Logo R7.com
Logo do PlayPlus
Publicidade

Triglicerídeos 60x acima do limite e sangue leitoso: entenda a síndrome raríssima de duas irmãs brasileiras

Maria de Fátima e Silvânia Maria enfrentam uma luta para conseguir remédio importado capaz de aliviar parcialmente os diversos problemas de saúde

Saúde|Yasmim Santos*, do R7

Maria de Fátima e Silvânia acumulam internações em UTI por complicações da doença
Maria de Fátima e Silvânia acumulam internações em UTI por complicações da doença Maria de Fátima e Silvânia acumulam internações em UTI por complicações da doença

Sangue leitoso, pancreatite, hipertensão, anemia, labirintite, diabetes… Esses são alguns dos sintomas com que duas irmãs portadoras de uma síndrome raríssima convivem diariamente.

Elas foram diagnosticadas com a SQF (síndrome da quilomicronemia familiar), uma doença genética grave que acomete de uma a duas pessoas a cada 1 milhão.

A condição se caracteriza pela elevação do nível de triglicérides (gordura) no sangue. Na população geral, níveis de até 150 mg/dL (miligramas por decilitro) são considerados normais, mas esse patamar chega a ser 60 vezes mais elevado em portadores de SQF. 

Em uma das irmãs, o exame mais recente de triglicerídios ultrapassou 9.000 mg/dL, o que representa um grave risco à vida. 

Publicidade

“O nosso sangue tem uma cor diferenciada, ele é mais leitoso, ele é diferente, ele não tem aquela cor normal, natural”, conta Maria de Fátima da Silva Xavier, de 51 anos.

Ela e Silvânia Maria da Silva, de 44 anos, levam uma vida repleta de restrições devido à síndrome. Os primeiros indícios da doença surgiram na irmã mais velha, aos 8 anos de idade, quando ela foi diagnosticada com febre reumática.

Publicidade

Apesar dos níveis já altos de triglicérides que, segundo o médico que a atendeu, eram semelhantes ao de uma lata de leite condensado, o tratamento se limitou apenas ao sintoma.

Maria viveu 12 anos achando que era a única portadora da anormalidade, até que um exame de sua irmã apontou aumento semelhante.

Publicidade

Silvânia descobriu a elevação da taxa de triglicérides aos 20 anos, quando estava grávida de quatro meses do segundo filho. Ela relata ter sido pega de surpresa.

“Eu passei mal e o médico constatou que eu estava com triglicérides altos e que estava com pancreatite [inflamação do órgão]. Logo uma pancreatite de cara, porque já estava mais de 1.000 [mg/dL] meus triglicérides", lembra. 

Desde então, as duas irmãs travam uma luta conjunta para não desanimar frente às adversidades e levar a vida dentro da normalidade possível.

'Nunca mais tive uma vida normal'

Os sintomas da doença tornam as idas ao hospital constantes. A irmã mais velha enfrentou uma segunda gravidez de alto risco e parto prematuro devido à condição.

No total, ela já passou por três crises pancreáticas. A mais grave, em 2005, causou uma infecção generalizada, um derrame pleural bilateral e 20 dias de internação na UTI.

“Pensei que eu ia morrer, porque como eu sou da saúde, sou fisioterapeuta, eu sabia tudo que estava acontecendo comigo na UTI. Então, para mim, eu tinha certeza que eu não ia sair”, relata.

Hoje, Maria convive com crises de labirintites, baixos níveis de vitamina D, hipertensão, problemas na visão, xantomas na pele (lesões associadas ao alto nível de gordura no sangue), além de já ter realizado uma cirurgia para retirar a vesícula.

Ela não pode mais atuar como fisioterapeuta porque a SQF baixa sua imunidade, tornando-a predisposta a contrair doenças. Também há o surgimento de diabates sempre que os níveis de triglicerídios se elevam. 

A irmã mais nova, Silvânia, já passou por mais de 200 crises de pancreatite e, atualmente, possui parte do pâncreas necrosado. Apesar de ter descoberto a doença após anos, o seu estado é mais grave.

Ela também retirou a vesícula e desenvolveu anemia e pancreatite crônica agudizada, marcada por dores abdominais recorrentes, insuficiência pancreática e internações constantes na UTI. 

A progressão da doença e dos sintomas complica a vida das irmãs. Durante a pandemia, passaram meses em total isolamento e seguem com diversas restrições.

“De 20 anos para cá, eu nunca mais tive sossego. Nunca mais tive uma vida normal”, afirma Silvânia.

De quem é a culpa?

Por anos, as irmãs lidaram com os efeitos da síndrome, sem saber de fato o que tinham. Devido a isso, passaram por diversos casos desconfortáveis e recebiam acusações injustas de profissionais.

“Eu só escutava assim: 'Você não se alimenta direito, a culpa é sua'. [...] Eles [médicos] não se interessavam, achavam que isso tudo era culpa da gente, que era a gente que fazia tudo errado”, conta Maria.

Ao contrário do que era dito, as irmãs já testaram todo tipo de medicamento, mas nada surtiu verdadeiro efeito. Elas seguem uma dieta rígida e regrada, com limite de ingestão de gorduras, associada a exercícios físicos, para tentar reter as taxas e levar uma vida “normal”.

O médico geneticista Caio Bruzaca explica que manter a doença sob controle exige uma abordagem em diversas frentes. 

“Acaba sendo um trabalho multidisciplinar com a nutricionista, o nutrólogo, endocrinologista, para que a gente consiga restringir gorduras, ou seja, frituras ou derivados de alimentos ricos em colesterol”, exemplifica.

As duas seguem uma dieta restritiva e praticam, cotidianamente, exercícios físicos
As duas seguem uma dieta restritiva e praticam, cotidianamente, exercícios físicos As duas seguem uma dieta restritiva e praticam, cotidianamente, exercícios físicos

Mesmo com todos os cuidados, as duas desabafaram sobre o preconceito que viveram sempre que falaram da doença publicamente. Houve quem achasse que eram duas pessoas acima do peso, por exemplo. 

Elas nunca haviam permitido que veículos de imprensa divulgassem suas fotos, mas resolveram compartilhá-las pela primeira vez com o R7 para tentar quebrar essa falsa ideia. 

A trilha até a descoberta

Tornou-se rotina para as duas irmãs realizar exames e repeti-los, pois os médicos não acreditam no valor. Maria está com o nível de triglicérides em 9.760 mg/dL (65 vezes acima do limite), enquanto Silvânia aguarda a chance de realizar a análise novamente, pois a instituição não aceitou o valor.

Foi durante a busca por respostas que a irmã mais velha conheceu, em Brasília, há cerca de três anos, a médica cardiologista Ana Cláudia Nogueira. Após estudar o caso e com a autorização das pacientes, compartilhou a situação com outros profissionais. Juntos, eles descobriram a condição das irmãs por meio de um teste genético.

Um dos fatores que pode ter contribuído para o atraso do diagnóstico é a dificuldade de acesso ao teste, que não é coberto pela rede pública. Segundo Bruzaca, apenas centros de referência de doenças raras o realizam — existem pouquíssimos no país.

Pode parecer acaso que as duas possuam a síndrome, mas o geneticista explica que é mais simples do que parece.

“Não é coincidência as duas irmãs terem a mesma doença. Como a gente está falando de uma doença que é recessiva [herdada pelo gene de ambos os pais], é normalmente uma doença autossômica recessiva, ela recorre na irmandade” orienta.

Entre seis irmãos, Maria e Silvânia apresentaram a síndrome. Ela pode se manifestar em qualquer idade, mas, segundo Bruzaca, as mulheres apresentam muito mais sintomatologia que os homens.

Um dos exames recentes de Maria de Fátima
Um dos exames recentes de Maria de Fátima Um dos exames recentes de Maria de Fátima

Esperança

Após a descoberta, as irmãs ficaram sabendo, por meio de Ana Cláudia, de um medicamento que poderia trazer a vida delas para uma normalidade jamais imaginada.

O volanesorsen, remédio em questão, foi aprovado na Europa e registrado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em agosto de 2021.

É indicado para adultos com SQF e elevado risco de pancreatite que não respondem mais à terapia de redução da dieta e das triglicérides plasmáticas — como é o caso das irmãs.

A medicação é complementar à dieta restritiva, pode melhorar e até estabilizar as taxas de triglicérides dos pacientes. Contudo, é um remédio de alto custo. Cada caixa do medicamento custa cerca de R$ 200 mil.

“Esse medicamento, junto com a atividade física e alimentação, a gente pode chegar a ter 700 mg/dL de triglicérides. É alto? É alto para uma pessoa normal que tem 150 mg/dL, mas para a gente, que tem 9.000/10.000 mg/dL, é um ganho muito grande”, diz Maria.

Sendo assim, em conjunto com a Fedrann (Federação das Associações de Doenças Raras do Norte, Nordeste e Centro Oeste), as irmãs estão tentando conseguir judicialmente o medicamento.

Segundo a presidente da federação, Mônica Aderaldo, apesar de já terem recebido a liberação do valor da caixa, ainda há empecilhos.

“A burocracia, o custo da importação eleva demasiadamente o custo do tratamento. A importação chega a ser mais do dobro do valor do tratamento”, acrescenta.

Mônica explica que ainda aguardam a liberação do valor completo e que o volanesorsen é a última esperança das irmãs.

“É o único tratamento que pode deter o avanço da doença de base e trazer uma qualidade de vida para as pacientes", afirma.

Sonhos

As irmãs consideram a doença uma bomba-relógio, fazendo com que a espera pelo medicamento cause um sentimento de revolta nelas e nas pessoas próximas, que acompanham suas lutas diárias.

Entretanto, elas desenham diversos sonhos para um futuro em que o medicamento mudará as suas realidades.

“Fazer um exame e não ter que repetir. Pegar um exame meu e olhar o triglicérides tipo assim de 500, 300 mg/dL, para mim, já ia estar muito feliz com isso”, conta Maria.

Já para Silvânia, que ficou até em fila para transplante de pâncreas, o anseio vai além do exame.

“Pensar que eu vou acordar e não vou ter mais crise, porque geralmente as minhas crises, eu tenho de madrugada, então eu durmo com a sensação de que eu vou ter crise”, afirma.

As vontades que, para alguns, parecem simplórias, são desejos para as irmãs, como a possibilidade de voltar ao trabalho.

Silvânia conta que não consegue uma ocupação com carteira assinada, pois quando ela realiza os exames admissionais, as empresas não acham os resultados normais e não a contratam, sem dar explicações diretas.

Mesmo diante de todas as controvérsias, as irmãs resistem e lutam uma pela outra. Já escutaram que a única solução para os seus problemas era morrer e nascer de novo, mas se apoiam na fé e na vontade de continuar escrevendo as próprias histórias.

“A gente não perde a vontade de viver, não. Nossa vontade de viver é maior do que qualquer problema”, destaca Maria.

O R7 entrou em contato com o Ministério da Saúde para saber sobre o processo que envolve o remédio das irmãs, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. 

*Estagiária do R7 sob supervisão de Fernando Mellis

Últimas

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.