Pesadelo sem fim: homem com condição rara enfrenta diarreia constante por 33 anos
Após uma vida toda procurando respostas, ele acabou diagnosticado com um problema genético e foi submetido a um transplante de medula óssea
Saúde|Do R7
Um homem de 33 anos viveu um verdadeiro pesadelo com uma doença misteriosa que o assolou desde a infância. Diagnosticado com uma síndrome genética rara, ele enfrentou desde bebê episódios de diarreia crônica e problemas renais.
A jornada médica do paciente começou logo aos 2 meses, quando os primeiros sintomas surgiram. Crescimento deficiente, evacuações frequentes e fezes moles tornaram-se uma parte constante de sua vida.
Os médicos tentaram diversos tratamentos, incluindo a remoção de laticínios, soja e glúten de sua dieta; a diarreia, porém, persistiu, deixando os profissionais médicos perplexos. Testes de alergia não revelaram respostas claras, e o paciente continuava a sofrer.
A situação piorou quando, aos 10 meses, ele desenvolveu edema generalizado e síndrome nefrótica, uma condição que afeta os rins e causa perda de proteínas pela urina.
Biópsias do intestino delgado e dos rins revelaram alterações significativas, como atrofia das vilosidades intestinais e espessamento da membrana basal glomerular nos rins.
Com o diagnóstico de glomerulonefrite membranosa, o tratamento com prednisona (um medicamento anti-inflamatório) foi iniciado, o que resultou na melhora dos sintomas, incluindo a diminuição da diarreia e o desaparecimento do edema.
Alívio durou pouco
No entanto, o paciente experimentou recaídas intermitentes ao longo dos anos, com sintomas recorrentes de diarreia e síndrome nefrótica sempre que a dose de prednisona era reduzida.
Buscando um tratamento mais eficaz, o homem foi submetido a uma terapia com clorambucil (droga usada no tratamento de câncer), que ajudou a controlar a glomerulonefrite membranosa e a prevenir recaídas por um ano.
Aos 4 anos, ele foi diagnosticado com enteropatia autoimune, uma condição caracterizada por inflamação crônica do intestino delgado.
Novos tratamentos foram implementados, incluindo glicocorticoides e ciclosporina, que proporcionaram alívio temporário dos sintomas.
Ao longo dos anos, o paciente passou por várias terapias, incluindo tacrolimus (medicamento imunossupressor usado para evitar rejeição de órgãos em pacientes transplantados), com resultados variáveis.
Suas lutas com a doença persistiram, com recorrências de diarreia e nefropatia a cada dois a quatro anos.
Diagnóstico definitivo
Recentemente, o homem passou por uma avaliação médica no Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, onde seu caso foi analisado por especialistas em alergia e imunologia clínica.
Além dos problemas gastrointestinais, sua história médica revelou uma série de sintomas e complicações adicionais, incluindo infecções recorrentes, dermatite eczematosa, alergias alimentares e anemia hemolítica.
Esses sinais indicavam uma possível síndrome sistêmica de desregulação imune, sugerindo um erro inato da imunidade.
Um dos médicos que o atenderam, Francis Colizzo, suspeitou de uma condição rara.
"Dada a história, a apresentação clínica e a constelação de sintomas desse paciente, suspeitei que a síndrome Ipex fosse o diagnóstico mais provável. Para estabelecer esse diagnóstico, encaminhei o paciente à unidade de alergia e imunologia clínica para avaliação posterior e consideração para testes genéticos", escreveu em um artigo publicado no The New England Journal of Medicine.
Condição genética
O paciente passou por testes genéticos para investigar possíveis doenças relacionadas ao sistema imunológico e doenças inflamatórias intestinais.
Os testes revelaram três variantes raras em três genes, mas apenas uma variante no gene chamado FOXP3 chamou a atenção dos médicos.
Essa variante estava associada à síndrome Ipex, uma doença genética rara ligada ao cromossomo X.
No entanto, a classificação dessa variante como significado incerto quer dizer que não é possível afirmar se ela causa a doença.
Para confirmar a relevância clínica da variante FOXP3, foram realizados estudos familiares que mostraram que a variante foi herdada da mãe do paciente, que é portadora saudável.
Além disso, foram observadas anormalidades nas células T reguladoras, que desempenham um papel importante no sistema imunológico. Com base nessas evidências, o paciente foi diagnosticado com síndrome Ipex.
A síndrome Ipex é causada por variantes no gene FOXP3, que afetam as células T reguladoras. Essas células são responsáveis por suprimir a ativação de células imunológicas prejudiciais.
As variantes no gene FOXP3 levam a deficiências nas células T reguladoras e podem resultar em doenças autoimunes e inflamação alérgica.
Embora haja outros sintomas associados à síndrome Ipex, a apresentação clínica pode variar entre os indivíduos, mesmo com essa variante genética.
Portanto, o diagnóstico é baseado em uma combinação de história clínica, testes genéticos e análise de células do sistema imunológico.
É importante ressaltar que as variantes de significado incerto encontradas nos testes genéticos não são suficientes para confirmar um diagnóstico sozinhas. Estudos adicionais e análise familiar são necessários para entender melhor a relevância clínica dessas variantes.
Tratamento
Os médicos fizeram vários tratamentos medicamentosas, alguns deles com pouco ou sem nenhum efeito. Eles decidiram então utilizar o vedolizumabe intravenoso, um bloqueador de uma proteína chamada integrina alfa, que está envolvida na inflamação intestinal.
Após três meses de tratamento, a frequência das evacuações intestinais diminuiu, e a dose de prednisona foi reduzida com sucesso. No entanto, depois de seis meses de tratamento, os sintomas retornaram, com apenas uma melhora temporária com o aumento da dose de vedolizumabe.
Foi iniciado novamente o tratamento com abatacepte intravenoso (remédio para artrite reumatoide), com melhora inicial, mas depois o paciente continuou tendo diarreia frequente e piora da proteinúria.
Nesse ponto, foi discutida uma alternativa para um tratamento mais definitivo, e o paciente optou por ser encaminhado para avaliação de transplante de células hematopoéticas alogênicas (HCT, na sigla em inglês), mais conhecido como transplante de medula óssea.
O HCT está sendo cada vez mais utilizado no tratamento de doenças não malignas, incluindo síndromes de falência da medula óssea, hemoglobinopatias, erros inatos da imunidade e distúrbios metabólicos hereditários.
No caso da síndrome Ipex, a ideia é que o transplante de células hematopoéticas funcionalmente reguladoras possa restaurar o equilíbrio imunológico, aliviando as manifestações autoimunes e eliminando a necessidade de terapia imunossupressora contínua.
Estudos de casos e séries pequenas mostraram sucesso no uso do HCT em pacientes com síndrome Ipex.
Dado que o paciente não tinha outras condições concomitantes e sua doença estava bem controlada, foi recomendado o HCT.
Foi identificado que seu irmão era compatível (e não possuía a variante genética familiar que provocava a síndrome), e também foram encontrados doadores não relacionados totalmente compatíveis.
Como o caso aconteceu no auge da pandemia de Covid-19, obter medula óssea fresca de doadores não relacionados era difícil, então a decisão foi seguir em frente com o transplante haploidêntico de medula óssea usando o irmão como doador.
O paciente teve complicações esperadas no início do procedimento, mas se recuperou com o enxerto derivado do doador. Após dois meses do HCT, ele foi diagnosticado com cistite hemorrágica associada a uma infecção viral.
Três meses depois do primeiro transplante de células hematopoéticas, o paciente voltou a ter diarreia, e descobriu-se que o seu corpo estava rejeitando o enxerto. Isso significa que as células transplantadas não estavam se estabelecendo corretamente.
Para controlar a diarreia, o médico reintroduziu a prednisona. O paciente precisou ser internado novamente para fazer um segundo transplante de células hematopoéticas, desta vez com um tratamento mais forte.
Nesse segundo transplante, não foi usado um tipo específico de medicamento chamado globulina anti-T, e a medula óssea utilizada foi a de um doador que não era parente, mas que tinha uma compatibilidade total.
Felizmente, não ocorreram complicações graves depois do segundo transplante, e o sistema imunológico do doador começou a funcionar normalmente no 16º dia após a cirurgia.
Oito meses depois desse segundo transplante, o paciente não apresentou sintomas de rejeição do enxerto, e seu sistema digestivo está funcionando bem.
Agora, a quantidade de medicamentos para suprimir o sistema imunológico está sendo reduzida, e o paciente voltou recentemente ao trabalho em plenas condições.