Daslu, Daslu Label, D Teen By Daslu, Daslu Living, Daslu Shoe Space, Daslu Village e Daslu Basic. E coisas prosaicas diante das dimensões gigantescas adquiridas pelo complexo nas últimas três décadas, como sobras de agasalhos, bermudas, roupas íntimas, peças femininas e até coleiras e água mineral. Coisas da marca que vendia de botão a helicóptero — e, por sinal, tinha uma dessas aeronaves pendurada em sua segunda e última sede.
Será o fim de um ciclo, talvez o início de outro, para uma marca decisiva nos rumos do setor. Paraíso para muitos, templo da cafonice perfumada para outros, a Daslu merece, ao menos sob o ponto de vista comercial, a divisão do mercado de moda brasileiro em antes e depois de sua trajetória. Fundada na capital paulista em 1958, recebeu o nome da soma dos apelidos de suas duas criadoras: Lucia Piva de Albuquerque e Lourdes Aranha, representantes graduadas da alta sociedade. Duas Lu, que virou Daslu.
Uma das características do grupo era a de dar, sempre que possível, atendimento direcionado e exclusivo. Costumavam dizer que não tinham clientes, mas "amigas", uma turma disposta a retribuir a amizade com a busca fiel das peças, quase sempre pagas em valores preciosos. O grupo foi pioneiro na edição de revistas customizadas para exibir seu arsenal aos clientes. E também na oferta de mostras e desfiles exclusivos destinados a poucas ou mesmo uma única "amiga".
No auge da Villa Daslu, a segunda sede da empresa, no bairro paulistano de Vila Olímpia, após o início de sucesso na Vila Conceição, mulheres e familiares de grandes produtores rurais, industriais e comerciantes desembarcavam de jatinhos particulares em aeroportos da região metropolitana de São Paulo e seguiam, de helicóptero, para o palazzo neoclássico quartel-general da marca, em busca de manhãs e tardes de consumo feliz, regado a champanhes e vinhos graduados.
No atendimento e na escolta das "amigas" estavam as "dasluzetes", como eram chamadas as funcionárias da empresa. Quase sempre moças bem criadas do topo da pirâmide. Julia Maringoni Faria, Fernanda Kujawski, Sophia Alckmin, filha do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, e Carolina Magalhães, neta de Antônio Carlos Magalhães, foram algumas delas.
A primeira sede da Daslu chegou a ocupar 23 casas de uma rua residencial no bairro paulistano da Vila Conceição. Em 2005, depois de muita reclamação dos moradores da região, incomodados com o movimento, e de restrições da prefeitura, a empresa, rebatizada de Villa Daslu, foi transferida, sob o comando de Eliana Maria Piva de Albuquerque Tranchesi, filha de Lucia, para o palácio cinza-claro de 17 mil metros quadrados da Vila Olímpia. Custo da obra: R$ 200 milhões.
No auge, a marca teve 700 funcionários e anunciou faturamento anual de R$ 400 milhões. Chegou a ter nove lojas em shoppings e pontos luxuosos de São Paulo, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, Curitiba, Porto Alegre e Fortaleza.
Em um momento de importação cercada de burocracia, Eliana foi responsável pela inclusão, na Daslu, de grifes dos grandes estilistas do eixo Paris-Milão. A ofensiva gerou euforia no meio e, ironicamente, também o início do fim. Poucos meses depois da inauguração da Villa, a Polícia Federal pôs em campo a Operação Narciso. Eliana e seu irmão, Antônio Carlos Piva de Albuquerque, caíram na tarrafa da operação por episódios prosaicos, daqueles em que se puxa um fio de linha e o guarda-roupa inteiro vem junto.
Em vistorias nos aeroportos, a partir de 2004, agentes da PF encontraram peças de grifes e estilistas europeus com os registros, nas notas fiscais, de valores infinitamente maiores que os declarados pela Daslu à Receita Federal. O objetivo, segundo a Justiça: informar ao Fisco um valor irrisório para pagar menos imposto de importação.
Os dois irmãos, seus sócios e alguns diretores foram presos. Eliana foi solta logo depois, para recorrer da decisão em liberdade. O time da Daslu foi descrito no processo como “uma quadrilha que cometeu crimes financeiros de forma habitual e recorrente, mesmo após a denúncia do Ministério Público Federal”. Em sua sentença, a juíza Maria Isabel do Prado usou o termo “ganância” e escreveu que a “organização criminosa” merecia prisão por estabelecer “conexões no estrangeiro”. “[Os acusados] praticavam crimes de forma habitual, como verdadeiro modo de vida, ou seja, são literalmente profissionais do crime”, acrescentou Maria Isabel.
Em 2009, Eliana foi condenada a 94 anos e meio de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e falsidade ideológica. Uma pena considerada pesada demais inclusive por especialistas. Conseguiu um habeas corpus para cumprir pena domiciliar por ter apresentado um laudo médico atestando estar com câncer de pulmão.
Em fevereiro de 2021, a Daslu foi comprada pela multinacional Laep por R$ 60 milhões, com o compromisso de quitar uma dívida do grupo de R$ 80 milhões com credores privados. Mas os R$ 500 milhões calculados pela Receita e admitidos pela Justiça como dívida de sonegação fiscal não entraram no acordo.
Três anos após sua condenação, em fevereiro de 2012, Eliana morreu de câncer no hospital Albert Einstein, em São Paulo. O palácio da Daslu deu lugar a um prédio de 13 andares. Com o Brasil e o mundo em uma nova realidade virtual e as importações mais fáceis e baratas, o futuro novo dono do que sobrou certamente precisará criar novos métodos e estratégias se quiser atrair novos "amigos e amigas" para a marca.