Mutação rápida e risco de morte: é assim que seria uma pandemia de gripe aviária em humanos
Autoridades acompanham com preocupação a evolução da doença desde os primeiros animais infectados
Saúde|Apoorva Mandavilli, do The New York Times
Tanto quanto sabem as autoridades de saúde pública, o surto de gripe aviária em gado leiteiro atingiu apenas três trabalhadores rurais nos Estados Unidos até o momento. Todos apresentaram sintomas leves.
Mas isso não garante que o vírus, chamado H5N1, permanecerá benigno se começar a se espalhar entre as pessoas. As provas acumuladas do mundo animal e os dados de outras partes do mundo, na verdade, sugerem o contrário.
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Algumas vacas leiteiras nunca se recuperaram do H5N1, e acabaram morrendo ou sendo abatidas por conta disso. Andorinhas-do-mar infectadas pareciam desorientadas e incapazes de voar. Filhotes de elefante-marinho tiveram dificuldade para respirar e desenvolveram tremores depois de contrair o vírus. Gatos infectados ficaram cegos, andando em círculos, e dois terços deles pereceram.
“Definitivamente, não podemos ser complacentes. O H5N1 é um tipo de vírus da gripe altamente patogênico. Precisamos ficar realmente atentos para que ele não se espalhe entre os seres humanos”, afirmou Anice Lowen, virologista da Universidade Emory.
Em testes com furões inoculados com o vírus pelos olhos – a via presumida da infecção nos trabalhadores rurais dos EUA –, o vírus se espalhou rapidamente para as vias aéreas, os pulmões, o estômago e o cérebro, de acordo com um relatório publicado na quarta-feira.
Outros estudos encontraram padrões semelhantes em camundongos alimentados com leite contaminado. As descobertas sugerem que, mesmo se for contraído pelos olhos ou pelo sistema digestivo, isso não significa que o vírus seja menos ameaçador.
O H5N1 tem se mostrado promíscuo, conquistando rapidamente novos hospedeiros: aves selvagens e domésticas, camundongos e ursos, gatos e leões-marinhos. Desde 1996, quando foi descoberto em Hong Kong, o vírus também infectou quase 900 pessoas. Uma versão mais antiga, que circula na Ásia, matou cerca de metade das pessoas infectadas.
Das 15 pessoas que se sabe terem sido afetadas pela versão que agora está circulando no gado, uma morreu na China e outra foi hospitalizada. Dois pacientes no Chile e no Equador apresentaram sintomas graves, e quatro americanos – um no ano passado e os três infectados no último surto – se saíram melhor.
O mais importante é que nenhuma forma do vírus da gripe aviária parece ter se propagado de forma eficiente de uma pessoa para outra. Isso não é garantia de que o H5N1 não vá adquirir essa capacidade, explicou Yoshihiro Kawaoka, virologista e especialista em gripe aviária da Universidade do Wisconsin-Madison. “Acho que o vírus está claramente mudando sua característica, porque nunca vimos surtos em vacas”, observou Kawaoka. A conjuntivite, principal sintoma em dois dos três trabalhadores rurais, não é típica da infecção pelo H5N1. A ocorrência do vírus nas glândulas mamárias – em bovinos e até mesmo em camundongos não lactantes – também foi inesperada.
A preocupação agora é que, como o H5N1 continua a infectar mamíferos e a evoluir, o vírus possa adquirir as mutações necessárias para se espalhar de forma eficiente entre as pessoas, desencadeando outra pandemia.
Incubação rápida
O período de incubação da gripe é de dois a quatro dias, e uma versão de humano para humano pode se espalhar muito antes que os casos sejam detectados, disse Erin Sorrell, virologista e pesquisadora titular do Centro Johns Hopkins para Segurança da Saúde. “Se chegar ao público em geral, vai ser tarde demais. Teremos perdido o bonde.”
Em geral, a gripe é mais grave em adultos mais velhos e crianças com menos de cinco anos. (Um surto de gripe suína, registrado em 2009, não foi tão devastador quanto se temia, mas matou quase 1.300 crianças.) A gravidade da doença também depende da quantidade de vírus a que os pacientes infectados são expostos e por quanto tempo, bem como da rota de entrada e de seu histórico genético e seu estado de saúde geral.
As pessoas infectadas geralmente apresentam febre e sintomas respiratórios, e alguns casos evoluem rapidamente para pneumonia ou morte. Se o vírus da gripe aviária se adaptasse às pessoas, o mundo precisaria de bilhões de doses de vacinas e antivirais para evitar esses desfechos.
O estoque federal dos Estados Unidos contém quatro tipos de antivirais contra a gripe, mas os medicamentos devem ser tomados dentro de 48 horas depois do início dos sintomas para que sejam eficazes. Uma análise recente encontrou poucas provas para avaliar a eficácia de três dos quatro medicamentos, incluindo o popular oseltamivir, vendido como Tamiflu.
Algumas novas versões do H5N1 têm mutações que tornam o vírus resistente ao oseltamivir e aos outros dois medicamentos, mas, felizmente, essas alterações não foram amplamente transmitidas em populações animais. Não foram observadas mutações contra o quarto medicamento, o baloxavir.
Mas existem apenas algumas centenas de milhares de doses desse medicamento no estoque, segundo David Boucher, diretor de doenças infecciosas da Administração Federal de Prevenção e Resposta Estratégica.
As vacinas são a melhor aposta para conter uma pandemia, mas é provável que só haja doses suficientes disponíveis dentro de vários meses, no mínimo,. Mesmo que a produção global de vacinas contra a gripe sazonal fosse totalmente transferida para vacinas contra o H5N1, o número de doses fabricadas seria suficiente para menos de dois bilhões de pessoas, supondo que fossem necessárias duas doses para cada pessoa.
Nos Estados Unidos, o estoque nacional contém centenas de milhares de doses de vacinas que podem ser distribuídas para os grupos de risco, inclusive crianças. Empresas contratadas pelo governo poderiam fabricar mais de cem milhões de doses nos primeiros 130 dias, disse Boucher.
As autoridades anunciaram recentemente que haviam tomado medidas para preparar 4,8 milhões de doses que poderiam ser envasadas sem prejudicar a produção da vacina contra a gripe sazonal.
Mas a maioria desses planos só ajudará se o vírus cooperar.
Doença continua a se espalhar
Desde a primeira manifestação do H5N1, ele se ramificou em muitas formas, e os cientistas criaram uma biblioteca de 40 vírus chamados de “candidatos a vacina”. Tê-los prontos para uso economiza um tempo crucial, pois a criação de um novo candidato pode levar três meses, explicou Todd Davis, virologista do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, acrescentando que, até o momento, o vírus sofreu alterações mínimas, especialmente a parte que se liga às células humanas, chamada hemaglutinina ou HA.
Se o vírus se espalhasse entre as pessoas, primeiro teria de sofrer mudanças significativas, observaram alguns especialistas. “Se esse vírus chegar aos seres humanos, pode apostar que a HA vai mudar, porque, no momento, a HA desse vírus não se liga de forma muito eficaz às células humanas”, afirmou Scott Hensley, imunologista da Universidade da Pensilvânia.
As vacinas tradicionais contra a gripe são produzidas por meio do cultivo de vírus candidatos em ovos ou em células de mamíferos, ambos os métodos repletos de potenciais problemas: o vírus pode não crescer com rapidez suficiente, ou pode sofrer mutação excessiva à medida que cresce.
Em 2009, o vírus candidato cresceu bem em ovos, mas evoluiu para uma combinação ruim com o vírus H5N1 selvagem, o que provocou grandes atrasos na distribuição ao público. “Quando os estoques de vacina foram preparados e distribuídos, a onda inicial da pandemia já havia diminuído”, disse Hensley.
O laboratório CSL Seqirus, um dos principais fabricantes de vacinas contra a gripe sazonal, tem uma vacina contra o H5N1 baseada em células que já foi aprovada pela FDA, a agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos.
No caso de uma pandemia, quando a CSL receber um vírus candidato a vacina que corresponda ao vírus circulante, a empresa poderá fornecer 150 milhões de doses para os americanos em seis meses, declarou Marc Lacey, diretor executivo da empresa, que também tem contratos com 19 outros países.
Mas 150 milhões de doses protegeriam apenas cerca de um em cada cinco americanos. As autoridades federais também estão explorando as vacinas de mRNA contra a gripe aviária, que poderiam ser produzidas rapidamente, como demonstrou a pandemia da covid, para proteger tanto o gado quanto as pessoas. A equipe de Hensley está testando uma vacina de mRNA em vacas.
Segundo especialistas, as autoridades hesitaram em distribuir vacinas para o gado por causa de preocupações comerciais: alguns países impedem a importação de produtos de aves e animais vacinados.
Mas os especialistas também afirmam que a imunização das vacas reduziria o risco para os trabalhadores rurais e para outras vacas, além de limitar as oportunidades de o vírus continuar se espalhando e evoluindo.
Até o momento, as autoridades federais também têm relutado em vacinar os trabalhadores rurais, alegando que o risco ainda é baixo.
O perigo real, de acordo com Lowen, da Emory, é se um trabalhador rural for infectado tanto pelo H5N1 quanto por um vírus da gripe sazonal. Como os vírus da gripe são adeptos da troca de genes, uma coinfecção daria ao H5N1 a oportunidade de adquirir genes que lhe permitiriam se espalhar entre as pessoas de forma tão eficiente quanto a gripe sazonal.
Lowen comentou que essa possibilidade ressalta a importância da vacinação dos trabalhadores rurais: “Tudo que pudermos fazer para limitar a infecção sazonal em pessoas que estão expostas ao H5N1 por motivos profissionais pode realmente reduzir o risco.”
c. 2024 The New York Times Company