Acusação fala em julgamento histórico e diz que PMs da Rota criaram versão
“Eles armaram versão para enganá-los”, diz promotor Fernando Pereira aos jurados
São Paulo|Thiago de Araújo, do R7
No quinto e último dia de julgamento, o promotor Fernando Pereira usou as suas três horas nos debates para pedir a condenação dos 25 policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) que atuaram no terceiro pavimento (2º andar) da Casa de Detenção, no dia 2 de outubro de 1992, no que ficou conhecido como o massacre do Carandiru.
De acordo com o representante do Ministério Público, o julgamento dos réus pela morte de 52 detentos é histórico e representa uma resposta que os jurados darão à sociedade e aos organismos internacionais, que reconheceram a existência de execuções sumárias durante a rebelião no pavilhão nove do presídio, há quase 21 anos.
— Ouvimos durante todos esses dias a versão que eles (PMs) armaram para enganá-los, senhores jurados. Não é porque eu não goste da versão deles, mas é porque ela não encontra embasamento em nada do que está nesse processo.
Pereira fez questão de mencionar que este “não é um julgamento da Polícia Militar”, mas sim dos maus policiais que atuaram na morte dos detentos no Carandiru. A condenação, segundo ele, seria uma forma de “lavar a honra” da corporação.
Laudos e contradições
Ao longo das três horas de explanação de Fernando Pereira, o promotor sempre fez questão de mencionar os muitos laudos e números que envolveram os acontecimentos no terceiro pavimento da prisão em outubro de 1992.
Um total de 243 disparos de arma de fogo atingiu os detentos mortos durante a rebelião. Destes, 86,5% foram atingidos por três ou mais disparos, enquanto 48% do total receberam pelo menos cinco tiros. Além disso, 47 dos 52 mortos (o promotor pediu que 21 mortes das 73 iniciais não fossem imputadas aos réus do 1º Batalhão do Choque, conhecido como Rota) o que dá uma margem de 90,4%, receberam tiros no pescoço e na cabeça.
Além dos números, o grau de letalidade dos réus foi demonstrado, segundo a acusação, pela quase íntegra dos disparos que mataram os detentos ter trajetórias diversas. Para Pereira, se eles estivessem se defendendo, com toda a tropa indo a uma direção, tais ferimentos não poderiam ter sido encontrados nos corpos durante as autópsias no IML.
— Como eu acerto nove tiros em um preso, no escuro, sem ver nada? Trinta e sete vítimas (71,6%) receberam tiros de trajetórias distintas, de munições distintas. Até podia estar escuro, mas será que foi como eles disseram? Vejam, os réus mentiram desde o início.
Enquanto os números e as argumentações eram apresentados pelo promotor, alguns militares no banco dos réus, como os tenentes-coronéis Salvador Madia e Valter Mendonça, mostravam alguns sorrisos irônicos, atitude semelhante à apresentada pela advogada de defesa, Ieda Ribeiro, que andava de um lado para o outro no plenário.
Além de mostrar dados, Pereira ainda mostrou algumas informações para comprovar uma suposta fama que os policiais da Rota já possuem nas ruas: a de matar muito. De acordo com número apresentado por ele, em 1992, ano do massacre, a Rota matou 290 pessoas, com apenas cinco feridos ao longo de todo o ano. Em quase todos os casos, as mortes foram atribuídas a confrontos com criminosos e resistência à prisão.
— Infelizmente, os maus policiais têm por hábito forjar cenas de crimes para justificar os seus atos de resistência à prisão e morte (...). O que aconteceu não pode sair impune, não podemos admitir. As vítimas estavam presas por crimes que cometeram, mas elas estavam lá para cumprir uma pena que não era a de morte.
Na fase final da sua fala, o promotor ainda apresentou inúmeras inconsistências nos depoimentos e interrogatórios dos réus. Enquanto a Rota disse ter apreendido 13 armas com os presos, os documentos de testemunhos anteriores só corroboram sete armas.
Além disso, vários oficiais declararam que o pavimento estava tomado pela água, porém as armas apresentadas estavam secas.
— Tivemos arma que matou no Carandiru no dia 2 (de outubro) e matou na rua no dia 3 (de outubro). Que controle é esse da Polícia Militar?
Ferimentos dos PMs foi “fogo amigo”
Fernando Pereira aproveitou o espaço da acusação para explicar aos jurados o que a promotoria acredita ser a verdade sobre os policiais que se feriram durante a rebelião no pavilhão nove. Para ele, o que aconteceu foi “fogo amigo”, ou seja, tiros efetuados por outros oficiais acabaram atingindo os seus próprios colegas de farda. O promotor apresentou ainda dados e depoimentos para embasar a sua tese.
— Será que estou querendo inventar isso? Temos depoimentos que afirmam que não havia uma formação ordenada da tropa, mas sim “um monte” de policiais, que seguiam de maneira desordenada. Não sou eu quem diz isso, são os depoimentos. Além desses relatos, os laudos mostram que não é possível demonstrar que eles foram atacados.
Pereira ainda ironizou a proposta dos policiais de que todas as armas da Polícia Militar fossem analisadas.
— Na época dos fatos, a estimativa era de que isso só fosse possível ao longo de 76 anos de trabalho. Se fosse hoje, levaria cinco meses. Ou seja, é totalmente inviável. E os projéteis? Não sabemos. Sumiram.
A promotoria espera que os réus sejam condenados pela conduta “criminosa de toda a tropa”, sem se prender a definir quem cada policial envolvido na ação atingiu com disparos.
— Eles entraram naquele corredor e violentamente massacraram os presos. Todos eles (PMs) efetuaram disparos, eles mesmo admitem. Assim, todos contribuíram para o resultado final. Eles pedem uma individualização da conduta, algo que a Justiça não acolhe há 20 anos, e a denúncia do Ministério Público nunca foi essa. A conduta foi coletiva, e é o que foi denunciado nos autos.