Crise política revela abismo entre eleitores e eleitos
Segundo especialistas, votação do impeachment é sinal de crise de representatividade
Brasil|Diego Junqueira, do R7
Parecia um “7 a 1”, só que não era futebol, era política.
A transmissão em TV aberta da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, na Câmara dos Deputados, fez os brasileiros se unirem por algo além do “sim” e do “não”. Nas redes sociais, teve mais gente criticando a classe política do que opinando sobre o “tchau” ou o “fica querida”. Alguns internautas criticaram ainda a baixa presença de mulheres e negros no Congresso, enquanto outros lembraram que os deputados foram escolhidos há menos de dois anos. Mas, afinal, os deputados nos representam?
Cientistas políticos entrevistados pelo R7 afirmam que o Brasil vive uma crise de representatividade, simbolizado por um racha no diálogo entre representantes (os políticos) e representados (o povo).
“A sociedade brasileira é muito melhor do que aquela Câmara”, diz Renato Meirelles, presidente do Data Popular, instituto que acompanha há 15 anos o crescimento e a opinião das classes C, D e E no Brasil.
— Ninguém se enxerga representado no Congresso Nacional porque a classe política só fala para a própria classe política, com um conjunto de interesses próprios que não dialogam com os anseios da população brasileira. Você vê muita gente falando contra a corrupção, mas pouca gente falando o que fazer para combater a corrupção. Muita gente falando que votava pela família, mas não pensando o que fazer pra conter a inflação que tira a comida da mesa de outras famílias.
A insatisfação com a votação — que abriu de fato o processo de impeachment da presidente — foi o assunto mais comentado na web naquele dia.
O professor Fábio Malini, coordenador do Labic (Laboratório de pesquisa sobre Internet e Cultura), da Universidade Federal do Espírito do Santo, fez uma análise do Twitter e reuniu 3,5 milhões de mensagens que mencionavam as palavras “impeachment” ou “impeachmentday”.
“Nem na Copa do Mudo houve essa quantidade de usuários, em língua portuguesa, tuitando num mesmo dia”, avaliou.
— As redes políticas, antes dominadas por uma polarização entre os favoráveis e os contrários ao impedimento da presidenta Dilma, foram rompidas por uma saraivada de críticas ao sistema político brasileiro no Twitter.
Embora a população tenha se unido (pelo menos na web) para malhar os políticos, ela também tem a sua parcela de responsabilidade pelo 17 de abril, opina o cientista político Aldo Fornazieri, professor da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).
— De modo geral, o eleitor médio não se preocupa muito em quem ele vota para deputado, tanto é que as pesquisas mostram que rapidamente ele esquece em quem votou. Portanto, o eleitor não tem como eventualmente ‘punir’ o parlamentar na eleição seguinte, caso não se comporte bem, porque ele não se lembra em quem votou.
O presidente do Data Popular discorda que a população seja “desinteressada”. Para ele, é a política tradicional que se afastou do eleitor.
— A população já não se sente representada há um bom tempo. A primeira manifestação disso foram as passeatas de junho de 2013, quando ela buscava qualidade dos serviços públicos e uma nova interlocução com a política. Esse processo permeou todo o debate eleitoral, em uma sociedade em que você tem políticos analógicos, que só sabem falar e não sabem ouvir, e eleitores digitais, que não querem só ouvir, querem ser ouvidos.
Para o pesquisador Wagner Pralon Mancuso, professor de Gestão e Políticas Públicas da EACH/USP, “o descompasso entre o Legislativo e a sociedade não é novidade”.
— Os deputados evocaram a população ali no voto, dizendo que eles estão atendendo aos anseios da população. Eles têm até uma desculpa, já que as pesquisas de opinião mostraram que a maioria era a favor do impeachment. Mas eles ignoram que governadores fizeram pedaladas [fiscais], que o vice-presidente também assinou pedaladas, ou que as mesmas pesquisas de opinião mostram que praticamente a mesma porcentagem defende o impeachment do Michel Temer. Então eles levam em consideração parcialmente o que a população deseja.
A última pesquisa Ibope sobre o cenário político, divulgada em 25 de abril, revelou que 62% dos brasileiros querem a saída de Dilma e do vice-presidente Michel Temer e novas eleições. Outros 25% optam pela permanência de Dilma, enquanto 8% defendem o impeachment da presidente e a entrada do vice no poder — cenário mais provável até o momento.
Sistema distorcido
Uma das razões levantadas para a crise de representatividade, segundo os entrevistados, é o “sistema proporcional” adotado nas eleições de vereadores e deputados — diferentemente do “sistema majoritário”, usado na escolha de prefeitos, governadores, senadores e presidente, no qual ganha quem receber mais votos.
No sistema proporcional, o “quociente eleitoral” determina quem é eleito. Esse valor é calculado dividindo-se o número total de votos pelo número de cadeiras na Câmara. Assim, o importante não é somente o número de votos que um deputado obtém, mas também quantos votos a coligação como um todo alcança.
Na eleição de 2014, por exemplo, São Paulo contabilizou 20,9 milhões de votos para deputados federais. Considerando as 70 cadeiras destinadas ao Estado na Câmara, o quociente eleitoral foi de 299.952 votos. Na ocasião, somente cinco deputados paulistas conseguiram superar essa barreira. O restante chegou a Brasília pela força das coligações.
O deputado Tiririca (PR-SP), por exemplo, recebeu mais de 1 milhão de votos em 2014, superando o quociente eleitoral em três vezes. Com esse desempenho, ele conseguiu, além da sua vaga, outras duas na Câmara.
“O modelo de voto proporcional não permite com que os diversos setores da sociedade sejam representados no Congresso”, afirma Meirelles.
— [Esse modelo] faz com que um Tiririca eleja mais dois deputados com a votação dele, dois deputados que não necessariamente pensam como o Tiririca, mas [só se elegeram] porque foram eleitos dentro da proporcionalidade da chapa de deputados.
Para se ter uma ideia, dos 513 deputados federais eleitos em 2014, apenas 36 conseguiram superar o quociente eleitoral em seus Estados, segundo levantamento realizado à época pelo DIAP (Departamento Intersindical de Análise Parlamentar).
O sistema proporcional falha também por causa da “pulverização de partidos”, segundo os especialistas, porque as legendas não se unem em torno de um projeto comum, mas sim por oportunidade eleitoral.
“Essa Câmara é produto de um sistema político inadequado. Não há unidade partidária em torno de programa e ideologia”, diz Fornazieri.
— A maioria esmagadora dos deputados, tendo em vista essa fragmentação proporcional, se elege com baixo número de votos, portanto, com baixa representatividade popular. Isso ocorre devido aos quocientes eleitorais, ao sistema proporcional e ao multipartidarismo. Há uma distribuição precária dos mandatos com baixo índice de votos.
Em setembro de 2015, a presidente Dilma sancionou a "minirreforma eleitoral", que vetou o financiamento privado de campanha — seguindo entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal) de que as doações eleitorais por pessoas jurídicas são inconstitucionais — e proibiu a impressão de votos da urna eletrônica.
A lei aprovada, contudo, não tratou do sistema eleitoral e não entrou em outras discussões polêmicas, como a cláusula de barreira.
Adotada em países como Alemanha, Espanha, Noruega e Suécia, a cláusula é uma barreira de desempenho que impede um partido de chegar ao Congresso caso não atinja um percentual de votos determinado.
"Enquanto não se fizer reforma política saneadora, que se estabeleça uma cláusula de representação, uma clausula de barreira para se chegar à Câmara de Vereadores, à Assembleia Legislativa e à Câmara Federal, nós vamos ter essa desordem na representação política e uma baixa qualidade da representação política", afirma Fornazieri.
O professor Mancuso, por outro lado, mostra receio com a cláusula, porque, dependendo do percentual definido, "partidos orgânicos e ideológicos podem ficar fora do parlamento".
Peso do dinheiro
Já o fim do financiamento privado de campanha, aprovado no ano passado, está sendo testado pela primeira vez nas eleições municipais deste ano. O assunto está no centro do debate sobre corrupção no Brasil, em razão da Operação Lava Jato, que investiga desvios de recursos da Petrobras para pagamento de propina a políticos e o irrigamento do caixa de partidos políticos.
Em março último, a força-tarefa da Polícia Federal e do Ministério Público encontrou, na casa de um dos diretores da construtora Odebrecht, uma planilha com doações eleitorais a cerca de 200 políticos de mais de 20 partidos. Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo informou na época que a "lista da Odebrecht" apontava para um esquema de caixa 2 (doações ilegais e não declaradas), já que o montante encontrado na lista era superior ao valor declarado oficialmente pela empresa por suas doações eleitorais. Há cerca de dez dias, o ministro do STF Teori Zavascki determinou a abertura de procedimento para investigação da planilha.
"O fim do financiamento privado não é uma garantia. É uma primeira experiência”, avalia Fornazieri.
— A tendência é que diminua o peso econômico. Mas podem se constituir outras formas de corrupção política. Por exemplo, pode reforçar enormemente o caixa 2. Vamos ver o que vai dar.
Para Mancuso, da EACH/USP, nesse novo cenário, o “peso da militância” pode contrapor ao “peso do dinheiro”, já que candidatos com maior capilaridade social tendem a se favorecer. Contudo, a falta do dinheiro privado também traz riscos.
— Por um lado, a disputa ideológica vai ser mais intensa. Mas por outro lado eu temo que aumentem as chances de alguns candidatos ligados a meios de comunicação, ou ligados a igrejas, porque são candidatos que, comparativamente, sempre precisaram menos de dinheiro por terem outras bases eleitorais. Um terceiro efeito é que as elites partidárias terão mais poder. Com o fim do financiamento privado, o fundo partidário ganha importância, então o partido vai dar dinheiro provavelmente para as candidaturas mais fortes, que arrastam as outras, por causa do nosso sistema proporcional.
Para Fornazieri, qualquer que seja o desfecho do processo de impeachment, o Brasil viverá a crise política ainda por um bom tempo.
— Não vamos sair dessa crise nem com eleição antecipada nem com as eleições de 2018. Vamos passar alguns anos purgando os defeitos da nossa democracia.