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Gripe aviária: fazendeiros lucram com mortes de milhões de aves e o problema continua

Em 2023, governo dos EUA pagou mais de R$ 2,5 bilhões para agricultores, como compensação por aves abatidas para conter doença

Saúde|Andrew Jacobs

Frangos em estufa nos Estados Unidos
Recentemente, autoridades sanitárias declararam que a gripe também infectou vacas leiteiras em vários estados Rory Doyle/The New York Times - 02.112023

A forma altamente letal de gripe aviária que circula no mundo desde 2021 matou dezenas de milhões de aves, forçou avicultores nos Estados Unidos a abater bandos inteiros e provocou um breve, mas alarmante, aumento no preço dos ovos.

Recentemente, autoridades sanitárias declararam que a gripe também infectou vacas leiteiras em vários estados e, pelo menos, uma pessoa no Texas que teve contato próximo com os animais.

Mas o fato é que o surto de gripe aviária está se mostrando muito dispendioso para os contribuintes norte-americanos.

No ano passado, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda, na sigla em inglês) pagou aos produtores de aves mais de US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões, no câmbio atual) pelos perus, frangos e galinhas poedeiras que tiveram forçosamente de matar, depois que a cepa da gripe H5N1 foi detectada em suas fazendas.


De acordo com as autoridades, o programa de compensação visa encorajar as fazendas agrícolas a informar os surtos rapidamente, porque o governo paga somente pelas aves mortas pelo abate, e não por aquelas que morrem doentes. Relatórios gerados com antecedência, diz o Usda, ajudam a limitar a propagação do vírus nas instalações agrícolas.

Grande parte dos abates é feita com o aumento do calor nos celeiros que abrigam milhares de aves, método que causa insolação. Muitos veterinários e organizações de proteção aos animais afirmam que o processo provoca sofrimento desnecessário.


Frangos em estufa nos Estados Unidos
Versão atual do vírus da gripe aviária matou dezenas de milhões de aves nos EUA Rachel Bujalski/The New York Times - 01.032024

Entre os maiores beneficiários dos fundos de indenização pela gripe aviária pagos pelo Usda, desde 2022 até este ano, estavam a Jennie-O Turkey Store, que recebeu mais de US$ 88 milhões, e a Tyson Foods, que recebeu quase US$ 30 milhões. Apesar das perdas, as duas empresas registaram lucros bilionários no ano passado.

A maior parte dos pagamentos governamentais foi para as maiores empresas de alimentação do país – o que não surpreende de todo, tendo em vista a prevalência das empresas americanas na produção de carne e ovos.


Desde fevereiro de 2022, mais de 82 milhões de aves de criação foram abatidas, segundo o site do Departamento de Agricultura. Para contextualizar, a indústria avícola americana produz mais de nove bilhões de frangos e perus por ano.

O cálculo da compensação foi obtido pelo Our Honor, grupo de defesa do bem-estar animal, que apresentou um pedido de informações ao Usda com base na Lei de Liberdade de Informação. Depois, a Farm Forward, organização sem fins lucrativos que promove a alimentação consciente, colaborou em uma análise mais aprofundada dos dados.

A repartição das indenizações não foi divulgada publicamente, mas funcionários do departamento confirmaram a veracidade dos números obtidos.

Frangos em estufa nos Estados Unidos
Governo dos EUA pagou mais de US$ 500 milhões pelos perus, frangos e galinhas poedeiras abatidos Rory Doyle/The New York Times - 02.112023

Para os críticos da agricultura comercial em grande escala, pagamentos compensatórios expõem um sistema profundamente falho de subsídios empresariais, que no ano passado direcionou mais de US$ 30 bilhões em dinheiro dos contribuintes para o setor agrícola, sendo grande parte destinada a seguros agrícolas, apoio ao preço dos produtos de base e ajuda em caso de catástrofe.

Mas se comenta que os pagamentos relacionados com a gripe aviária são preocupantes por outro motivo: ao compensar agricultores comerciais pelas perdas, sem que estes assumam nenhum compromisso de volta, o governo federal encoraja os criadores de aves a continuar com as mesmas práticas que aumentam o risco de contágio, gerando a necessidade de futuros abates e, consequentemente, novas indenizações. “Esses pagamentos são absurdos e perigosos. Não só estamos desperdiçando dinheiro dos contribuintes com empresas lucrativas para mitigar um problema que elas mesmas criaram, como também estamos dando incentivo para que não façam as mudanças necessárias”, declarou Andrew deCoriolis, diretor executivo da Farm Forward.

Ashley Peterson, vice-presidente sênior de assuntos científicos e regulamentares da associação comercial National Chicken Council, representante dos fazendeiros, rebateu por e-mail a ideia de que os pagamentos do governo reforçam práticas agrícolas controversas: “A indenização existe para ajudar o agricultor a controlar e erradicar o vírus, não importa como as aves afetadas são criadas. As críticas foram obra de grupos extremistas veganos que se agarraram à questão para tentar avançar com sua agenda.”

Em um comunicado, o Departamento de Agricultura defendeu o programa: “Os relatórios feitos com antecedência permitem que interrompamos rapidamente a propagação do vírus nas fazendas próximas.”

Riscos ao ambiente

Embora as práticas agrícolas modernas tenham deixado a proteína animal muito mais acessível, levando praticamente a uma duplicação do consumo de carne no último século, é desvantajosa a dependência que a indústria tem das chamadas operações concentradas de alimentação animal (aquelas em que mais de mil unidades de animais ficam confinadas mais de 45 dias por ano, na definição do Usda). Os galpões gigantes que produzem quase 99% dos ovos e da carne do país geram enormes quantidades de resíduos animais que, segundo especialistas, podem degradar o meio ambiente.

Frangos em estufa nos Estados Unidos
A maior parte dos pagamentos governamentais foi para as maiores empresas de alimentação do país Rachel Bujalski/The New York Times - 01.032024

Para Gwendolen Reyes-Illg, cientista do Instituto do Bem-Estar Animal, que concentra seus estudos na produção de carne para consumo humano, os vírus infecciosos se espalham mais facilmente dentro de estruturas de criação animal lotadas: “Se quisermos criar o ambiente ideal para promover a mutação de agentes patogênicos, as fazendas agrícolas industriais são o cenário perfeito.”

Geneticamente homogêneo e concebido para um crescimento rápido, o frango moderno agrava esses riscos. A criação seletiva reduziu bastante o tempo necessário para criar um frango de peito pronto para a mesa, mas as aves são mais suscetíveis à infecção e à morte, segundo especialistas. Isso pode ajudar a explicar por que mais de 90 por cento dos frangos e das galinhas infectados com o H5N1 morrem em 48 horas.

Frank Reese, criador de perus de longa data no Kansas, disse que o moderno peru branco de peito largo está pronto para o abate na metade do tempo das raças tradicionais. Mas o crescimento rápido tem um custo: as aves são propensas a problemas cardíacos, hipertensão e artrite nas articulações, entre outros problemas de saúde. “Eles têm um sistema imunológico mais sensível, porque, abençoado seja o coração daqueles perus gordos, eles são obesos mórbidos. É o equivalente a uma criança de 11 anos que pesa 400 quilos”, explicou Reese, de 75 anos, que cria raças raras no pasto.

A gripe aviária altamente patogênica circula desde 1996, mas o vírus evoluiu e se tornou mais letal quando apareceu na América do Norte, no fim de 2021. Isso levou ao abate de quase 60 milhões de aves de criação no país e derrubou inúmeros animais selvagens e muitos mamíferos, de gambás a leões-marinhos. Na semana passada, autoridades federais identificaram pela primeira vez o vírus em vacas leiteiras no Kansas, no Texas, no Michigan, no Novo México e em Idaho. O vírus também esteve presente em um pequeno número de infecções e mortes humanas, principalmente entre aqueles que trabalhavam com aves vivas, embora as autoridades digam que o risco para pessoas continue baixo.

O programa de indenização pecuária do Usda tem origem em uma lei agrícola aprovada pelo Congresso Americano em 2018. Ela instrui que se pague aos agricultores 75% do valor dos animais perdidos devido a doenças ou desastres naturais. Desde 2022, o programa distribuiu mais de US$ 1 bilhão a agricultores afetados.

Frangos em estufa nos Estados Unidos
Para os críticos da agricultura comercial em grande escala, pagamentos compensatórios expõem um sistema profundamente falho Rachel Bujalski/The New York Times - 01.032024

Críticos ressaltam que o programa também promove a crueldade contra os animais, ao permitir que agricultores sacrifiquem seus rebanhos desligando o sistema de ventilação dos celeiros e bombeando ar quente, processo que pode levar horas. As galinhas e os perus que sobrevivem ao calor extremo são, muitas vezes, eliminados com uma torção do pescoço.

Crystal Heath, veterinária e cofundadora da Our Honor, afirmou que a Associação Médica Veterinária Americana, em parceria com o Usda, recomendou que o desligamento da ventilação seja usado apenas em “circunstâncias restritas”. Mas a maioria das fazendas depende desse método porque é barato e fácil de executar.

As indústrias Tyson e Jennie-O, principais beneficiários das compensações federais, recorreram ao desligamento da ventilação, de acordo com uma análise de dados disponíveis em arquivos federais. A Tyson se recusou a fazer esclarecimentos para esta matéria, e a Hormel, dona da marca Jennie-O, não respondeu aos pedidos de comentário.

Alguns defensores do bem-estar animal, chamando atenção para surtos recentes que progrediram sem interrupção, questionam se o método de matar todas as aves de uma fazenda afetada é mesmo a abordagem correta para o problema. Quando o H5N1 atingiu o Harvest Home Animal Sanctuary, organização de proteção animal na Califórnia, em fevereiro de 2023, matando três aves, os operadores do local se prepararam para iniciar o processo de abate que seria, certamente, ordenado pelo estado. Em vez disso, as autoridades agrícolas da Califórnia utilizaram a prerrogativa de uma isenção recentemente criada para instalações que não produzem alimentos. Pouparam as aves do santuário, mas, em contrapartida, a organização teve de adotar medidas rigorosas de quarentena por 120 dias.

Segundo Christine Morrissey, diretora executiva do santuário, nas semanas seguintes o vírus matou 26 dos 160, patos, galinhas e perus que viviam na Harvest, mas os outros animais sobreviveram, mesmo aqueles que pareciam visivelmente doentes. Para Morrissey, a experiência sugere que os abates em massa são desnecessários: “É preciso pesquisar mais e aumentar o esforço para encontrar outras formas de combater o vírus. O despovoamento das aves é uma coisa horrível e não resolve o problema atual.”

c. 2024 The New York Times Company

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