População vê Putin como "uma espécie de monarca constitucional", diz professor russo
Vasily Gotov afirma que a Rússia moderna não é nem autocrática, nem uma democracia
Internacional|Do R7*

A Rússia está nos centro das atenções do mundo. Na Síria, os bombadeios comandados pelo país deixam dezenas de mortos e complicam o xadrez político no país — aliado de Moscou, o Kremlin não quer ver sua influência no Oriente Médio diminuir com uma eventual queda do regime de Bashar al Assad.
Outra polêmica recente diz respeito às eleições norte-americanas. Há duas semanas, o governo norte-americano acusou formalmente a Rússia por uma campanha de ciberataques contra organizações do partido democrata.
Todos esses fatores lançam luz sobre o polêmico presidente russo, Vladimir Putin — que está no poder no país desde 1999. Professor visitante do Centro de Comunicação de Liderança & Política da USC (University of Southern California), o russo Vasily Gotov afirma que o líder se aproveita da natureza da população de seu país, que o vê como "uma espécie de monarca constitucional", para manter seu império no país.
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Gotov, que estudou a fundo alguns dos eventos mais importantes da Rússia soviética e pós-Guerra Fria, conversou com o R7 sobre as acusações de laços com o crime organizado e de uso da máquina pública para perseguir inimigos políticos que pairam sobre Putin e seu regime.
Quais são as ferramentas usadas por Vladimir Putin para permanecer no poder por tanto tempo?
É uma combinação de várias ferramentas. Ele constantemente muda a máquina exata de se manter no poder. E um componente importante é que ele explora a natureza dos russos soviéticos, eu diria. As pessoas realmente gostam dessa liderança forte, manifestações de poder. E os russos têm algumas esperanças imperiais.
Eu diria que Putin usa uma combinação de técnicas, e ele constantemente as muda para se manter no poder.
Há disputas internas dentro do Kremlin? Putin é consenso dentro de seu partido?
Vladimir Putin é uma figura central, mas ele não está sozinho no Kremlin, e não é só a sua política individual que vemos aplicada na Rùssia. Trata-se de um grupo de pessoas que um pensador russo chama de “Putin coletivo”. A maioria delas são funcionários da inteligência. Alguns são homens de negócios, outros são oficiais, outros representam a burocracia, e até mesmo a burocracia soviética.
Sempre ocorrem debates dentro do Kremlin, e há duas facções principais que os jornalistas costumam repercutir: uma que representa Putin, composta por pessoas das áreas da inteligência e da segurança; e o segundo, liberal sistêmico, com pessoas mais pró-ocidente. O líder desse grupo é Dmitry Medvedev, o primeiro-ministro russo.
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A maioria das políticas, especialmente as domésticas, são definidas por meio do constante diálogo entre esses dois grupos. A parte de segurança do governo insiste em um controle maior, estados mais fechados, uma economia mais controlada, comportamentos sociais comportados. Já o grupo liberal insiste em uma economia e um país abertos.

Eu recomendaria ver a Rússia como um país em transição. Não é um estado autocrático nem uma democracia — é como um terceiro caminho.
O problema é que as instituições constitucionais, como a presidência, o parlamento e as cortes não são exatamente contrabalanços. O sistema existe no círculo próximo de Putin. E isso é uma espécie de continuação do sistema soviético, onde um grupo de altos líderes do partido eram na verdade os governantes do país. Havia um parlamento na União Soviética, mas ele estava preso às decisões do governo. Isso é semelhante ao que acontece hoje.
Como a população vê Vladimir Putin?
Há duas respostas. Uma, bem formal, diz que a aprovação de Putin está entre 75% e 80%, que fazem até as políticas pessoais dele aceitáveis para a população russa. As pessoas declaram que apoiam Putin.
Por outro lado, nas mesmas pesquisas, quando perguntados sobre particularidades econômicas, políticas ou ideológicas de Putin, as pessoas tendem a se dividir mais igualmente. Por exemplo, mais de 60% desgosta da atual situação econômica. Cerca de 45%, se me lembro bem, desaprova a supressão da oposição.
E a coisa importante é que os russos em geral tendem a ver Putin como uma espécie de monarca constitucional, cuja existência e poder não devem disputados porque ele simplesmente o tem. Um governo do tipo monárquico. Isso é o que está no centro da aceitação dos russos com relação a Putin. Bem, se ele tem o poder, as pessoas tendem a aprová-lo, e não há um líder popular ou partido que seja decisivamente capaz de substituir Putin.
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Ainda assim, acho que, durante os 10 anos de governo de Putin, as eleições foram mais justas. Elas não foram totalmente justas — há influência, especialmente a nível municipal, de autoridades e governos locais. Mas, no geral, as eleições de 9 anos atrás foram muito mais fracas e manipuladas do que as mais recentes.
Putin se deu conta de que as instituições democráticas são importantes porque diminuem as pressões internas. Elas servem como uma válvula, permitindo que o escape da raiva, do desacordo, seja minimizado. A política recente do governo foi fazer as eleições o mais justas possível e demonstrar que há outras forças políticas que criticam Putin, especialmente no parlamento.
Como o governo de Putin controla a informação na Rússia?
Esta é a questão mais importante. Tentarei ser cuidadoso sobre isso. Na prática, o governo russo controla 1/3 da televisão nacional — alguns canais diretamente, e outros, indiretamente. Agora, do ponto de vista político real, todos os canais de TV são controlados pelo Estado. Putin é muito cuidadoso em permitir que qualquer programa independente, até no nível de shows de auditório, sejam transmitidos nacionalmente.
Em relação à imprensa e à internet, o governo russo tem menos controle e interferência. Às vezes, eles tentam projetar poder nos jornais e sites. Outras, eles bloqueiam conteúdos que não gostam. Mas, geralmente, isso não é algo com o que eles se preocupam.
Outro fato é que jornalistas estrangeiros estão em perigo porque o regime tem um longo registro de intimidações. E isso vem da fundação do Estado moderno russo, que tornou as pessoas cuidadosas sobre o que elas investigam e escrevem.
Você acredita que Putin tem relação com as máfias russas?
Essas suspeitas existem desde o início de sua carreira política em São Petersburgo nos anos 1990. Houveram dezenas de documentos analisados e até investigações parlamentares de suas atividades. Também houveram algumas conexões, identificadas por investigadores espanhóis, de mafiosos com pessoas de círculos próximos de Putin.
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No geral, acho que isso é um detalhe importante sobre ele, mas que não o distingue de outros líderes russos. Mesmo os czares. O mundo criminoso da Rússia sempre foi parte da elite dominante, até no regime soviético. Então quem opera quem? O governo comanda os líderes mafiosos ou os líderes mafiosos controlam o governo? Eu diria que, no caso russo, a primeira opção é mais real.

Então você acredita que Putin está ligado às máfias?
Eu venho lendo sobre isso há quase 30 anos, e acho que algumas conexões definitivamente foram provadas. Mas na Rússia atual, e no Estado moderno que Putin estabeleceu depois de 2011 quando retornou ao poder, tudo, incluindo a criminologia, está sob seu controle.
Então, eu diria que as conexões existem, mas não acho que elas afetam suas políticas e decisões. Ele pode ordenar algo a elas, ou, provavelmente, poderia atacá-las facilmente, porque essas pessoas são conhecidas, mas de certa forma ele está interessado em ter essa espécie de influencia informal em grandes partes da sociedade, como lavagem de dinheiro, contrabando, e até drogas. Porque algumas partes da sociedade russa só podem ser controladas por criminosos
Qual é a influência dos oligarcas russos na política do país?
O termo oligarcas começou a aparecer na mídia em 1996, quando um grupo de 9 pessoas ricas se uniram para apoiar a reeleição de Boris Yeltsin. Dentre essas pessoas que estiveram na “junta oligarca” original, eu acho que nenhuma hoje está ativa e trabalha na Rússia, e algumas delas estão até mortas, como Boris Berezovsky (crítico do governo de Putin que foi encontrado morto misteriosamente em seu apartamento em Londres em 2013).
A segunda geração de oligarcas, que enriqueceu durante o governo Putin, são muito menos influentes na política. O que eles fazem é lobby sobre seus interesses na política. Têm espécies de grupos de interesse que os ajudam a obter financiamentos do Estado, e até soluções para seus problemas empresariais, mas eu diria que, atualmente, a influência deles não é algo que consiga mudar os rumos do Estado.
Como Putin conseguiu diminuir o poder dos oligarcas?
A estratégia do Putin consistiu em 2 estágios. Primeiro, ele os afastou do controle da mídia. Um dos maiores poderes dos oligarcas dos anos de Yeltsin era que eles eram donos dos mais importantes meios de comunicação do país. Eles controlavam o Channel 1, que é o canal mais assistido da Rússia.
No final de 2001, todas essas organizações haviam sido removidas de seus donos, de um jeito ou de outro.
Outros oligarcas, como Mikhail Khodorkovsky, que está exilado e hoje vive na Suíça, tinham menos influencia na mídia na época, mas eram ativos na política.
Khodorkovsky controlava políticos e servidores fiéis, e até regiões inteiras da Rússia. Então a combinação de mídia e influência política foi a chave.
O segundo estágio foi quando Putin acusou Khodorkovsky de sonegação de impostos e mandou ele para a prisão em 2003, e depois o prendeu de novo em 2006. No total, o oligarca ficou 12 anos atrás das grades. Em 2013, ele trocou sua liberdade pelo exílio, e não é mais ativo na política.
Em relação aos outros oligarcas, a maioria saiu da política e dos negócios porque simplesmente não eram poderosos o suficiente para se sustentar com os pequenos movimentos do governo contra seus negócios.
Acredito que o ponto importante é que essas pessoas surgiram do nada — dos rankings do partido e da Nomenklatura (administração) soviética, sem ter nenhuma raiz na sociedade, nos negócios e na política. Então, foi fácil para o Estado, no segundo mandato de Yeltsin, se descobrir como valoroso.
O poder presidencial é uma instituição, mas ocupá-lo não é. E tão logo o líder do Kremlin — primeiro Yeltsin e depois Putin — percebeu que pode segurar esse poder porque não há uma confrontação séria a esse poder na sociedade, eles começam a protegê-lo e empregar as instituições, como a polícia e a as côrtes, para fazer oposição às pessoas, seja econômica, política, e até ética.
Eles entenderam que precisam demonstrar que o poder de um homem ou de um grupo de pessoas pode reescrever leis, ou as implementar mal, sem que as próximas eleições os punam por isso. E acredito que foi assim que a maioria das ditaduras surgiram.
O Brasil tem um histórico de pessoas que fizeram a mesma coisa. Provavelmente, não foram tão bem sucedidas, mas esse tipo de liderança é muito conhecido do seu continente. Um político se torna líder de maneira legal, e depois resolve não entregar esse poder, fazendo de tudo para se manter lá. Depois, se a população está contra ele, ele as reprime. E se não estão, então ótimo. Ele vai ficar no poder mais 4 anos, mais 4 anos, mais 4 anos... até que a sociedade desperte — o que, eventualmente, vai acontecer um dia.
Qual é o papel da organização de inteligência FSB no governo Putin?
No geral, as pessoas tendem a projetar a história do poder da KGB dos tempos da União Soviética em sua encarnação moderna, mas é muito diferente, porque não há mais uma ideologia em comum. E segundo, não há um partido político, como o Partido Comunista, para exercer o controle da organização.
Eu tentaria desdemonizar a FSB. Diria que é uma organização na qual o policiamento político é apenas uma pequena fração de suas atividades.
Trata-se, em primeiro lugar, de uma organização de inteligência, que atua na luta contra o crime organizado, o tráfico de drogas. A polícia política não é a maior prioridade dessa organização. Claro, eles têm algumas divisões que seguem as atividades da oposição ou de pessoas que são politicamente ativas, mas definitivamente não é uma operação em escala maior, como era com a KGB.
E a maioria dos oficiais no comando das operações políticas são apenas operativos. Ou seja, é o Estado estando consciente de atividades políticas — não para preveni-las, mas apenas para ficar a par delas.
É um ponto de vista inusual, mas eu não acho que a FSB seja algo a ser comparado com a antiga polícia soviética.
A inteligência russa é mesmo tão sofisticada quanto sugerem os governos ocidentais, como os Estados Unidos?
A inteligência, desde os tempos da União Soviética, foi baseada em pessoal e organização. Essa sempre foi a parte forte dos russos.
Na era da internet, as ferramentas online são a parte ponderosa da inteligência dos EUA e do ocidente. A Rússia nos anos 90 aumentou os esforços para desenvolver capacidades semelhantes.
E conseguiu, de certo modo. Não de maneira tão diabólica como o governo norte-americano descreve, mas definitivamente a Rússia desenvolveu uma inteligência sofisticada. Definitivamente, eles tem uma das melhores equipes de criptografia do mundo, o que os torna bons hackers também.
Mas eu sugeriria para não superestimar as capacidades desses sistemas. A inteligência russa definitivamente pode fazer muitas coisas, e não há dúvidas de que conseguiram fazer ações contra o Partido Democrata norte-americano, hackeando seus e-mails. Mas, por outro lado, a maioria das pessoas que operam essas forças, como Putin mesmo, são muito antiquadas no que diz respeito a computadores. Então, eles se sentem inconfortáveis com operações como essa.
Não temos provas que foram os russos que invadiram o sistema do Partido Democrata e hackearam os e-mails, apenas as acusações do governo norte-americano. Mas é claro que as pessoas que conceberam isso não pensaram em quais poderiam ser as consequências.
É muito menos claro o que os americanos podem fazer com toda sua capacidade de inteligência contra a Rússia, e a Rússia é muito menos protegida do ponto de vista da inteligência do que os EUA.
Nos Estados Unidos você tem a NSA e outras organizações que fazem operações de inteligência na internet. Na Rússia, você tem todo o sistema de segurança junto, incluindo a guarda nacional e a FSB. É claro que isso descreve a capacidade de inteligência do país.
Então, para fechar, eu iria que a Rússia é capaz na ciberesfera, tem alguns dos melhores hackers a seu serviço, mas o gerenciamento dessas operações e o nível estatístico são muito menos sofisticados do que os de Estados Unidos ou China.
O investidor norte-americano Bill Browder afirma, em seu livro Akerta Vermelho, que a corrupção na Rússia é institucionalizada e que oficiais de alto escalão no governo estão envolvidos em escândalos, e até mesmo roubam seu próprio país. Você concorda com a afirmação?
Essa é uma das mais famosas histórias sobre a Rússia dos últimos 10 anos. Eu concordo com Browder: a corrupção é institucionalizada e é uma dos maiores componentes da política russa. Desde Yeltsin, pessoas responsáveis pelo governo e que parte da administração pública vêm se apropriando de fundos do Estado.
Mas, eu teria cuidado em dizer que Browder está certo em todas as acusações que faz. Primeiro porque, no estágio inicial do reinado de Putin, o próprio Browder se beneficiou da corrupção e do sistema russo, o tornando um homem muito rico.
Por outro lado, o caso Maginski (advogado russo que defendeu Browder e foi morto dentro de uma cela após ser espancado por policiais) revelou o quão profundas essas conexões (de corrupção) se infiltraram no Estado. Mas o sistema está tão enraizado que, ao invés de punir os oficiais (responsáveis por desvios de verba do Estado e pelo assassinato de Maginski), o Estado russo decidiu defendê-los quando eles mataram Maginsky na prisão.
Os responsáveis pelo crime nunca foram processados. Inclusive, um deles foi eleito recentemente para a Duma (parlamento) da Rússia. Então, sim, a Rússia é um país muito corrupto.
* Por Luis Felipe Segura
A Rússia, que já foi considerada uma das duas principais potências do mundo, vem adotando posturas expansionistas e hostis em relação aos interesses de outras potências, mais marcadamente, os Estados Unidos. Conflitos na Ucrânia e na região do Cáucaso ...
A Rússia, que já foi considerada uma das duas principais potências do mundo, vem adotando posturas expansionistas e hostis em relação aos interesses de outras potências, mais marcadamente, os Estados Unidos. Conflitos na Ucrânia e na região do Cáucaso contribuíram para colocar as forças da Otan em seu mais alto nível de alerta desde meados dos anos 80
















