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'Tortura até a morte é homicídio', diz ex-companheira de Merlino

Mãe de jornalista começou a lutar pela punição dos suspeitos pela morte do filho em 1979

Brasil|André Caramante, do R7, e Tatiana Merlino, colaboração para o R7

Foto de Luiz Merlino aos 11 anos. Jornalista foi morto aos 23
Foto de Luiz Merlino aos 11 anos. Jornalista foi morto aos 23 Foto de Luiz Merlino aos 11 anos. Jornalista foi morto aos 23

Para Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino, o significado dessa ação para a família é importantíssimo.

— Na verdade, era esse tipo de ação, uma denúncia criminal, que queríamos desde o início, quando movemos o primeiro processo na área cível, em 2008. Um crime, um homicídio, ainda mais decorrente de tortura até a morte, tem que ser punido criminalmente.

Ainda em 1979, a mãe de Merlino, Iracema da Rocha Merlino, hoje falecida, moveu uma ação declaratória na área cível, mas foi rejeitada, sob a alegação de prescrição.

Em 2008, Angela e Regina Merlino, irmã do jornalista, moveram uma ação declaratória na área cível contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, subscrita pelo advogado Fábio Konder Comparato, porém foi extinta.

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Quem são os acusados pela morte de Luiz Merlino

Em 2010, a família tentou novamente uma ação (também na área cível) por danos morais, contra o coronel Ustra. Em junho de 2012, numa sentença de primeira instância, o coronel foi condenado a pagar uma indenização à família de Merlino. A defesa de Ustra recorreu da sentença e o processo segue em andamento. “São mais de quarenta anos de luta por Justiça. Esperamos que agora finalmente haja punição”, afirma Regina Merlino.

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Merlino tinha 23 anos quando foi assassinado. Nascido em Santos (SP), em 18 de outubro de 1948, fez parte da primeira equipe do Jornal da Tarde, fundado em 1966, do grupo O Estado de São Paulo. Também foi repórter da Folha da Tarde. Estudante de história da USP, era militante do Partido Operário Comunista. Tinha recém retornado da França quando foi preso na casa de sua mãe, em Santos (SP).

A última vez

Faz frio na noite de 15 de julho de 1971.

— Logo estarei de volta, diz Merlino à mãe, irmã e tia.

Regina, a irmã, corre para a janela e o vê partir no junto com os três homens. É a última vez que o vê. Minutos antes, Regina atendia à campainha da casa de sua mãe, na rua Itapura de Miranda. Eram três homens à procura por Luiz Eduardo.

— Vieram buscá-lo, disse Regina ao irmão.

Gripado, ele guarda alguns papéis e vai ao encontro dos homens. Um deles cutuca Regina com o cabo da metralhadora e diz:

— Eu posso ser semi-analfabeto, mas não tenho irmão terrorista.

Merlino é levado ao DOI-Codi de São Paulo, onde as torturas se iniciam. Lá, “foi barbaramente torturado por 24 horas ininterruptas e abandonado numa solitária, a chamada cela forte, ou x-zero. Ademais, consta que a vítima, em razão da permanência no pau de arara, desenvolveu uma grave complicação circulatória que, somada à omissão posterior em impedir a consumação do homicídio, veio a produzir o resultado da morte”, de acordo com o livro Direito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria de Direitos Humanos, do governo federal.

Vários presos políticos que estavam no centro de repressão testemunharam os maus tratos a que Merlino foi submetido e apontam os acusados como responsáveis pelas torturas.

Pau de arara e cadeira do dragão

Entre as testemunhas está Eleonora Menicucci de Oliveira, atual ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, à época também militante do POC (Partido Operário Comunista). Ela e Merlino foram torturados juntos. Ela, na cadeira do dragão (cadeira revestida de metal ligada à corrente elétrica). Ele, no pau de arara. Na sala, relata, estavam Ustra, Gravina e Calandra.

Em relato à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", Eleonora Oliveira descreveu a tortura.

— Teve uma noite que eles me tiraram da cela e me mostraram o Luiz Eduardo preso. E quem fez isso foi o JC [codinome de Gravina]. Ele era uma figura inesquecível pela brutalidade, pela animalidade e por ter cabelo comprido, andar com uma camisa aberta e usar um crucifixo. Outra pessoa que acompanhava as sessões de tortura, torturando, era o Ubirajara [codinome de Aparecido Laertes Calandra]. Todas as torturas eram coordenadas, dirigidas e orientadas pelo Ustra.

Eleonora Oliveira continuou a relembrar os momentos de terror.

— Neste dia, mais de madrugada, eu fui tirada e levada para a cadeira do dragão. E o Nicolau [codinome de Merlino] estava no pau de arara. Ele tinha uma ferida enorme, quadrangular, na perna. Sangrava muito. E mesmo assim ele continuava tomando muito choque, muito chute. Na cadeira do dragão você leva choque no corpo todo e perde um pouco a dimensão da consciência. Numa hora que eu “voltei”, vi o Ustra na porta de entrada da sala, e estavam o JC e o Calandra torturando. Depois dessa vez, o Nicolau não apareceu mais.

A atual ministra de Políticas para as Mulheres não tem dúvida sobre quem torturou e matou Merlino.

— Esses três personagens eu tenho certeza absoluta que são os responsáveis pelo assassinato do Luiz Eduardo Merlino. Primeiro, pela tortura. E, segundo, por não terem dado nenhum apoio do ponto de vista médico”. O relato de Eleonora foi realizado em audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, ocorrida em 8 de agosto de 2014.

Hospital do Exército

Os ex-presos políticos Paulo de Tarso Vannuchi (ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos) e Otacílio Guimarães Cecchini relatam ter presenciado o momento em que Merlino foi retirado da cela por um carcereiro e colocado em cima de uma escrivaninha no corredor para que sua perna fosse massageada.

— Ele não tinha como se locomover. A tentativa era fazer uma massagem para ele andar e ter um mínimo de autonomia. É claro que isso não resolveu o problema, afirmou Cecchini.

Vannuchi continua com a história.

— Eu pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que que ele tinha numa das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena. Depois de um tempo, Merlino foi colocado no porta-malas de um carro e levado ao hospital do Exército.

— Ele foi colocado no porta-malas de um carro por quatro outros policiais (...) desacordado. Parecia até já morto, disse Leane Ferreira de Almeida, em audiência da Comissão da Verdade de SP, em 13 de dezembro de 2013.

Cecchini aponta que quando estava sendo interrogado, ouviu o coronel Ustra ser chamado para uma ligação do hospital.

— Eram os médicos que estavam pedindo contato da família porque havia necessidade de uma amputação [da perna]. Ou seja, havia uma solicitação de um hospital, sobre um paciente ainda vivo, um preso político torturado com princípio de gangrena, com necessidade de amputação de uma perna. O Ustra recebeu esta informação.

Porém, a família não foi contatada. E outra testemunha, Joel Rufino dos Santos, disse, ter ouvido um torturador do DOI-Codi falar sobre Merlino

— Seu amigo esteve aqui. Ele quis dar uma de durão, acabou com as pernas gangrenadas e foi levado para o Hospital Militar. De lá telefonaram para cá dizendo que precisavam amputar. O Major Ustra reuniu e fez aqui uma votação. Eu votei para amputar as pernas, mas fui voto vencido.

Caixão lacrado

A notícia da morte de Merlino chegou à família por meio de um telefonema ao seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, que era delegado da Polícia Civil. Adalberto e tios de Merlino foram ao ao IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo onde foram informados de que lá não havia nenhum morto com esse nome.

Ao usar sua condição de delegado, Adalberto foi em busca do corpo do cunhado. Abrindo uma por uma as portas das geladeiras, localizou o corpo de Luiz Eduardo com marcas evidentes de tortura e sem identificação. O corpo foi entregue à família num caixão lacrado.

A versão que foi dada à família foi a de que Merlino teria se suicidado ao jogar-se embaixo de um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga, quando estava sendo transportado para Porto Alegre para a identificação de militantes. Tal versão consta do laudo necroscópico assinado por Abeylard Orsini e Isaac Abramovitch. O veículo que o teria atropelado nunca foi identificado e tampouco foi realizada uma ocorrência no local do fato.

Na missa de trigésimo dia do assassinado de Merlino, realizada na Catedral da Sé, os mesmos três homens que buscaram Merlino em casa compareceram para dar os “pêsames” à sua mãe e sua irmã. 

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