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Funcionário cego de hospital relata os riscos diários de pegar covid-19

Morador da zona leste de São Paulo e funcionário de hospital em Guarulhos pega ônibus lotado e enfrenta aglomeração para bater o ponto

Saúde|Brenda Marques, do R7

Piso tátil é essencial para a autonomia de pessoas cegas
Piso tátil é essencial para a autonomia de pessoas cegas

O isolamento social recomendado por autoridades de saúde para frear o avanço do novo coronavírus é impraticável para Carlos*, que mesmo tendo asma e, por isso, fazer parte do grupo de risco da covid-19, segue trabalhando.

Em casa, a esposa, que é hipertensa, e sua filha, que tem problemas respiratórios causados por uma paralisia cerebral, também estão entre as pessoas que podem ter complicações se contraírem a doença.

Madrugada sim, madrugada não, ele pega dois ônibus para ir de Itaquera, bairro na zona leste de São Paulo, até seu local de trabalho, no hospital estadual Padre Bento, em Guarulhos. Para começar no emprego às 19h, precisa sair de casa às 16h50.

Pelo caminho, enfrenta diferentes situações de exposição ao vírus que causa a covid-19, assim como outros trabalhadores que não tiveram a opção de se isolar em casa. Além disso, Carlos enfrenta esses riscos às escuras acompanhado de sua bengala, pois, além de trabalhador e pai, é um homem cego.


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Ônibus lotado e duas horas de espera

"Não tem como evitar segurar no balaústre e procurar apoio na hora de descer e subir do ônibus", conta. "Carrego garrafinha de álcool em gel, uso máscara, mas às vezes a gente se distrai e acaba levando a mão no rosto", acrescenta. 


O maior perrengue é pegar os ônibus intermunicipais que vão até Guarulhos. Ele conta que a frota foi reduzida pela metade desde o início da pandemia no Brasil. "Outro dia quebrou um ônibus e o que eu peguei depois foi lotadérrimo", lembra.

O transporte chega a demorar duas horas para passar no ponto aos sábados e domingos. No final de semana passado, ele optou por chamar um carro de aplicativo a fim de não se atrasar. 


"Eu cheguei no ponto às 17h. Olhei no aplicativo, o ônibus ia sair de lá às 18h30. Vim de Uber até o serviço, porque se eu saísse de lá do ponto esse horário, ia chegar atrasado", afirma.

Na chegada ao hospital, ele cumpre dois deveres: bater o ponto e higienizar a bengala, uma das medidas de prevenção essenciais para as pessoas que se locomovem com a ajuda de aparelhos. "Ao lado do relógio de ponto tem álcool em gel, aí higienizo a mão e a bengala", conta Carlos.

'Não tem prioridade para mim'

Se na entrada essa é uma parada que possibilita a prevenção, na saída ela se transforma em um ponto de aglomeração, que Carlos encara após 12 horas de expediente no PABX, a central telefônica do hospital. "Todo mundo está apressado pra ir embora, o pessoal tumultua", desabafa.

No local há três relógios para bater o ponto. Eles ficam um do lado do outro. Servidores públicos registram seus horários em aparelhos distintos do que é usado pelos trabalhadores terceirizados. "Eu sou funcionário do estado e às vezes tenho que ficar passando a mão nos relógios para identificar qual é o meu", relata. "Eu acho perigoso, porque a maioria dos que trabalham ali está na linha de frente", completa.

Esperar a concentração de pessoas diminuir para registrar sua saída não é uma opção, pois iria se atrasar para pegar a primeira condução que pega na volta de Guarulhos para a zona leste da capital paulista.

O profissional chegou a ligar no RH para saber se havia a possibilidade de ficar em casa ou registrar seu expediente de outra maneira. Foi um toma lá, dá cá entre a direção do hospital e o setor de recursos humanos. "Eles falaram que não tem prioridade para mim", afirma. "Me tiraram no meio das férias para voltar ao trabalho", revela.

Empatia ou paternalismo?

Para tentar evitar aglomerações, Carlos tem tomado um caminho alternativo e três ônibus diferentes. "Pego o ônibus em frente ao trabalho, vou até o shopping Internacional, no centro de Guarulhos, e pego o primeiro que vem pro metrô Penha, na zona leste de São Paulo, e outro que passa perto da minha casa."

Ele sempre tenta sentar no banco preferencial na parte da frente do ônibus, que fica posicionado na diagonal em relação ao motorista, por não ter que dividir o banco com mais ninguém e, assim, manter algum distanciamento dos outros passageiros. "Mas geralmente já tem gente, e se tiver outro lugar disponível, elas não levantam", conta.

Em contrapartida, sempre há alguém disposto a ajudá-lo na jornada. A diferença entre quem é empático e quem é paternalista se escancara quando ele responde que prefere andar sozinho por já conhecer o caminho e querer evitar mais um risco de exposição ao vírus.

"Não tenho pedido ajuda, mas muitas vezes as pessoas se prontificam a me ajudar, e para não causar conflito eu aceito", explica.

"Elas vêm de frente para você e perguntam se precisa de ajuda. Tem gente que insiste, tem outras pessoas que entendem. A maioria não compreendeu ainda esse negócio de distanciamento. Eu tenho percebido isso até na área da saúde", analisa.

Outro lado

Em nota, o Complexo Hospitalar Padre Bento informa, por meio da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, que não recebeu nenhum pedido de afastamento ou mudança de setor do funcionário mencionado.

No entanto, a pedido do entrevistado, a reportagem não citou o nome do profissional, apenas disse se tratar de um "servidor público que trabalha no PABX" do hospital.

A unidade também afirma que trabalhadores do grupo de risco foram afastados ou realocados em áreas onde não há contato com pacientes, como é o caso do PABX. O afastamento também acontece com qualquer pessoa que esteja com suspeita de covid-19.

Segundo o hospital, todos têm apoio da Medicina do Trabalho para receber assistência médica. A instituição acrescenta que "é responsabilidade individual e coletiva evitar aglomerações nas atividades cotidianas, inclusive no momento de bater o ponto - há aliás vários equipamentos para bater o ponto".

*Nome alterado a pedido do entrevistado, que prefere não se identificar

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