Como a GM enganou milhões de motoristas para espioná-los (inclusive eu)
Tecnologia e Ciência|Kashmir Hill, do The New York Times
As montadoras de veículos têm vendido à indústria de seguros dados de milhões de consumidores sobre comportamento ao volante. No caso da General Motors (GM), os motoristas que foram impactados negativamente não foram informados, e esse monitoramento levou as seguradoras a cobrar valores mais altos de alguns deles. Sou a jornalista que trouxe a história à tona – e, recentemente, descobri que também estou entre os motoristas espionados.
Em dezembro, meu marido e eu compramos um Chevrolet Bolt, modelo 2023, fabricado pela GM. No mês passado, ele recebeu os “arquivos de divulgação do consumidor” da LexisNexis Risk Solutions e da Verisk, duas corretoras de informações que trabalham com as seguradoras e às quais a GM estava fornecendo dados. (Meu marido solicitou os arquivos depois da publicação da minha matéria, também no mês passado, e seguiu os conselhos que dei aos leitores.)
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No relatório da LexisNexis constava um detalhamento das 203 viagens que fizemos com o carro desde janeiro, incluindo a distância, os horários de início e término, e a frequência com que freávamos bruscamente ou acelerávamos com rapidez. No da Verisk, de meados de dezembro, com um total de 297 viagens, havia uma síntese das informações no início do documento: 3.043,09 quilômetros percorridos; 4.251 minutos de condução; 170 freagens bruscas; 24 acelerações rápidas; e, como observação positiva, nenhum incidente de excesso de velocidade.
Também solicitei meu arquivo da LexisNexis enquanto escrevia a matéria, mas não existia nenhum dado de condução. Embora o nome dos dois conste no documento do carro, os dados de nosso Bolt correspondiam só ao meu marido, porque a concessionária o registrou como proprietário principal.
Um porta-voz da GM afirmou que essa coleta de dados só era feita para os que ativassem o OnStar, plano de serviços conectados da montadora, e se inscrevessem, no momento da compra ou por intermédio do aplicativo móvel do veículo, no Smart Driver, programa gamificado que oferece feedback e recompensas digitais por um bom desempenho ao volante – o que não fizemos, e me certifiquei disso depois para ter certeza. Em meados de janeiro, novamente enquanto escrevia minha matéria, conectei nosso carro ao aplicativo MyChevrolet para verificar se estávamos inscritos no Smart Driver. A resposta foi não, motivo pelo qual também não tínhamos acesso a nenhuma informação sobre nosso comportamento ao volante.
Mas em abril, quando descobrimos que vínhamos sendo rastreados enquanto dirigíamos, meu marido fez login em sua conta no site GM.com por intermédio da versão disponível para navegador, e lá constava que nosso carro estava inscrito no programa “OnStar Smart Driver+”. A GM afirmou que essa discrepância entre o aplicativo e o site foi resultado de “uma falha que afetou uma pequena parcela” dos clientes – os quais também obtiveram a pior versão possível do Smart Driver: não tínhamos acesso às informações sobre nossa maneira de dirigir, mas as seguradoras, sim.
Em dez processos federais apresentados no mês de março, motoristas do país inteiro afirmam que não tinham conhecimento de que estavam inscritos no Smart Driver, mas recentemente descobriram que a GM havia fornecido seus dados de condução à LexisNexis. De acordo com uma das denúncias, o valor do seguro do proprietário de um Cadillac CTS-V, modelo 2019, da Flórida, que o dirigia em eventos em pistas de corrida, quase dobrou – um aumento de mais de US$ 5 mil por ano. Em nenhum momento esses motoristas foram informados de maneira explícita ou direta dessa prática, nem mesmo nas letras miúdas, disseram eles. Um novo relatório revelou que a causa foi uma tela confusa que os motoristas teriam visualizado brevemente durante a compra do carro – se tivesse sido mostrada pelo vendedor.
“A GM criou o Smart Driver para promover uma condução mais segura em benefício dos clientes que optam por participar do programa. Com base nos feedbacks, decidimos descontinuar o produto Smart Driver em todos os veículos da GM e cancelar a inscrição de todos os clientes. Esse processo terá início nos próximos meses”, declarou Brandee Barker, porta-voz da empresa.
No mês passado, a GM deixou de compartilhar dados com a LexisNexis e com a Verisk, abrindo mão de receitas anuais de alguns milhões de dólares, de acordo com um funcionário familiarizado com os contratos. A empresa também recrutou um novo diretor de privacidade e confiança. “A credibilidade do cliente é uma prioridade para nós, e estamos demonstrando isso com nossas atitudes”, disse Barker.
Como isso aconteceu comigo
De acordo com a GM, nosso carro foi inscrito no Smart Driver quando o compramos em uma concessionária Chevrolet, em Nova York, durante o processo de assinatura de documentos que acompanha a aquisição de um veículo novo. O fato de isso ter acontecido comigo, consumidora incomum que lê as políticas de privacidade e está sempre atenta a uma preocupante coleta de dados, mostra como estão vulneráveis os compradores comuns.
Para descobrir como isso tinha acontecido, liguei para nossa concessionária, uma franquia da GM, e falei com o vendedor que havia nos atendido. Este confirmou que nos inscrevera no OnStar e observou que, se não fizer isso, seu salário é reduzido. Também apontou que se trata de uma ordem da GM, que envia um relatório mensal à concessionária sobre a porcentagem de inscrições. A montadora não quer apenas que as concessionárias vendam carros, mas carros conectados.
Por padrão, nosso Bolt veio com oito anos de Connected Access, função que não conhecíamos até recentemente. Isso permite que a GM envie atualizações de software para nosso carro – e colete dados. Detalhe: consentimos nisso durante a inscrição no OnStar.
Nosso vendedor descreveu a inscrição como um processo de três etapas que ele faz diariamente: seleciona “sim” para inscrever um cliente no OnStar, novamente “sim” para que o cliente receba mensagens de texto e, por fim, “não” para um produto de seguro oferecido pela GM que monitora como você dirige seu carro. (Por mais que pareça semelhante ao Smart Driver, é diferente.) Ele contou que faz isso com tanta frequência que se tornou automático – sim, sim e não – e que sempre escolhe “não” para o último porque esse monitoramento seria uma inconveniência para os clientes.
Barker, a porta-voz da GM, afirmou que as concessionárias não têm permissão para inscrever os clientes; estes é que devem aceitar as condições. A meu pedido, ela me forneceu a série de telas que deve ser mostrada aos clientes durante a inscrição no OnStar e no Smart Driver. Havia uma mensagem na parte superior de cada tela: “O cliente deve revisar e aceitar (ou rejeitar) pessoalmente os termos a seguir. Esta ação tem valor legal e não pode ser feita pela concessionária.”
O fluxo de telas era quase idêntico à descrição do vendedor que nos atendeu, exceto pela segunda opção, sobre a recepção de mensagens, na qual ele disse que sempre selecionava “sim”. Essa tela não era só para aceitarmos receber mensagens da GM, mas também para nos incluir no OnStar Smart Driver, e eu e meu marido não conseguimos nos lembrar dela – provavelmente porque, como parte de um procedimento padrão, nosso vendedor a preencheu para nós.
A tela ‘nada memorável’ que inscreveu milhões de pessoas no programa
Fui até a concessionária – em meu Bolt, é claro – para perguntar sobre isso, e um vendedor mais experiente me disse que sempre fazem com que os clientes aceitem os termos. Talvez nosso vendedor tenha se enganado em nossa conversa por telefone, e meu marido e eu tenhamos nos esquecido do momento durante a compra de nosso carro em que nos pediram que pressionássemos “sim” nesta tela. Não posso afirmar com certeza.
O que posso dizer é que, independentemente de quem pressionou o botão de consentimento, a tela para se inscrever no Smart Driver e receber notificações não diz nada sobre perfis de risco ou seguradoras. Nem mesmo sugere a possibilidade de que alguém, além da GM e do motorista, possa obter os dados coletados sobre como e onde o veículo é dirigido, enquanto a tela alega que o serviço vai ser usado para “melhorar a experiência do proprietário e ajudar a aprimorar sua condução”.
Mostrei a tela usada para inscrever milhões de pessoas no Smart Driver a diversos especialistas em design de informações. “O que você me mostrou não revela de forma alguma com clareza como a GM ou a OnStar se beneficiam do uso e da venda de suas informações. Incluir isso no processo de compra parece uma decisão consciente para obter altas taxas de conversão”, comentou Jen King, especialista em privacidade da informação da Universidade Stanford.
Harry Brignull, autor do livro “Deceptive Patterns: Exposing the Tricks Tech Companies Use to Control You” (Padrões enganosos: expondo os truques que as empresas de tecnologia usam para te controlar, em tradução livre), disse: “Nesse tipo de acordo, eles devem ser muito claros sobre a verdadeira função disso. Do contrário, o usuário não vai entender pelo que está optando.”
Barker afirmou que os termos e a declaração de privacidade da GM permitem à empresa compartilhar informações com “terceiros” – cláusulas legais que as pessoas aceitam na primeira tela que o vendedor mostra. Mas isso não parece estar em conformidade com os padrões da GM relacionados a informações tão confidenciais.
Há uma década, a montadora e outras gigantes do setor se comprometeram com a Comissão Federal do Comércio a fornecer avisos “claros, compreensíveis e destacados” sobre o levantamento de informações a respeito do comportamento do motorista, incluindo a razão pela qual são coletadas e “com quais tipos de entidades elas podem ser compartilhadas”. Além disso, esse programa de coleta de dados que soa inofensivo aparece ao lado de uma solicitação para enviar notificações aparentemente importantes sobre, entre outras coisas, “problemas com os principais sistemas operacionais do carro”. Para recebê-las, você precisa aceitar o outro acordo.
Smart Driver 2.0
Um ex-funcionário da GM que trabalhou na equipe de engenharia de dados da empresa comentou que não ficou surpreso com o fato de os motoristas não entenderem quais informações do seu carro estavam sendo coletadas e para que seriam usadas.
De acordo com ele, a GM obtém dados de todos os seus automóveis conectados à internet. Parte dessa coleta de informações beneficia os motoristas, como o monitoramento da saúde do veículo. Ele deu um exemplo: se um modelo específico tiver um problema de transmissão, a GM, a partir dos dados do veículo, pode ver quais carros estão apresentando complicações relacionadas a isso e enviar um recall específico daquele modelo aos proprietários.
O ex-funcionário também afirmou que, nos últimos anos, a GM começou a analisar outros comportamentos de direção além do excesso de velocidade, freagem e aceleração. Um documento interno da GM, de 2021, analisado pelo “The New York Times”, revelou que mais de oito milhões de veículos foram inscritos no Smart Driver naquela época, descrevendo uma nova versão do programa chamada “Smart Driver 2.0″, que monitorava curvas fechadas, alerta de colisão frontal, avisos de saída de faixa e lembretes de cinto de segurança; essas métricas eram usadas para precificar o valor do seguro para os motoristas que usavam a própria seguradora da GM, então chamada OnStar Insurance, mas que aparentemente não foram compartilhadas com a LexisNexis e a com a Verisk.
Mas esses alertas no veículo, destinados a ajudar as pessoas a dirigir com mais segurança, se tornaram um critério para medir o risco que elas oferecem como motoristas.
Questionado sobre como o consumidor pode desativar o acesso digital da GM ao seu carro, um porta-voz respondeu que o cliente pode “desativar toda a coleta de dados” entrando em contato com um consultor da OnStar pressionando o botão azul de seu veículo ou ligando para a central de atendimento ao cliente.
Alguns motoristas afirmaram em fóruns on-line que não confiam na declaração da GM de que vai parar de monitorar os carros a distância e, por isso, oferecem conselhos práticos para cada um abrir o sistema elétrico do carro e remover o módulo OnStar.
Andrea Amico, fundador da Privacy4Cars, empresa que fabrica uma ferramenta para apagar os dados pessoais dos sistemas eletrônicos de informação e entretenimento dos veículos, disse que é necessário estabelecer um limite entre os dados técnicos de um automóvel – como os usados para ativar os avisos de recall – e os pessoais dos motoristas – por exemplo, como e onde dirigem –, que deveriam pertencer a eles, e não à montadora.
Além dos problemas de privacidade, Amico observou que os relatórios sobre o comportamento dos motoristas que a LexisNexis e a Verisk estavam criando eram imprecisos – como o registro da minha condução no relatório do meu marido. “O fato de não conseguirem explicar quem deu consentimento e de quem são os dados é muito problemático”, opinou ele.
c. 2024 The New York Times Company