Chávez, o presidente desaparecido
Venezuela está estranhamente sem saber como está o líder da nação
Internacional|Do R7
No dia 10 de janeiro, enquanto Hugo Chávez estava acamado em um hospital em Havana, ele tomou posse simbolicamente como o novo presidente da Venezuela em uma cerimônia no país. A multidão que compareceu a sua festa de posse virtual se comoveu até as lágrimas com uma gravação de Chávez cantando o hino nacional. O país está passando pela circunstância muito estranha de estar com e sem o seu líder; ele não está presente, mas a sua voz resiste.
Da UTI, o presidente "continua a desempenhar suas obrigações"; ele dá ordens e envia beijos para as crianças. Isto é o que o seu vice-presidente diz. Segundo o Tribunal Superior, o Congresso não pode considerá-lo ausente, pois não importa o quão doente ele esteja, apenas o próprio Chávez tem autoridade para se declarar ausente. A oposição está exigindo um "atestado de vida" – a prova de que ele ainda está vivo, como se ele fosse uma vítima de sequestro. Dia após dia, nas ruas, no Twitter, o presidente morre e ressuscita. Mas esse não é um romance de realismo mágico.
Após 14 anos como presidente, Chávez controla todos os poderes públicos: o Legislativo, o Tribunal Superior, a Promotoria Pública, sem falar da indústria petrolífera. De todos que tiveram mandatos desde o fim da ditadura militar em 1958, ninguém concentrou o poder tanto quanto Chávez.
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Do momento em que venceu sua primeira eleição, ele sabia que não tinha conquistado a presidência para administrar um governo sólido. Ele chegara para mudar o curso da história. Em nome dos necessitados, ele ressuscitou o fantasma do mandachuva militar da América do Sul, criando uma nova versão desse homem-forte tradicional. Ele canta canções "rancheras" no domingo e negocia com o Irã na segunda. É fruto da telenovela que evoca a velha esquerda. Como presidente, ele habilmente combina o poder com o melodrama.
Ele astutamente aproveitou-se do fracasso do neoliberalismo e das elites tradicionais, assim como do clima antipolítico da época, prometendo democratizar a renda do petróleo do país e eliminar desigualdades sociais profundas. E, pegando a onda do crescimento do petróleo, conquistou a lealdade dos pobres.
Mas seu "socialismo do século 21" é um modelo populista, voltado ao clientelismo e que depende menos da ideologia que do preço do barril do petróleo bruto. Ele conseguiu recuperar a ilusão de uma sociedade sustentável que distribui em vez de criar riquezas. E graças a essa ilusão, conseguiu manter seu punho de aço no poder.
As últimas eleições de outubro lhe deram a chance de completar, "democraticamente", 20 anos como presidente. "Veinte anos no es nada", afirmou – uma frase de um tango famoso que significa "vinte anos não são nada". Mais de oito milhões de eleitores pareceram concordar com ele; provavelmente, mais ou menos o número de pessoas que se beneficiaram com os programas sociais de sua administração, que são chamados, um tanto religiosamente, de "missões" (embora o governo afirme que o número seja bem maior).
Os venezuelanos hoje são menos pobres do que foram um dia. Mas também são bem mais dependentes do Estado, e mais suscetíveis à máquina de propaganda que atribui esse "milagre" a Chávez. Na última década, seu governo investiu cerca de 400 bilhões de dólares em gastos sociais, um luxo regado pelo petróleo que poucos países na região já puderam se proporcionar.
Há um elemento da liderança de Chávez, entretanto, que não é diferente de quaisquer outros regimes autoritários latino-americanos guiados pela personalidade: sua natureza messiânica. "Com Chávez, tudo; sem Chávez, nada" é o lema oficial do governo. "Somos todos Chávez" é seu grito de batalha e sua canção de amor. Com o tempo, o Estado criou uma indústria poderosa em volta do culto à personalidade. Poucos venezuelanos esquecerão o momento em que Chávez, em um evento televisionado em uma igreja, implorou a Jesus Cristo mais dias na Terra. Agora, seguindo uma recuperação incerta em Cuba, que está sendo monitorada de perto pelos irmãos Castro, o presidente da Venezuela já é um mito a caminho da consagração.
Quando ele de fato partir, muitos se sentirão órfãos. Ele se fez o eixo à volta do qual a vida do país girava, e sua forma única de autoridade, sem sua presença física, será muito difícil de manter. Sua ausência criará um vácuo na sociedade que foi forçada a se dividir e se organizar em dois blocos: ou a favor ou contra Chávez. A máquina de propaganda que transformou Chávez em um ícone religioso não necessariamente servirá para legitimar vários pretendentes, inclusive seu sucessor escolhido, o vice-presidente Nicolas Maduro, que estão prontos para herdar o seu legado carismático.
Esse legado, claro, é mais que zelo messiânico. Chávez deixará para trás um país infestado de problemas. Com divisões políticas profundas. Com um nível assustador de violência, incluindo cerca de 21.000 homicídios no ano passado. Com as grandes distorções econômicas oriundas da maior inflação do continente e da gasolina mais barata do planeta. Com a produtividade encolhendo, uma moeda supervalorizada e uma enorme carga da dívida externa. Com gastos públicos descontrolados, e mesmo com um grande sonho que ainda tem de se cumprir: a ilusão de eliminar a pobreza para sempre.
Nesse sentido, a ausência pode simplesmente ser aquilo de que Hugo Chávez precisa para salvá-lo de seu próprio fracasso. Os mitos sobrevivem somente quando se elevam acima das desgraças da realidade.
(Alberto Barrera Tyszka e Cristina Marcano são autores de "Hugo Chávez: The Definitive Biography of Venezuela's Controversial President", ainda inédito no Brasil.)
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