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Viaje nas ideias dos brasileiros que acreditam que a Terra é plana 

R7 acompanhou a Flat Con, primeira conferência de terraplanistas. Para eles, planeta redondo, gravidade e ida à Lua são 'farsas' da Nasa e do 'sistema'

Tecnologia e Ciência|Eduardo Marini, do R7

Palestrantes na Flat Con: 'Terra bola' é mentira de "dominadores" e americanos
Palestrantes na Flat Con: 'Terra bola' é mentira de "dominadores" e americanos Palestrantes na Flat Con: 'Terra bola' é mentira de "dominadores" e americanos

A Terra é redonda, esférica. Um globo levemente achatado, assimétrico, imperfeito.

A Lei da Gravidade, descrita pelo genial cientista, alquimista e astrônomo inglês Isaac Newton (1642-1727), em linguagem mais simples, é a força entre dois corpos que atrai um para o outro. Por causa dela, por exemplo, frutas caem do pé em direção ao chão. Quanto maior a massa de um objeto, mais forte sua capacidade de atração gravitacional.

O homem foi à Lua. Trouxe de lá fragmentos do solo lunar, frequentemente exibidos em exposições ou por cientistas em eventos pelo mundo, e até mesmo fezes das equipes de astronautas.

O heliocentrismo diz que a Terra gira ao redor do Sol, definindo dia e noite e estações do ano — e não o contrário, como ainda insistem em pregar os geocentristas.

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O espaço sideral existe. O aquecimento global também, com a ressalva de que ainda resta saber se ele é majoritariamente provocado por mais um ciclo de temperatura na Terra ou também fruto da agressão do homem.

São pontos ensinados nas escolas, universidades. E defendidos por praticamente todos os cientistas contemporâneos do mundo ligados a instituições de pesquisa respeitadas.

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Mas existe uma legião convencida de que todas essas coisas não passam de mentiras, farsas, partes de conspirações e manipulações que envolvem o Estado e o governo americanos, a CIA, a Nasa, a agência espacial americana, e até mesmo a indústria de cinema de Hollywood.

E, para muitos deles, outro punhado de “dominadores”, que inclui “grande parte da “mídia”, a sociedade secreta alemã Illuminati, grupos ingleses, outros governos e líderes e a Maçonaria. É o “sistema”, termo quase impossível de não ser ouvido em cinco minutos de conversa com qualquer um deles.

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São os terraplanistas, adeptos da crença de que a Terra não é redonda, e sim plana, cercada por um grande anel de gelo nas bordas, que impede a ultrapassagem dos homens e de seus equipamentos, sejam eles barcos, veículos terrestres ou aeronaves.

Terra de terraplanista é chapada
Terra de terraplanista é chapada Terra de terraplanista é chapada

Eles garantem ser pelo menos 5% da população mundial, ou 385 milhões pessoas. Por aqui, uma pesquisa feita pelo Datafolha no início de julho de 2019 mostra que 7% dos brasileiros maiores de 16 anos, aproximadamente 11 milhões, não acreditam que o planeta seja a “Terra bola”, como a turma mais mergulhada na divergência costuma rotular.

No domingo (10), os terraplanistas realizaram a Flat Con, a primeira conferência do grupo no Brasil, em um teatro do bairro da Liberdade, em São Paulo. Reuniram cerca de 400 pessoas, público turbinado com a liberação para que muitos inscritos (taxa de R$ 80 no primeiro e R$ 110 no segundo lote) levassem até dois convidados. Inscrita, a reportagem do R7 participou do encontro.

Palestrantes e participantes não deixam passar a oportunidade de lembrar uma suposta “perseguição” da maioria “Terra bola” pelo fato de acreditarem no mesão. Verdade ou ideia de perseguição, o fato é que os organizadores sofreram um bocado até confirmar a presença no Teatro Liberdade naquele domingo nublado.

Inicialmente, agendaram a conferência para o dia 23 de novembro, num auditório de Pinheiros, também em São Paulo, mas não conseguiram confirmar o local. Anteciparam para o domingo (10) e fecharam com o segundo anfiteatro, em uma escola, dessa vez no bairro Paraíso. Os diretores do colégio tomaram conhecimento do tema e veio a segunda recusa.

Foram salvos pelo gestores do Teatro Liberdade, ligado à Maçonaria, que, ironicamente, faria parte dos “dominadores” que mantém a farsa da Terra redonda para muitos terraplanistas. Escaldados, eles só divulgaram o local definitivo, inclusive para os inscritos, às 19h do sábado (9), apenas 13 horas antes do início da conferência. Para quem veio de fora de São Paulo, em final de semana de Enem, deve ter sido uma maravilha de organização pessoal.

A reportagem conversa com dois participantes à frente na fila de entrada. Eles pedem para ter a identidade preservada. O primeiro, com cerca de 40 anos, diz: “minha mulher e toda a família dela brincam comigo dizendo que estou maluco quando puxo essas conversas”. O outro, um jovem de cerca de 20 anos, interrompe: “Minha namorada também”. O mais velho retorna ao papo: “mas é preciso questionar, gente. Não dá para engolir tudo no mundo sem desconfiar”.

Jean Ricardo Gonçalves, paulista de Jaú, 44 anos, abre a Flat Con. É fartamente aplaudido e brindado com uhus. Após um discurso breve, anuncia a atração musical da jornada: o cantor e compositor baiano Douglas Souza — terraplanista, evidentemente. Nome da música? A Terra é Plana, claro. “O mundo é plano e sem fronteiras/É campo aberto/Abri meus olhos e finalmente enxerguei/Que isso não vai mudar/Até que o tempo acerte o seu lugar”. Aplausos. Uhus.

"Terrona, Terrinha e chaveiro": brindes vendidos entre R$ 10 e R$ 80
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Lá dentro, o culto à Terra chapada esquenta. Os discursos misturam referências a intelectuais do passado, experimentos não chancelados pela maior parte da comunidade científica e citações bíblicas e religiosas. Uma mistura que não convence nem por um lado nem pelo outro. Na prática, funciona mais para chover no molhado da pregação para convertidos à ideia — caso de todos os presentes — do que convencer com provas alguém que não abrace a causa.

Entre os palestrantes, a suprema maioria youtuber dedicado à causa, muitos pesquisadores informais, alguns com facilidade de expressão e claramente bem informados sobre o tema, mas nenhum deles cientista avalizado por instituições de pesquisa respeitadas na área no mundo moderno. Causou também estranheza o fato de sempre citarem estudos, teses e referências seculares e quase nunca comprovações atualizadas, que seriam facilmente produzidas com as facilidades digitais da atualidade.

Siddartha Chaibub, o ‘Professor Terra Plana’, fala em “Terra Globo do Satan (assim mesmo, com n)” e “Terra Plana de Deus”. Chama Einstein e Newton de “pseudocientistas” e a ideia do planeta redondo de “hipnose mental”, “pseudociência”, “pílula que vicia a gente” e “teatro”, entre outras referências pouco carinhosas. “A ignorância é uma benção. Ninguém nasce com a crença de que a Terra é uma bola. Isso é doutrina”, atacou.

A enfermeira Priscila Bandeira, Prisca Coco no Youtube, inicia a participação propondo brados, naquele clima afetivo de professor carismático em palestra para secundaristas. Voz embargada e amaciada, como se dominada pela emoção, Prisca Coco manda ver: “Terra plana não é pra qualquer um. É pra cabra macho. Quem é cabra macho aêêêêêê?”, pergunta, caprichando no agudão falho, e vira o microfone para a galera. “Eeeeeeeeuuuuuuuuuuuuuu”, berra a homarada. Ela convoca a outra parte. “Terra plana não é pra qualquer um. É pra mulé maaaaacho”, manda, caprichando no final. “Quem é mulé macho aêêêêêêê?” É a vez da mulherada: “Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeuuuuuuuuuuuuuuu”.

Em seguida, Prisca Coco enumera fatos que, segundo ela, confirmam as práticas do “sistema” para manter a farsa da Terra bola, do heliocentrismo, da ida à Lua, do espaço sideral, da gravidade, do aquecimento global... No auge da sequência peculiar, afirma que a Nasa trabalhou para cassar o diploma de uma militante terraplanista árabe, uma certa Amira Kharroubi, e insinua que a agência espacial americana promoveu também o sumiço da moça. Em seguida, manda uma mensagem fofa para a plateia efaz uma pausa. É coberta por aplausos e uhus.

Entre afirmações do quilate de “água não faz curva”, em desafio à Lei da Gravidade, e de que “foguetes são filmados, fotografados e depois jogados ao mar, sem transmissão pelos veículos de comunicação, para manter a farsa”, o repórter se flagra envolto em um clima de surrealismo, viagem limpa, ao se lembrar de determinados fatos.

Pensa na sombra arredondada produzida pelos eclipses, no alinhamento entre Lua, Terra e Sol, algo possível apenas se o planeta for esférico, e não um mesão redondo e plano. Lembra de aviadores e navegadores que provam há tempos a possibilidade de se sair de um lugar, dar a volta no globo e voltar a este mesmo ponto.

Se estivéssemos sobre um mesão arredondado, todos veríamos, em qualquer ponto desse plano, as mesmas constelações e as mesmas estrelas, em maior ou menor grau de luminosidade. Mas quem vive nas partes mais ao norte do mundo não consegue ver, por exemplo, o simbólico Cruzeiro do Sul tão admirado no Brasil, não é verdade?

Qualquer luneta moderna com alguma profundidade, disponível no mercado para estudo, curiosidade e brincadeira das famílias, mostra que os outros planetas do Sistema Solar são esféricos. Por que a Terra haveria de ser exceção? Surgem na mente os fusos horários. E também o fato de que se o Sol iluminasse uma Terra plana seria possível enxergá-lo em algum ponto mesmo à noite.

O navegador brasileiro Amyr Klink saiu de Paraty, no litoral do Estado do Rio, deu duas voltas ao mundo sozinho, em barcos pequenos, e retornou à mesma praia da cidade fluminense nas duas ocasiões. Foi ali e já voltou. “Seria bom poder sentar à beira da Terra e ficar com as perninhas balançando, observando o universo. Só que não é”, disse ele, semanas atrás, a Marcelo Mena Barreto, da Rede Brasil Atual. “Eles abraçam uma causa altamente polêmica, que vai ser duramente atacada, para se apoiarem uns nos outros. É uma teoria difundida por gente ao mesmo tempo ignorante e picareta, acolhida por pessoas com extrema carência emocional”.

Em um dos intervalos, a reportagem citou as duas viagens de Klink para Jota Marthins, um dos palestrantes. “Não conheço o caso. Preciso estudar primeiro para te responder”. Lembrou dos GPSs dos aviões comerciais da atualidade, que marcam sempre uma altura média em cruzeiro, algo impossível ao se contornar uma Terra chapada de um lado e mais volumosa abaixo da superfície reta. E dos pilotos e passageiros dos antigos Concorde, que atestam ter cansado de ver as curvaturas da Terra, eles que voavam a até 60 mil pés (mais de 18 quilômetros) de altura naqueles supersônicos.

Decoração foi caprichada
Decoração foi caprichada Decoração foi caprichada

“E se tudo isso for uma combinação das empresas com os outros interessados para informar falsas medidas sempre constantes dos GPSs?”, questionou Marthins. “Combinação a que propósito, se empresas aéreas querem mesmo é lucro, independentemente de a Terra ser redonda, quadrada, chapada ou triangular?”, argumentou a reportagem. “Não sei, não sabemos... Enquanto não me provam que a Terra é bola vou crer que ela é plana”, devolveu Marthins. Obrigado.

Fim de Flat Con. Nenhuma contestação ou voz contrária no auditório. Mesmo porque dava para imaginar que um questionamento aberto, naquele clima, teria o efeito de um ‘vai Curintia’ em festa do Palmeiras ou um ‘vai pra cima deles Mengo’ por um sujeito na torcida do Vasco em pleno Maracanã.

O caso do site americano America’s Last Line of Defense, algo como A última linha de defesa da América, vem à mente ao fim da Flat Con. “Nada nesta página é real. Nem uma fração. Por favor, não a use em conjunto com o Google ou as notícias. Isso só servirá para confundi-lo ainda mais”, destacam os editores logo no início. Seria mais uma brincadeira não fosse por um fato curioso: quanto mais o autor e seus parceiros destacam que tudo ali é mentira, mais seguidores do site acreditam estar diante de verdades absolutamente inquestionáveis.

É o que os pesquisadores da área costumam chamar de viés confirmatório, de confirmação, ou de tendência de confirmação. Um processo cognitivo, que gera forte tendência de crer, lembrar, pesquisar, buscar, interpretar, expor e compartilhar informações, argumentos e ponderações de forma seletiva, muitas vezes tendenciosa, mais para continuar convencido de que o correto é unicamente o que já se pensa, e menos para convencer o outro do que se pensa.

Se é esse o caso dos terraplanistas, ainda carece de estudo e confirmação.

Com toda razão, eles defendem o direito democrático dos questionamentos e das posturas individuais de questionadores.

Perfeito. Mas combinemos: seria possível manter uma conspiração dessas, com Nasa, CIA, governo americano, tantos outros “dominadores” e milhões de cúmplices, por várias décadas, sem nenhum rebelde para se revoltar trazer a verdade à tona? Nenhum ex-comandante de aeronave ou navio revoltado, como vítima de alguma injustiça, para exibir as evidências e provas concretas acumuladas por eles e outros sobre a Terra chapada?

A Flat Con chega ao fim. Lá fora, milhões jovens respondem questões sobre a “Terra bola” no Exame Nacional do Ensino Mèdio, o Enem.

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